Obras e mudanças dentro da casa se tornaram a palavra de ordem. A imobiliária mandou uma equipe para reformar as coisas maiores. Ainda bem que foi rápido, eu não aguentaria mais uma semana vivendo com o cheiro de fumaça do banheiro (obrigado, Richard).
— Tia. — falei fazendo uma cara de tédio e ouvindo os sons dos grilos que vinham de fora.
— Oi? — ela perguntou sem tirar os olhos das planilhas e documentos.
— Podemos ir ao Centro da cidade? Estamos morfando aqui dentro.
— Hoje à tarde. — disse titia. — Deixa os funcionários da imobiliária irem embora.
— Tudo bem.
Sem TV a cabo e internet. O que três menores de idade podem fazer nessa situação? Comecei a ouvir música, no caso, "House of Cards", do Radiohead. Olhei para o lado e vi algumas coisas velhas no fundo da casa. Decidi aproveitar uns móveis antigos que haviam e reformar para usar no meu quarto.
Sempre fui bom na marcenaria e reformar coisas usadas. A minha tia sempre utilizava os meus dons para arrumar coisas. Percebi que não haviam instrumentos necessários para trabalhar. Fui atrás de uma loja de material de construção, por um milagre de Deus o sol não estava tão forte. No caminho, esbarrei com Letícia, a moça que quase me matou com a bola.
Que garota bonita. Ela tem o perfil das mulheres de Manaus. Morena, cabelos longos e lisos, rosto afilado e olhos castanhos. Letícia usava um vestido provocante, mas tentei não ser tão indiscreto.
— Desculpa por acertar a bola em você. — ela se desculpou pela segunda vez e, por alguma razão, eu corei.
— Relaxa. Eu estou acostumado. Afinal, sou um alvo muito grande para ser ignorado. — tentei levar na boa e consegui tirar um riso abafado da Letícia.
— E você está indo comprar o quê?
— Pregos, tintas e alguns materiais para reformar os móveis que o antigo dono da nossa casa deixou. — expliquei, com o traquejo social de um jabuti, caminhando ao lado dela.
— Ah, bacana.
— E você? Toda arrumada... — parei de falar ao perceber que estava sendo indiscreto.
— Vou para uma agência de modelos. Coisa da minha mãe. Ela gosta que eu tenha uma atividade fora jogar futebol com os meninos. — ela contou, arrumando o cabelo que insistia cair em seu rosto.
Que conversa legal. A Letícia me informou onde existia uma loja de material de construção. Ela também falou sobre alguns pequenos trabalhos que fez no universo da moda. Infelizmente, a Letícia precisou ficar na parada de ônibus.
Nota mental, no Rio de Janeiro, chamamos de ponto de ônibus. Já em Manaus, o nome é parada. Expliquei a diferença para Letícia, ela não sabia. Mas achei interessante essa diferença.
— Ei, Yuri. Hoje vamos nos reunir no Fred's. — convidou Letícia.
— Fred's? — questionei, imaginando ser uma pessoa.
— Aquela lanchonete vermelha. — ela disse apontando para uma lanchonete com um letreiro escrito "Fred's".
— Claro, que horas? — perguntei como se fosse a coisa mais normal do mundo. Nunca recebi um convite para nada.
— Umas 19h. Vai lá. A galera vai se reunir.
— Tudo bem. — falei me despedindo dela.
Letícia era linda, mas um pouco rústica. Com treino e prática ela se tornaria uma ótima modelo. Será que ela e o Zedu se pegavam? Por que, eu estava pensando no Zedu? Ele também era um cara bonito e rústico. Uma pele bronzeada que lembrava a dos garotos do Rio de Janeiro.
Voltei com às compras e, para a minha surpresa, o Zedu estava me esperando. "Tá, Yuri. Segura a onda", pensei. Na verdade, o meu desejo era pular naquele pescoço gostoso e devorá-lo sem piedade. Em seguida, voltei para a realidade, porque o meu Deus grego chamava.
— Vamos apagar qual incêndio hoje? — ele perguntou, escorado no muro de casa. Tenho certeza que o Zedu é o tipo de homem que sabe da sua beleza. Não é possível.
— O incêndio no sol desta cidade. Sério, Manaus deve ter um sol só pra ela. — falei abrindo a porta.
— Na verdade, um sol para cada habitante. — Zedu riu sozinho de sua piada.
— Eu percebi. — soltei rindo.
— Qual a missão de hoje? — ele perguntou pulando a mureta, mesmo com a porta aberta.
— Transformar uma mesa e armário em coisas apresentáveis. — expliquei apontando para os móveis abandonados no chão.
— Vamos lá.
Passamos uma tarde agradável. O Zedu era muito prestativo. Um cara do bem e parecia bem diferente das pessoas do estilo dele, no caso, homens padrões e babacas. No Rio de Janeiro, por exemplo, alguém como o Zedu nunca se aproximaria de mim. A minha tia estava feliz, porque eu havia conseguido um amigo.
— Viu, Giovanna? O teu irmão já está fazendo amigos. — ressaltou tia Olívia, observando a gente trabalhar.
— Titia. Olhe para mim? — Giovanna perguntou com desdém. — Olha para as meninas dessa rua? Pelo amor de Deus. Tem uma diferença muito grande. Quando eu começar na escola nova...
— Giovanna. — titia a repreendeu. — Não vá fazer como na outra escola e....
— Titia. Não tenho culpa se a Michelle caiu da escada e quebrou o pé. Alguém tinha que ser a Rainha do Baile de Outono. — Giovanna fez uma careta engraçada e jogou os cabelos loiros para a direita.
A minha irmã era, na verdade, um projeto de Abelha Rainha. Na escola, ela conseguiu desbancar as veteranas no cargo, mas acabou fazendo besteira e quase matou uma colega de classe. A situação ficou tão feia que quase rendeu um processo para a titia. A Giovanna foi a menina mais nova a prestar serviço comunitário no Brasil. Quer dizer...
RIO DE JANEIRO - UM ANO ATRÁS
— Eu já disse que não vou pegar essa sacola suja. Gabrielzinho, junta pra mim. — pediu minha irmã toda manhosa para um colega de serviço comunitário.
— Eu não...
— Puxa. — ela se aproximou de Gabriel e fez seu drama básico. – Eu estou tão cansada.
— Tá bom.
MANAUS – DIAS ATUAIS
É tão bom conhecer pessoas novas. Enquanto trabalhávamos nos móveis, pude conhecer mais sobre o Zedu. Fiquei fascinado com alguns fatos sobre ele. Como, por exemplo:
- Irmão mais novo;
- Tinha dois irmãos mais velhos (José Frederico e José Leonardo);
- Adora qualquer tipo de esporte;
- Já quebrou o braço;
- Nunca terminou de ler um livro;
- Está no primeiro ano do ensino médio;
- Pintou os cabelos de loiro, mas não deu muito certo;
***
O tempo passou tão rápido que nem percebemos. O sol começou a se pôr e várias aves sobrevoaram nossa casa. Os pássaros eram lindos. Suas penas vermelhas ganharam destaque em contraste ao céu azul.
De acordo com Zedu, eram Araras. Essas aves são conhecidas por ter o mesmo parceiro para o resto da vida. Poético, né? Ele ficava tão fofo explicando as coisas.
Os móveis ficaram maravilhosos. Pintamos a mesa de azul e o armário de branco. O Zedu arrumou o que estava quebrado. Colocamos em uma parte protegida para secar e sentamos no chão. Não queria que o dia acabasse, mas tudo pode melhorar.
— Nossa. Tô imundo. Posso me molhar na mangueira? — ele perguntou tirando a camiseta e se aproximando da mangueira que havia no quintal.
— Cla... cla... — não conseguia falar, apenas sentir.
Ele era perfeito. Filho da mãe. Fazer isso perto de mim, porquê? Na minha imaginação, eu pulava em cima dele e beijava cada parte perfeita daquele corpo. Chupava o pescoço, os mamilos e tudo mais. Como minha cabeça gostava de viajar em sonhos impossíveis.
— Você não vem? — ele pergunta jogando água na minha direção.
— Não. Tá quase na hora de tomar banho, então...
Titia acabou com o clima. Ela trouxe uma bandeja de sanduíches e suco. Que merda. Odeio comer na frente dos outros, principalmente dos crushes. Sentamos no chão e começamos a lanchar. O Zedu estava todo molhadinho. Eu tentava fingir costume com aquela situação.
— Zedu. Você gostaria de nos acompanhar no Centro amanhã? — titia perguntou escorada na porta do quintal.
— Não, tia. Ele não pode ir. Deve ter mais coisas para fazer e... — tentei evitar, mas o Zedu foi mais rápido.
— Eu adoraria. — ele respondeu todo educado. Nossa que vontade de socar esse garoto.
— Graças a Deus. Não sei andar aqui ainda. Só um minutinho. GIOVANNA!!!! RICHARD!!! ESTOU ATRASADA!!!!!!! Então, pois é, eu não sei andar em nada.
— Credo tia. Não estamos surdos. — saindo de casa com um guarda-chuva na mão e entrando no carro, entretanto, saiu em menos de um minuto depois. — Tá impossível de ficar nesse veículo. Essa cidade é um crime contra a chapinha!
— Olha, Giovanna. — titia reclamou, mas entrou no carro para ligar o ar-condicionado. — Já princesa. RICHARD!!! NÃO VOU CHAMAR DUAS VEZES!!!!
— Ela grita alto, hein. — Zedu comentou rindo.
— Pois é. Você se acostuma. Nem tímpanos eu tenho mais.
Falei para o Zedu sobre o convite feito por Letícia. Ele garantiu que seria legal conhecer a turma na lanchonete. Apesar de apreensivo, topei o desafio de fazer novas amizades, afinal, cidade nova, novas oportunidades.
No meu quarto, os móveis ficaram lindos e os posicionei em um lugar estratégico. Reformar era uma forma de desestressar, sabe, colocar a energia acumulada em alguma coisa.
A imagem do Zedu se molhando na mangueira continuava a orbitar na minha cabeça. Infelizmente, lembrei do meu. Um corpo peludo, branquelo e sem qualquer atrativo. Mesmo se o Zedu fosse gay, não teria chance nenhuma de ficarmos juntos.
Sou um cara básico, sem qualquer tipo de destaque. Meu estilo é camiseta preta e calça jeans. A galera aparentava ser legal, pelo menos, o Zedu e a Letícia. Por isso, queria causar uma boa impressão.
Pela primeira vez, eu tive uma chance real de ter amigos e não inventar amizades para alegrar a minha tia. Algo bom que Manaus me trouxe.
Cheguei pontualmente às 19h. Eles já estavam lá. Sentei e fiquei apenas observando, afinal, o que mais pode-se fazer em um ambiente completamente novo? Eles eram legais, falaram coisas sobre a cidade, algumas informações úteis como ter cuidado com os motoqueiros e os melhores lugares para comer.
Não consegui uma conexão boa com o Brutus, ele é totalmente diferente de mim, bonito, mas um pouco tapado.
— E as gatinhas cariocas, Yuri? Tinha muitas namoradas? — perguntou Brutus, antes de tomar um gole de refrigerante.
— Idiota. — disse Zedu, jogando um guardanapo amassado na direção do amigo.
— Eu quero saber oras. — se defendeu Brutus.
Como poderia definir o Brutus? Um corpo maravilhoso. Tá, sei que é errado pensar desse jeito, só que era a pura verdade. Ele começou a malhar aos 14 anos e passou a ganhar bastante massa muscular. Seus braços são grandes e têm veias saltadas. Sua camiseta parecia que ia rasgar de tão apertada que estava no seu corpo.
— Credo, garoto. Só pensa nisso. Não se preocupe, Yuri. Tem momentos que ele presta. — disse Ramona, sorrindo.
A Ramona é uma garota baixinha e com os cabelos encaracolados. Ela usa bastante creme, pois, o ventilador do lanche estava atrás dela e recebi toda a fragrância de morangos silvestres no rosto.
— Somos disfuncionais, mas funcionamos bem. — garantiu Letícia, pegando na minha mão e sorrindo.
— Falando em disfuncional, o meu aniversário é nessa semana e tenho uma ótima notícia. — anunciou Ramona, batendo palmas.
— Você ganhou na loteria? — perguntou Zedu.
— Melhor. O meu pai vai nos levar para Presidente Figueiredo. — anunciou Ramona levantando os braços.
De repente, aquilo virou uma comemoração coletiva. Fiquei no vácuo, porém, o Zedu explicou que se tratava de um passeio para uma cidade conhecida por suas belas cachoeiras. A Ramona acabou me convidando também. Achei legal a atitude dela.
— Vai ser perfeito para você conhecer um pouco mais do Amazonas. — afirmou Ramona, toda sorridente.
— Claro, quer dizer, vou falar com a minha tia. — inventei, pois não queria ir.
— Tenho certeza que ela vai deixar, grandão. Não conheço a sua tia, mas o pouco que o Zedu falou fez ela parecer alguém legal. — assegurou Brutus.
— Espero. Estou tão ansioso para conhecer mais daqui. — tive que mentir, de novo, porque o fato de ir para uma cachoeira me deixava aterrorizado.
Droga. Eu ia para uma cachoeira, ou seja, as pessoas tomavam banho na cachoeira com suas sungas e biquínis atraentes. Acho que a última vez que fiquei sem blusa na frente de alguém foi antes do acidente dos meus pais.
Comments (0)
See all