Enquanto subiam lentamente para a praça pública, Ana ouvia as pessoas questionarem quantas cabeças rolariam rua abaixo e qual cabeça ganharia a corrida até a canal vermelho, conhecido assim por motivos óbvios, já que tinha dias que não se sabia se o que corria ali era água ou só o sangue dos supostamente culpados contra a realeza.
"Pior que tá não fica", mas Ana não sabia que nada é tão ruim que não poderia piorar ao sentir um ovo quebrar na sua cabeça e ser linchada "Besta!", "Monstro!", "Esta criatura deve morrer!" e lágrimas começaram a correr pelo seu rosto e de repente uma mão suave estava a tocar seu rosto como se seu marido Jan a acalmasse... 'Será que ele lembrou de ligar a máquina de lavar?' e era essa rotina monótona que os conectava nesse amor. Ao longo dos anos, Ana concluiu que parceiro de verdade é aquele que lava as roupas sujas juntos, depois do trabalho, do suor da academia e das quentes noites de verão.
A cada passo se questionava se alguém a procuraria. Talvez Jan tenha chamado a polícia, mas provavelmente ainda estava a dormir. Talvez sua família, mas moravam a um mar de distância e nem a internet era capaz de conectá-los como antigamente. Talvez suas amigas, mas cada uma tinha suas próprias vidas. Talvez sua melhor amiga, mas ela estava com depressão e desempregada. Talvez alguém do curso de holandês, mas não tinha intimidade com ninguém da turma. Talvez alguém do trabalho, mas estaria de férias por uma semana. Tais sonhadas férias de Ana, que passaria na Itália, já tinha planejado desde o voo econômico a um airbnb perto do centrinho histórico, onde comeria gelato e salami, este a fazia lembrar da sua infância que sua mãe costumava cortas fatias tão finas como folhas e contar quantas cada um deveria pegar e que rapimente, ela e o irmão se deliciavam com uns pares a mais, mesmo com os puxões de orelha. 'Oh tempos de vaca magra, ainda me divertia, eu tive uma vida boa' quase como despedida, mas logo outra parte do cérebro planejava se não haveria um jeito de escapar das pesadas correntes e do gritante ódio público.
- Quase um inquisição isso aqui… - sussurrou Ana - Vou ser queimada viva? - Declarou ao ver 3 postes de madeira à frente.
- Ignorante você - sussurrou o gatuno a sua frente - aqui se cortam as cabeças... Afinal não podemos reencarnar das cinzas...
- O que é tão ruim quanto... - choramingou Ana.
- Se tivermos sorte e a rainha estiver presente, talvez mantenhamos tudo no lugar - sussurrou o outro gatuno atrás de Ana.
E para a sorte dos três, lá estava ela, bela, com seus pelos brancos e olhos reluzentes como cristais, que até diminuiam o valor de sua grande coroa e Ana esperava que seu brilho fosse mais do que estético e que sua mente fosse mais iluminada do que a de seu filho George II.
Gritos de desgosto e de admiração se misturavam entre a multidão até que:
- Silêncio, plebe! - gritou o serviçal - Deem boas vindas a rainha Elise e seu filho George II, o prodígio, o grande, o primeiro na linha de sucessão "e o mimado" - este último título claramente pensado por Ana.
E a multidão virou estátua num segundo e todo aquele silêncio fez ecoar um terror no acelerado coração de Ana.
- Corte-lhe as cabeças! - gritou George II - Corte-...! - Mas fora interrompido pelo estridente olhar de sua mãe.
- Estamos hoje presentes para o julgamento desses três súditos do reinado - continuou o serviçal
O gato à frente de Ana foi colocado à sua direita e o outro a sua esquerda, ficando Ana no meio de toda essa confusão.
- Lembrem-se tudo que for dito - enfatizou o serviçal - com certeza será usado contra você neste julgamento público. Se não tiver como se defender sozinho, peça aos nossos deuses piedade e reencarnem para a próxima vida. Se for sua última das sete, poderão se despedir de seus entes queridos.
Ana ficou embasbacada que eles tinham realmente sete vidas e que ela não deveria ser julgada como os gatos! Ela só tinha uma! Era humana!
- Apresentemos os casos da direita para a esquerda - olhou o serviçal para os supostos criminosos - O primeiro suspeito é acusado por cheirar erva mate, erva, meu caro público, destinada exclusivamente para autoridades acima de marqueses, sendo este, o visconde Roberto de Magalhães, claramente duas categorias abaixo do esperado - e então questionou - O que tem a dizer em sua defesa, "visconde R. de Magalhães"?
- A noite lunar é de celebração e alegria, não faria tal ação se fosse um dia comum, a erva mate é sagrada e deve ser consumida com cuidado, mas meus instintos felinos foram mais fortes, peço perdão a rainha e - enfatizou o visconde - a todo o reinado, já que muitos nunca sequer viram um raminho em sua vida.
O público sacou pequenos rojões de bolso e tacaram no chão e a cada pequeno estouro, a rainha percebeu que tal lei talvez devesse ser revista, afinal não havia seca por 5 anos e todos estavam ansiosos para poder voltar a consumir a erva sagrada e a última coisa que precisavam era de uma revolta popular, ainda mais com a tensão de guerra com os países “abaixo”.
Ela então se levantou e com a voz clara disse:
- O senhor visconde R. de Magalhães não o fez com intenção de prejudicar a realeza, mas seus atos ainda foram errôneos e por isso terá a dívida de 2 mil "gatotas" a serem pagos em três meses.
O público aclamou como em um belo coral:
- Que seja feita a vontade da rainha!
Ana percebeu que teria que ganhar o favor do público e da rainha se quisesse sair com vida, ela olhou para o visconde como se quisesse sua ajuda, mas este não poderia falar por ela, as leis declaram que cada um deve fazer sua própria defesa ou rezar aos deuses por ajuda. Ela pensou o melhor que pode, mas o tempo já tinha se esvaído quando ouviu:
- A próxima suspeita é essa "best…" - o serviçal engasgou com olhar da rainha - quero dizer, esta criatura de origem desconhecida, que atrapalhou a nossa sagrada festividade com sua bestialid..., quero dizer, com sua falta de modo. E ainda deu cotoveladas em nosso querido príncipe, George II, com a intenção de matá-lo, de acordo com o mesmo. O que tem a dizer em sua defesa, criatura?
- Para começar meu nome é Ana, Ana Beatriz dos Santos - disse com certa firmeza - E eu não queria atrapalhar suas festividades, até ontem eu estava em minha casa nos Países Baixos e...
Então foi interrompida pela própria rainha:
- Levem-na para questionamento privado, agora!
O público vaiou Ana "sangue ruim!", "espiã!" e tantos outros nomes que ela ficou sem entender, pois Ana não sabia que estava no reino País do Baixo Norte e que naquele mesmo continente, abaixo do Baixo Norte ou mais ao sul, existiam os Países Baixos, ou Países “abaixo” como os locais costumavam chamar e eram um conglomerado de pequenas regiões, que lutavam contra o sistema monárquico.
Entre tantos “baixos”, País do Baixo Norte e o Países Baixos, estes ficavam abaixo do norte e tinham como logo “Países Baixos, um abaixo a monarquia do País do Baixo Norte!” que Ana baixou o santo enquanto gritava “Tenho direitos!!! Não sou gata!!!! Sou humana! Sou mulher trabalhadora!! Pago meus impostos!!”. E então choramingou “Maldita aula de geografia, devia ter falado Holanda, ninguém usa Países Baixos mesmo… Maldita vontade de ser politicamente correta…”
E o julgamento continuou com o terceiro suspeito, que havia usado o garfo de sobremesa para comer o prato principal, um absurdo, já que ele era um dos filhos do Duque de Caxias, mas fora absolvido em segundos com o pagamento de 500 gatotas, que sua família já havia mandado de antemão.
E durante todo o processo, o príncipe se roeu de raiva, só pensando no dia que ele seria o grande monarca de todos e que três oportunidades foram perdidas ali.
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