— Adam, acorde! — uma voz pede para mim.
— Onde estou? — balbucio ao acordar amarrado em uma cama. — Quem são vocês? — questiono para dois homens armados que me observam com desconfiança.
— Avise ao Coronel que o João Ninguém acordou. — pede um dos homens, enquanto ele me fita com uma arma. — Sem gracinhas.
— Onde, onde eu estou? — pergunto mais uma vez.
Vozes na minha cabeça. Parece que ela vai explodir. Eu grito e o homem aponta a arma na minha direção. Eu lembro de uma explosão forte e o céu nublado. Nada mais. Porque eu não consigo lembrar?
— Quem é você? — pergunta um homem alto, que está usando um casaco rajado nas cores da floresta.
— Eu, quem sou eu?
— Cara, eu não tenho tempo para jogos. Você é da IBDT? — ele pergunta, antes de sentar em uma cadeira na minha frente.
— IBDT?
— Instituto Brasileiro de Doenças Tropicais, IBDT. Você não se lembra?
— Não, senhor.
— Você fala como um militar. Olha, a nossa comunidade é pequena. Sabemos o que a IBDT é capaz de fazer, não queremos problemas. — pediu o homem e notei o desespero em seu olhar.
— Senhor, eu não estou aqui para fazer a ninguém. Me perdoe, mas eu não consigo lembrar. A minha cabeça...
— Você caiu de uma grande altura rapaz. Deve estar confuso. — uma mulher comenta ao entrar na sala. Ela é negra, seus cabelos cacheados estão presos em uma trança e seu semblante é de cansaço. — Coronel, provavelmente, não vai conseguir arrancar nada dele, ainda mais sob essa situação de estresse. O mais prudente é aguardar. — abrindo as algemas.
— Lidiane...
— Afonso, ele está muito debilitado. Não vai nos fazer mal. E, qualquer gracinha, já sabe. — pegando na arma, que está no coldre do seu cinto. — A Julieta manda bala. — piscando.
— Ok. Mandei uma equipe para a área da floresta. Preciso resolver o problema do armazenamento de água. — avisa o tal Coronel, pegando no ombro da mulher. — Atire na cabeça.
Onde diabos eu fui me meter? Eu fecho os olhos na esperança de lembrar algo, mas só um nome vem à cabeça: Adam. Esse é o meu nome? Eu sou o Adam do IBDT? Eu faço mal para as pessoas? Droga de dor de cabeça. O corpo todo está dolorido. Pelo jeito, a queda foi feia.
De maneira gentil, mas em alerta, a mulher começou a tocar em várias partes do meu corpo. A boa notícia? Eu não quebrei nenhum osso. A má notícia? Continuo não lembrando de nada. Ela coloca uma lanterna em meus olhos, aparentemente, estou confuso. Talvez, a pancada na cabeça acabou desencadeando a falta de memória.
— Moça, eu...
— Lidiane, pode me chamar de Lidiane. — pede, enquanto olhava o meu ouvido com um aparelho estranho.
— Lidiane, eu não sou bandido. Não estou aqui para fazer mal, eu só não sei quem sou. — admito, cerrando as mãos.
— Olha, rapaz. Neste mundo, não existem mais mocinhos e bandidos. É mata ou morre. Às vezes, podemos ser antagonistas na história de alguém, mesmo que o nosso lado esteja certo. Vai por mim. — aconselhou Lidiane. — Eu não vou ter medo de usar a Julieta em você.
— Tudo bem, vou fazer de tudo para não irritar a Julieta, prometo. — levantei as mãos em forma de rendição, mas a minha costela ardeu. — Droga.
— Você não lembra de nada, nadica? — quer saber Lidiane, pegando uma caderneta e fazendo algumas anotações.
— Pera aí. — respirei fundo. — Vivemos em um mundo cercado de criaturas. A sociedade antiga ruiu. Vivemos como gado, cercado por muros altos. Mas, essas informações são como fragmentos dentro da minha mente. — revelei.
— Isso é normal. Você caiu de um lugar alto. Procure descansar e, por favor, sem gracinhas. Estou cansado e preciso dormir. — ela suplica.
— Tudo bem, Lidiane. Vou me comportar.
— Administrei alguns remédios para dor. Volto em algumas horas, tudo bem? O banheiro fica no final do corredor. Tem roupas limpas sob a mesa. Com licença. — saindo do quarto.
— Adam? — pensei comigo.
— Foi uma queda e tanto. — disparou um rapaz entrando no quarto e sentando na cadeira de maneira folgada. — Me chamo Cristian, eu que te resgatei na floresta. Foi difícil, mas não existe missão impossível para mim.
Cristian. Eu lembro do Cristian. Seus olhos cor de caramelo foram as últimas coisas que eu vi antes de apagar. Porra, porque consigo lembrar dele, mas não da minha identidade? As vozes. Elas vêm e vão. São gritos e palavras fortes.
O Cristian não cala a boca. Ele parece que engoliu um papagaio. Pelo menos, ele conta mais sobre a minha aparição naquele lugar. "Um anjo caído", declara Cristian aos risos. Eu não sei quem sou, mas estou podre e preciso de um banho urgente.
— Cristian, né? — pergunto me arrumando na cama.
— Sim. — os seus olhos me fitam e fico desconfortável. — Eu preciso tomar um banho e relaxar. — tento levantar, mas acabo tombando para o lado.
— Ei. — Cristian me segura. — Calma. Você ainda está muito fraco. Eu te acompanho.
— Bah, Guri. Estou bem. — reclamo, quando sinto o toque do Cristian, mas, ao mesmo tempo, sinto uma eletricidade a percorrer o meu corpo.
— Não. Eu vou te ajudar. Você mal consegue andar em pé, Guri. — ele imita o meu jeito de falar, o que eu relevo, porque estou muito afim de tomar banho e não quero confusão. — Se apoia em mim e para de ser um cuzão.
— Com esse jeito carinhoso. A tua sorte é que eu tô um baita matungo. — afirmo, sendo amparado pelo Cristian e no fundo gostando de toda a atenção dele.
O lugar é escuro e tem um cheiro péssimo. Mas, dada a situação atual do mundo, não devo esperar muita coisa mesmo. O chato do Cristian fica me esperando do lado de fora do banheiro e não para de falar. Abro o registro e uma água fria cai sobre o meu corpo. Lá estou eu, todo esgualepado e recebendo um banho de água fria, literalmente.
— Esqueci de te avisar! — grita Cristian, do lado de fora, entretanto, parecendo estar do meu lado. — A água quente é só das 6h às 8h. São 17h.
— Obrigado! — grito de volta, mas com um sorriso no rosto. Que sentimento é esse?
A água fria corta a minha pele. Estou com dor de cabeça, mas não é por causa da queda, mas sim, porque estou pensando demais. Quero lembrar quem sou. Eu sou uma pessoa ruim? Eu sou uma pessoa boa? Aparentemente, eu sou um militar e devo ter me fodido em alguma missão arriscada. Se eu caí do céu, deve ter sido de uma aeronave. Merda. Eu preciso lembrar.
Bato com força na parede de alvenaria. Do lado de fora, o Cristian pergunta se está tudo bem. Eu minto. Eu não posso confiar em ninguém, ainda mais nesse moleque tagarela. Ao terminar o banho, desligo o chuveiro e vou até a minha pilha de roupas velhas. Eles devem ter recolhido todos os meus pertences.
Respiro fundo e visto as peças novas. Uma camisa de manga longa branca e um jeans surrado. Por hora vai servir, afinal, não tenho nenhum compromisso marcado na minha agenda. O Cristan está no meu aguardo. Ele tirou o casaco preto que estava usando. Realmente, ele é um homem bonito. Seus traços são delicados e me deixam excitado. Preciso esconder a minha ereção com a toalha.
Conforme voltamos para o quarto, analiso o ambiente que estamos. Aparentemente, é uma instalação de sobreviventes. As paredes são feitas de cimento e pintadas de branco, a luz do ambiente vem de frestas nas paredes e a maioria dos móveis são de peças reaproveitas, algumas em um horrível estado, como por exemplo, as camas.
— Então, já que você curte conversar, onde estamos? — pergunto, deixando as roupas de lado e deitando na cama.
— Estamos na Vila de São Jorge, uma área próxima a Porto Alegre. Somos em 20 famílias, umas 100 pessoas. Cara, não fazemos mal a ninguém. — afirmou Cristian, se aproximando e pegando na minha mão.
— Eu, eu não vim atrás de confusão. Só quero melhorar e seguir o meu caminho. — contei, ainda tocando na mão do Cristian, mas tirando quando as coisas ficam estranhas. — Cristian, eu preciso ir dormir.
— Tudo bem. — tentando levantar, mas tropeçando nos próprios pés e caindo por cima de mim.
Os olhos dele estão próximos aos meus. Um sentimento estranho invade o meu peito. Nossas respirações ficam ofegantes, mas nenhum de nós toma a iniciativa de se afastar. Como alguém pode mexer tanto comigo em menos de 24 horas? O meu estômago parece que vai explodir de nervoso.
Ficamos nos olhando por um bom tempo, não temos reação. É uma atração magnética e avassaladora. Um barulho acaba nos afastando. Sem graça, o Cristian fica quieto e passa a mão nos cabelos. Ele que é tão espontâneo e engraçado. Depois do momento embaraçoso, ele sai do quarto sem dizer nada. Acabo sozinho com os meus pensamentos, que estão tão bagunçados quanto meus sentimentos.
De madrugada, o quarto é invadido por um frio intenso. A enfermeira Lidiane traz uma coberta mais grossa, algo que agradeço, pois os meus dedos estão dormentes. Ela continua arisca para o meu lado e eu entendo esse posicionamento. Afinal, como ela diz, hoje em dia não existem mais vilões ou mocinhos, ou seja, é cada um por si.
Durante o sono, tenho alguns flashbacks da minha vida. São crianças. Elas estão assustadas. Na verdade, elas estão correndo de mim. Eu procuro por alguma coisa em uma espécie de instalação militar, mas não consigo encontrar.
De repente, sou atacado por uma das crianças. Tem uma voz na minha cabeça pedindo para eu deixá-la ir, mas eu não deixo. Eu a enforco. Eu não quero, mas continuo.
— Adam, não!!! — alguém grita, enquanto eu a enforco.
Aos poucos, ela desiste de lutar e se entrega. Eu não paro, mesmo com a voz me implorando para deixá-la em paz. O que isso significa? Para, Adam. Não faz isso. Para, porra! Para!
— Adam, acorde. — pede a enfermeira Lidiane, mas se assusta com a minha reação. — Ei, calma. — ela está com a Julieta apontada para a minha direção.
— Eu... eu...
— Sonho ruim? — questiona a enfermeira, ainda com a arma na minha direção.
— Espero que sim. — respondi, ofegante e com a garganta doendo.
"Adam, não!", a voz ecoa na minha cabeça.
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