Como já é de costume, acordei antes das 6h. Fui até o banheiro e tentei ficar arrumado para o primeiro dia de aula. Na escola, a gente usava uma farda, só que eu ainda não havia comprado a minha, então, o look do dia seria uma calça jeans azul, uma blusa branca e meu tênis branco.
Tomei banho e chamei meus irmãos, pela primeira vez, eles são lerdos demais. A tia Olívia saiu toda descabelada do quarto. Ela era a única com um banheiro no quarto, entretanto, preferia usar o do corredor por causa do espelho gigante.
Vesti a roupa, olhei a foto dos meus pais e desejei sorte a mim mesmo. Afinal, não conhecia o ambiente escolar do Amazonas, ainda mais em um colégio público.
— Acordem, Richard e Giovanna!!!! — gritei no corredor.
— Vish. Coitado. — reclamou Giovanna saindo impecável do quarto. — Estou acordada há duas horas. Acha que é fácil fazer toda essa produção? — descendo às escadas, deixando um cheiro adocicado no ar.
Sim. A rotina da volta às aulas deixava minha casa uma loucura. A minha tia não era tão organizada quando se tratava de coletividade. Os meus irmãos iam de carona com ela, porque era caminho, e eu pegaria carona com meus amigos, ou seja, a gente ia de ônibus.
O lado bom é que qualquer ônibus que passasse no Centro da cidade servia para nós. Os encontrei no ponto do ônibus, eles estavam vestindo a mesma farda, e logo, eu também estaria.
Enquanto a gente aguardava o ônibus, os meus amigos deram algumas dicas. Quase um manual de sobrevivência da Escola Dom Pedro II. Primeiro lugar, ter cuidado com a tia Ray, a inspetora, qualquer erro e podemos pegar uma suspensão. Em segundo lugar, não tomar a sopa do Mocotó, muitos alunos já foram parar no hospital. A terceira dica foi evitar sentar na frente, principalmente, na aula do professor de matemática. O motivo? Ele cuspia.
Depois, os quatro começaram a relembrar algumas coisas que aprontaram nos últimos anos. Como por exemplo, um catolé (espécie de bombinha) que o Brutus jogou no banheiro feminino. O beijo que Letícia deu em cima da caixa d'água da escola. A Ramona que começou um pequeno negócio de traficar respostas de provas. E, por último, o Zedu que quebrou a janela do 2º ano B com a bola de futsal.
O ônibus chegou e Ramona fez sinal para entrar. Caramba, estava lotado. Não haviam mais acentos disponíveis, então, passamos pela catraca e abrimos caminho até a parte de trás. A cada nova parada, o coletivo ficava mais cheio, até que um homem começou a se esfregar em mim. Fiquei desconfortável com a situação, o Zedu percebeu e ficou na minha frente.
Ficamos em um ponto próximo à escola. Fomos andando e vários alunos também seguiam o mesmo caminho. Olhei para o lado e meus amigos estava todos sorridentes. Eu queria muito ser confiante como eles eram, mas não conseguia. A escadaria do colégio estava lotada de estudantes, alguns se abraçavam, outros falavam alto e não era nem 8h da manhã.
A partir desse momento, comecei a perder os meus amigos. Letícia encontrou algumas amigas, um grupo bem descolado, ela se despediu e ficou no meio do caminho. Brutus foi chamado pelos seus colegas de futebol e parou também para conversar. Ramona fez várias selfies na frente da escola e surtou quando encontrou uma professora, pediu licença e foi falar com ela.
Eu não conhecia ninguém, exceto meus amigos de bairro. De repente, os rostos sorridentes se transformaram em figuras abstratas. Fiquei um pouco zonzo e Zedu pegou no meu ombro.
— Ei, relaxa. — pediu Zedu apontando para frente. — Ali naquela parede tem o nome de todos os alunos. Vamos descobrir em qual sala estamos.
— Ok. — falei caminhando ao lado do Zedu.
De repente, uma voz feminina chama o nome do Zedu, no caso, José Eduardo. Ela era perfeita. Seus cabelos loiros começaram a voar por causa do vento. Sua pele refletia uma luz que nunca vi na vida. A farda da escola a deixava com um busto grande, por um momento pensei em silicone.
Sem qualquer respeito com o âmbito escolar, a garota deu um beijo cinematográfico no Zedu. Ali, na minha frente! Queria que um buraco se abrisse no chão e me engolisse. Não ia achar ruim, juro. Já tinha perdido o Léo e, agora, esse projeto de Regina George mostrava que o Zedu era hétero de verdade.
— Oi. Que bom dia mais atrevido. — soltou Zedu se recuperando do beijo.
— Vai dizer que não gostou? Senti tanto a sua falta. Você não me ligou. — disse a patricinha comprovando a minha inexistência.
— Sabe como é. Queria distância de tudo que me lembrava a escola. — falou Zedu sorrindo e depois pegando no meu ombro. — Ah. Esse é o meu amigo, Yuri. Ele veio do Rio de Janeiro e vai estudar conosco.
— Bem-vindo. — desejou a garota beijando meu rosto duas vezes. — Sou Alicia, espero que goste da nossa escola. Amor, precisamos falar com a Carol, acredita que ela viajou para Paris? Quero saber de tudo. Vamos. — Zedu foi praticamente forçado a ir.
Pronto, finalmente, sozinho. Andei até o quadro de avisos e comecei a pesquisar meu nome. Já fiquei irritado, pois as letras eram minúsculas e precisei aproximar meu rosto do papel.
— Você deveria usar óculos. Parece um míope. — comentou um rapaz com uma barba rala.
— Oi? — perguntei virando de uma vez.
Oi, moço. O garoto era bonito, não posso negar. No braço esquerdo, ostentava uma tatuagem do Pequeno Príncipe. Que era o Pequeno Príncipe cercado por vários planetas. Ele usava um alargador na orelha direita e seus cabelos cacheados receberam mais creme que o normal, talvez tenha sido a pressa para chegar na escola.
— Um míope, uma pessoa que não enxerga direito. — ele soltou usando os dedos indicadores para tocar uma bateria invisível.
— Eu sei o que é míope. E não, ainda não tenho nenhum tipo de problema na visão. — falei mais grosso do que queria parecer e voltando minha atenção para a lista. — Ah... achei... 1° ano – B – sala 2. — indo para a direita.
— É na outra direção. — avisou o rapaz.
— Obrigado. — agradeci indo pela direção indicada.
Cheguei no lugar que seria torturado por um ano. A sala até que era bonitinha. Além do ar-condicionado, a sala contava ainda com um ventilador, alguns alunos estavam com casacos, enquanto outros de moletom. Obrigado pelo aviso galera. Ia congelar no meu primeiro dia de aula.
Para minha surpresa, o rapaz que me abordou no quadro de avisos também entrou na sala e sentou no fundão. Não demorou muito e Letícia entrou, ainda não tinha decidido em qual carteira sentar, ela relembrou a história do professor de matemática e sentamos no meio. A Ramona chegou toda feliz, pois, conseguiu uma vaga no comitê de formatura.
— Meninas. — falei baixinho. — Quem é aquele esquisitão? — fiz sinal para o rapaz barbudinho.
— O nome dele é Diogo. Um ogro, trata todo mundo mal. — cochichou Letícia, que teve a opinião endossada por Ramona que fez várias críticas.
— É. Eu percebi. — falei evitando olhar para trás.
— Ei! — exclamou Brutus chamando a atenção dos alunos que já estavam em sala. — Vocês me abandonaram. — se aproximando da gente.
— Eu que fui abandonado por vocês. — comentei fingindo estar chateado, mas rindo logo em seguida.
— Parem de drama, os dois. — pediu Letícia apontando para o Brutus e eu.
Não muito longe dali, os meus irmãos também começaram uma nova jornada. Claro, que para eles a adaptação era mais fácil, infelizmente, para os outros alunos isso significava problemas.
No playground do colégio, Richard, começou a ditar várias regras. O capetinha reuniu um grupo e parecia um político, fazendo várias promessas e ameaças. Os outros estudantes não entenderam nada, até que o meu irmãozinho pegou um deles e exigiu uma maçã. Por sorte (ou não), Giovanna viu e tentou intervir.
— O que significa isso? — questionou minha irmã com as mão na cintura.
— Nada. — disse Richard segurando o garoto pelo pescoço.
— Me ajuda. Ele é louco. — implorou o aluno que se sentiu acuado.
— Solta o menino. — Giovanna pediu novamente, dessa vez, revirando os olhos.
— Queria pegar a maçã. — explicou Richard.
— Maçã, cadê?
— Dá a maçã pra ela. — ordenou Richard ainda segurando o colega que entregou a maçã para Giovanna.
— Obrigada. — agradeceu Giovanna. – Ah, e solta o menino. Agora!
— Aff. — soltou Richard soltando o colega. — Estraga prazeres.
A primeira aula que tive foi de Matemática, o professor parecia ser legal, porém, parecia uma pistola d'água. Os alunos desavisados sentiram na pele como é ser 'regado'. Só fiquei chocado com o cronograma de conteúdo, pois, a maioria havia estudado na escola do Rio de Janeiro. Após uma hora de cuspe e tédio, o sinal tocou e todos saíram apressados da sala.
Fiquei só novamente, os meus amigos foram resolver seus problemas e a vaca da Alicia não soltava o Zedu. Peguei o lanche que era um mingau de mungunzá e andei até uma área isolada, ficava atrás da quadra esportiva. Não vou mentir, para comer gostava de ficar sozinho. Conseguia pensar nos problemas da vida, refletir sobre as decisões que tomava e não precisava me apressar.
— Você quer? — perguntou Diogo me oferecendo um cigarro.
— Eu não fumo, obrigado. — agradeci sem olhar diretamente para ele.
— Está gostando da escola? — questionou Diogo, enquanto acendia o cigarro e tragava.
— É legal. — respondi.
Dei uma chance para o Diogo, afinal, precisava criar novos laços na escola. E, aparentemente, todo mundo respeitava/temia o Diogo. Ele poderia ser um ótimo aliado no ambiente escolar. Além do comportamento, outro defeito dele que eu detestava era o cigarro, só que ninguém é perfeito, né?
Reparei que o Diogo usava óculos de grau, então, fiz uma piadinha com ele. A gente acabou rindo. Ele mostrava um lado diferente para mim. De repente, o Zedu apareceu e perguntou se estava tudo bem.
— Sim, porquê não estaria? Olha. — apontei para frente. — A sua dona tá te procurando.
— Putz. Deixa eu ir lá. Qualquer coisa me manda uma mensagem. — orientou Zedu como se fosse responsável por mim.
— Típico. — murmurou Diogo dando uma tragada no cigarro e soltando a fumaça aos poucos.
— O que foi?
— A tensão entre vocês.
— Que tensão?
— Você gosta do gatão ali. — ele disse apontando para Zedu que conversava com Alicia.
— Sai fora, cara. — falei levantando e indo em direção a cantina para deixar o prato.
Enquanto passava no corredor que dá acesso a cantina, ouvi algumas piadinhas. Era o grupo de futebol da escola, parece que o ano não seria fácil para mim. Andei em passos largos e entreguei o prato.
Voltei para a sala de aula e não havia ninguém. Sentei na minha carteira e me senti solitário. Estava com raiva dos meus amigos, mas por um lado entendia que eles tinham suas vidas.
O Zedu e a Alicia se conheceram na quinta série, e logo, se tornaram um casal. Na verdade, o Zedu era considerado do cachorrinho da patricinha. Eles iam juntos para todos os cantos da escola. Enquanto a Alicia conversava com as amigas, o meu crush desejava morrer, porém, não largava da namorada.
— Está aqui o seu suco. — falou Zedu entregando um copo para a namorada.
— Graças a Deus. — pegando o copo e tomando. — Meninas, a gente vai para a sala. Beijos. — Alicia se despediu das amigas e seguiu para sala com Zedu. — Demorou muito.
— A fila da lanchonete estava cheia.
— E o que você acha de a gente ir para o porão? — sugeriu Alicia fazendo uma voz engraçada.
— Estou sem preservativo.
— Não tem problema. Eu tomo a pílula. — terminando de tomar o suco e jogando o copo na lixeira.
— Não estou afim.
— Nossa. Você mudou de volta das férias. — reclamou a patricinha.
— Sim, as pessoas mudam Alicia, isso, às vezes, faz bem. — Zedu falou antes de entrar na sala.
— Nossa. Todo estressadinho.
O Zedu entrou na sala e fechou a cara. Em seguida, o Diogo também entrou e sentou ao meu lado. Ele pediu desculpa pelo comportamento. Para o bem ou mal, o Diogo estava falando comigo. Conversamos sobre diversas coisas, como por exemplo, ele ser de Belém, gostar de cinema e ser fotógrafo nas horas vagas.
Apesar de conversar com o Diogo, a minha atenção estava toda no José Eduardo. Ele parecia realmente chateado com alguma coisa. O Diogo começou a falar todo empolgado sobre uma exposição de fotografia e me convidou. Nem sei o motivo, porém, acabei aceitando. A gente trocou os nossos números para marcar melhor o rolê cultural.
— Tá, tudo bem? — perguntou Zedu, assim que Diogo saiu.
— É a segunda vez que você pergunta isso hoje.
— Não quero que nenhum babaca mexa com você. — ele falou sentando ao meu lado.
— Ele estava sendo amigável.
— Amigável, sei. Precisa tomar cuidado com esse tipinho. — alertou Zedu subindo a sobrancelha direita e me fazendo rir.
— Relaxa. Se eu precisar te chamo, juro.
O resto da aula foi até que legal. O professor de artes era muito engraçado, além de bonito. A parte chata? Se apresentar para o resto da turma. Depois da aula terminar, seguimos direto para o ponto de ônibus. Nossa, o Centro de Manaus está lotado no horário do almoço. Vi o Diogo de relance em um dos ônibus.
Por um milagre dos céus, o nosso ônibus não estava lotado. Fomos sentados e confortáveis. Zedu e eu, nos assentos da frente, Letícia e Ramona, nos assentos de trás. Já o Brutus estava em pé, segundo ele, já havia passado o dia sentado, não aguentava mais.
Os meus amigos fizeram mil perguntas sobre o primeiro dia de aula. Nunca falei tanto na minha vida, mas no geral, a experiência não foi tão ruim. Afinal, teoricamente, fiz até um amigo novo, o Diogo.
— Se eu fosse você teria cuidado com o Diogo. — alertou Zedu passando a mão no meu ombro.
— Ele te fez alguma coisa? — perguntou Letícia se curvando para se aproximar de nós.
— Pode falar, grandão... se ele te fez algo... eu... — ameaçou Brutus, quase desequilibrando quando o motorista fez uma curva.
— Calma. Ele foi legal comigo. Vocês desapareceram na hora do intervalo e ele puxou assunto. — comentei com os meus amigos que estranharam o comportamento do Diogo.
Como um dia de escola pode acabar com a nossa disposição, né? Estava acabado. Para completar, o professor de matemática passou uma lição, ainda bem que eu já sabia o assunto, então, seria fácil. A minha tia decidiu contratar um serviço de condução para os monstrinhos, digo, meus irmãos.
Para poupar dinheiro, me dispus a fazer o almoço deles. Além de cansado, ainda precisava fazer um almoço para eles. Na verdade, deixei tudo congelando na noite anterior. O cardápio era frango, arroz com brócolis e uma salada. Enquanto esperava os dois, acabei tomando um banho rápido e colocando roupas adequadas para o calor de Manaus, ou seja, uma blusa larga e uma bermuda velha.
— Estou faminta. — anunciou Giovanna chegando em casa e colocando a mochila em cima da mesa na sala.
— Estou faminta, também. — ironizou Richard jogando a mochila no sofá.
— E como foi o primeiro dia de aula? — perguntei descendo às escadas.
— Normal. Fiz várias amizades. — respondeu minha irmã indo para a sala de jantar. – Fraguinho, adoro. Frango é uma carne magra. — sentando na cadeira e pegando um prato.
— Eu também fiz amizade. Um menino até dividiu o lanche dele comigo. — falou Richard sentando ao lado de Giovanna.
— Que bacana. Escutem, depois de comer passem água no prato e coloquem no lava louças. Vocês tem que começar a trabalhar também. — expliquei para eles, enquanto sentava.
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