“Vai ficar tudo bem”.
Foram as últimas palavras que aquele grupo de humanos ouviu antes de serem brutalmente assassinados por um soldado inimigo.
Eu não pude cumprir com a minha palavra e agora aquelas vidas se tornarão apenas mais poeira no chão, não serão lembradas nem por nós nem por seus iguais daqui uns anos.
É esse o peso de uma vida humana? Será que os anjos adoradores da boca divina estão realmente certos? Tento afastar esses pensamentos intrusivos.
- Leviatã. Mais quanto tempo vai ficar aí rezando? Temos trabalho pra fazer, lembra? – Samael surge do nada e o som da sua voz se aproximando cada vez mais expulsa essas lembranças dolorosas, mesmo que momentaneamente.
- Eu... Já estou terminando. – Finalmente abro os olhos, mas ainda assim consigo ver a morte, o sangue... A crueldade e matança proporcionada pelos adoradores da boca divina... Vejo tudo bem aqui na minha frente, como se estivesse vivendo duas realidades ao mesmo tempo. Meu Deus, as pessoas que eu fui incapaz de salvar—
- Ei, - Samael pega em meus ombros e seu olhar penetrante me atravessa – Em que você tá pensando?
Eu coloco a mão na cabeça e me afasto como se estivesse sendo afligido por alguma doença, como se possuísse o corpo frágil de um humano. - Tá tudo bem... São só algumas lembranças ruins vindo à tona.
- Lembranças ruins, é...? – Samael continua a falar, sem tirar os olhos de mim por um segundo, sem sequer piscar – Leviatã... Como um soldado você ainda tem um grande problema. Um problema que tem desde que começamos o treinamento e mantém até hoje. Você pensa demais.
- Eu sei. - Desvio o olhar e dou uma pequena risada, tentando aliviar o tom sério da conversa - Não é a primeira vez que eu ouço isso de você, Samael.
- É que parece que você ouve, mas não escuta!
Viro o rosto de volta pra Samael e encontro seus olhos fixos, ainda sem piscar, demonstrando sua genuína preocupação.
- Eu tô bem. Sério.
- Não. Claramente não tá. Você tá sempre pensando em tudo e todos, menos em você!
- Se preocupar comigo é o seu trabalho, né? – Brinco.
Ignorando minha resposta Samael abre os braços e continua o sermão – Eu tô falando sério! Você não pode ficar remoendo o passado e pensando em quem não conseguiu salvar. A culpa dessas mortes não é sua.
- Sabe de quem é? – Ele se exalta e cutuca a própria cabeça repetidamente. - Você sabe quais os anjos que realmente deveriam estar pensando muito no que fizeram? Sabe, não é?
- Os adoradores da boca divina.
- Exato! A culpa de todo o sangue derramado nessa guerra é desses miseráveis, não nossa. São eles quem estão comendo os humanos e sacrificando as próprias vidas pela maldita Divindade da Boca! A gente faz o que a gente pode pra impedir eles, Leviatã... – Finalmente volta a sua postura calma – ...Mas infelizmente não dá pra salvar todo mundo.
- Eu sei... – Concordo com tristeza afinal esta é a realidade que temos que enfrentar diariamente. A realidade que eu me recuso a aceitar.
- Vamos lá – Samael faz um gesto com a mão, me chamando pra fora do templo da Divindade do Olho. – Não temos tempo pra pensar demais.
Samael... Eu agradeço muito por tê-lo como amigo.
- Vamos.
Do lado de fora do templo, na cidade dos anjos, nós pisamos os pés sujos e descalços no chão liso, quente e sem cor que se perpetua por toda a cidade que flutua no céu.
- Heya! Como vocês estão? – Nos esperando lá fora estava o humano de estimação de Samael, que é como eu chamo carinhosamente, Enoque, o pesquisador humano que nos acompanha em nossas expedições. Ele deveria ser útil por que anota tudo que pode ser necessário para nossas futuras estratégias de guerra... Mas eu sinceramente acho que ele mais atrapalha do que ajuda. Samael, porém, insiste na ideia de levar esse cara com a gente pra todo lado.
Eu sei, os humanos podem ser muito inteligentes e criam armas incríveis que nos auxiliam muito em guerra, mas quando se trata de ficar na linha de frente eles não são os melhores. Quando um coitado desses fica sozinho contra um soldado inimigo a chance de sobrevivência é praticamente zero, mas, ei, o nosso trabalho é evitar isso, não é?
- Estamos bem! – Eu respondo com um sorriso a pobre criatura e o agarro com força me preparando pra voar.
- AH. eu nunca vou me acostumar com isso, né?! – Diz o humano amedrontado com mais uma de nossas odiosas sessões de voo.
- Provavelmente nunca. – Respondo com um sorriso.
E com um bater de asas sincronizado, graças há anos de treinamentos juntos, eu e Samael voamos em direção a um dos lares de humanos refugiados para ajudar com a segurança do local.
Chegando lá, nós nos encontramos com outros anjos da nossa tribo e conversamos brevemente até um deles me contar sobre uma humana que estava prestes a parir um pequeno homenzinho. Com um olhar rápido Samael já entende que eu quero ir ver o acontecido e me acompanha até a tenda onde a mulher humana estava.
Até hoje eu me lembro perfeitamente da primeira vez que vi um nascimento. Também era o bebê de uma humana. E acho que por isso partos sempre me comovem. Ver o nascimento de uma vida... É justamente o oposto do que meus olhos estão acostumados a presenciar.
Esse é um acontecimento que sempre me enche de esperança. Esperança de que talvez, quando essa guerra acabar, nossos olhos se acostumem mais com o vislumbre de uma vida nascendo do que dela acabando...
Mas, droga. Eu cheguei cedo demais, um dos humanos responsáveis pelo parto me diz que a bolsa havia acabado de estourar, ou seja, ainda teria algum tempo até o bebê sair de lá... Argh, é uma pena. Isso me enche de ansiedade. Mas planejo ficar aqui e esperar para ver tudinho, afinal as redondezas parecem estar seguras—
- Samael, Leviatã, a postos. – Um anjo chega para nos dar más notícias - Temos sinal de ataque inimigo.
Minha mente acelera e meu foco muda completamente para o exterior enquanto eu e Samael pegamos nossas armas e voamos rapidamente para o campo de batalha.
Eu vejo o inimigo: Varias criaturas humanoides aladas que já não podem sequer serem consideradas anjos, e muito menos humanos. Os adoradores da boca maldita.
E nesse momento, tudo o que eu consigo pensar é na criança prestes a nascer e nas vidas humanas que eu preciso salvar.
- Vai ficar tudo bem. – Ao meu lado Samael me apoia, física e mentalmente.
- Vamos lá. – Respondo.
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