Gelo e analgésico. Essas foram as únicas recomendações da médica que me atendeu no hospital. Queria ficar bom, pois tinha uma festa para ir no final de semana. O Diogo foi um fofo comigo naquela tarde. Ele ajudou a esquentar o almoço dos meus irmãos e a organizar os pratos na mesa.
Duas horas se passaram desde o acidente, meu nariz estava roxo e inchado. Quando meus irmãos chegaram da escola me senti uma atração do circo. A Giovanna fez vários vídeos para publicar nas redes sociais.
— Lembra qual foi a velocidade que a bola te acertou? — perguntou Richard subindo em cima de mim que estava deitado no sofá.
— Claro. - falei com uma voz anasalada. — Foi a primeira coisa que eu pensei enquanto estava ensanguentado no chão. "Gente, qual foi a velocidade que a bola me bateu". — fazendo uma péssima impressão de mim.
Todos riram por causa da minha voz estranha e Giovanna iniciou uma nova sequência de vídeos. Até o Diogo, traidor, entrou na brincadeira dos meus irmãos. Com raiva, mandei os dois subirem para o banho e chamei o Diogo de Judas.
— Credo, não fica assim. Ei, Yuri. Será que o Zedu me dá um autógrafo? Ele fez uma obra-prima no teu rosto. — disse Richard aos risos.
— Vão tomar banho, agora! - ordenei.
— Vocês viram? - perguntou Giovanna atuando fazendo um vídeo selfie. — E esse é mais um dia comum no circo que eu chamo carinhosamente de casa.
A campainha de casa começou a tocar. Tentei levantar, porém, estava tonto por causa do analgésico. O Diogo resolveu atender e para a surpresa dele, a visita, inesperada, era o Zedu. Ele segurava um ursinho vestido de jogador de futebol e uma caixa de chocolate.
Diogo fechou a cara e aproveitou o momento para desestabilizar o Zedu. Afinal, ele não queria nenhum competidor para alcançar meu coração.
— O Yuri está? — perguntou Zedu encabulado.
— José. O Yuri está descansando. Acho melhor você voltar outra hora. O Yuri ficou muito chateado, ele tinha em você a figura de um amigo. — soltou Diogo.
— Ele é meu amigo. Olha, Diogo, eu não devo satisfação a você. O Yuri é quase um irmão para mim e...
— E você trata seus irmãos assim? Humilha eles em frente a turma? Escuta só, cara. O Yuri é um garoto sensível e você sabe disso. Acho que o melhor que você faz agora é se afastar dele e evitar sofrimento.
— Enfim. — Zedu soltou, desistindo de discutir com o Diego e entregando os presentes. — Diz pra ele que eu passei aqui.
Diogo entrou com uma caixa de chocolate e um urso de pelúcia. Achei estranho, mas ele falou que era do Zedu, que apenas entregou os presentes e foi embora. Confesso que fiquei chateado, eu merecia, pelo menos, um pedido de desculpas decente. Agradeci a ajuda do Diogo, sem ele, aquele dia teria sido muito pior.
***
Deve ser ruim ficar dividido entre dois amores, né? O que não era meu caso, pois, o Zedu sempre foi meu grande amor, mesmo sendo hétero e tentado acabar comigo com a bola de futsal. Já tia Olívia não conseguia decidir entre o estagiário e o Juiz.
Naquela tarde, Orlando fez uma visita surpresa e a convidou para um jantar romântico. Para tentar descobrir seus sentimentos, ela aceitou.
Entre um café e outro, Orlando e Tia Olívia, lembravam de casos amigos do direito brasileiro e riam. Quem não gostou nada da situação foi Carlos, que chegou para coletar a assinatura de sua chefe.
— Dona Olívia, com licença. Estão aqui os documentos da venda das ações. — colocando os papéis em cima da mesa.
— Obrigada, Carlos.
— Não derrube nada em mim. — brincou Orlando ao ver Carlos. — Não se fazem mais estagiários como antigamente.
— Pois é. — respondeu tia Olívia dando uma risada forçada.
— Não se preocupe, senhor. —Carlos se controlou para não socar Orlando e saiu da sala.
— Então, onde paramos? Jantar.
— Isso. Você vai me pegar às 20h. — lembrou a tia Olívia.
***
A comida é a válvula de escape para os problemas que a vida joga na minha direção. O Zedu se jogava nos esportes, como por exemplo, o slackline. Ele e o Brutos começaram a montar a corda na quadra de areia do CSU, um espaço para prática de atividades. Algumas crianças se aproximaram e os dois ensinaram os pequenos.
Depois de algumas horas, Zedu resolveu extravasar o estresse na corda. Ele deu vários pulos consecutivos e altos para o padrão.
Brutus percebeu a chateação dele, porém, quando tentou conversar com Zedu, o meu crush perdeu o equilíbrio e caiu no chão.
— Você está no mundo da lua, né? — perguntou Brutus.
— O que eu fiz com o Yuri hoje não foi legal. Tentei me desculpar, mas o Diogo tava lá e...
— Realmente, não foi legal, mas também não foi sua culpa. — disse Brutus ajudando Zedu a ficar em pé. - O Diogo? O Yuri vai realmente ficar amigo dele?
— Brutus, não somos exemplos de amigos. Como o Yuri me disse, a gente já tem as nossas tribos, ele precisa encontrar a dele. — falou Zedu tirando a areia do corpo, indo até a corda e subindo novamente.
— Verdade. O grandão também não pode depender apenas da gente.
Você acha a Giovanna dramática? É porque ainda não viu a tia Olívia nos vendo machucados. Ela queria me levar ao hospital, mas, expliquei que já havia ido ao médico e não aconteceu nada grave.
Não demorou muito para a titia iniciar o discurso de pior mãe do mundo. Mas, percebi que o meu acidente não foi a única coisa que mexeu com ela. Descobri que o Orlando a levaria para jantar fora.
Ela quase desistiu, porém, a impedi e expliquei que estava bem, ou seja, cuidaria dos pestes, digo, meus irmãos. Se tem duas coisas que não se nega na vida é dinheiro e comida de graça.
No Rio de Janeiro, a gente tinha um costume, coisa que fazíamos com os meus pais e continuamos com a tia Olívia. Dançar. Eu sou um péssimo dançarino, porém, a dança consegue tirar tudo de ruim que tem dentro da nossa alma.
Reuni os meus irmãos e expliquei a situação da tia Olívia. Giovanna correu para fazer uma maquiagem dos anos 80. Procurei a música perfeita e conectei o celular nas caixas de som da sala. O único que foi forçado a participar foi o Richard. Ele ficou lindo com uma peruca colorida e os óculos dourados que compramos no ano novo.
A Tia Olívia estava na cozinha, esquentando a janta, ou melhor, aquecendo, já que ela comprou no restaurante italiano. Ainda faltavam alguns minutos para o encontro com Orlando. O tempo necessário para elevar o alto astral dela.
Dei play na música, a Giovanna entrou na cozinha ao som de "Girl Just Want To Have Fun", da Cyndi Lauper. A minha irmã colocou uma boa cor de rosa no pescoço da titia. Ela olhou, desacreditada, para os três sobrinhos que dançavam na cozinha.
— Crianças? — ela perguntou rindo.
— A senhora conhece as regras. — Giovanna falou pegando na mão da titia e a fazendo dançar.
— A mãe de vocês, vou te contar. Que tradição mais besta.
— Menos falatório e mais dança. — pedi ofegante, tentando fazer passos dos anos 80, sem sucesso claro.
— Estou sendo obrigado! — gritou Richard dançando e rindo.
Sim, mesmo na bagunça de nossas vidas, conseguimos agir como uma família de verdade. Naquele momento, não havia dúvidas, constrangimento ou medo. Éramos apenas três filhos e uma mãe dançando na cozinha. Peguei o Richard no colo e o rodei. Ver a alegria no rosto dos meus irmãos era impagável.
***
Não muito longe dali, o Diogo ajudava Hélder nos preparativos de seu aniversário. Eles foram pegar bebidas na distribuidora junto com George. Além do aniversário de Hélder, George preparava uma surpresa para o namorado, um pedido de casamento. Então, nada poderia sair errado.
— E se ele falar não? — perguntou George para os amigos.
— O Jonas? Desesperado do jeito que é. O sim é garantido. — Hélder pegou no ombro de Hélder para encoraja-lo.
— O Jonas te ama. Ele nunca negaria um pedido desse.
Para alegrar George, Hélder começou a fazer perguntas ao meu respeito e Diogo ficou todo sem graça. Afinal, a gente se conhecia a apenas poucos dias, então, namorar estava fora de cogitação.
— Ele é apenas um amigo. Fora que estou planejando morar em Portugal. Esqueceram?
— Nem me lembre que vou te perder. — falou Hélder de forma dramática arrancando risos dos amigos.
— É sério. O Yuri é lindo demais, mas agora não quero um relacionamento.
— Mas não precisa namorar, Diogo. Uns beijinhos estão ótimos. — brincou George.
— Vamos parar? O foco da conversa é o seu relacionamento com o Jonas. — Diogo ficou vermelho e repreendeu os amigos.
***
A missão com Tia Olívia deu certo. Ela encontrou Orlando e teve um ótimo encontro. Resolvi lavar as louças da janta e despachei meus irmãos para os seus quartos. De repente, uma forte chuva começou a cair na cidade.
Sério. Algumas chuvas são tão fortes que parecem furacões. Recebi uma mensagem do Zedu. Ele estava do lado de fora, no meio do temporal. Abri a porta e o deixei entrar.
O Zedu estava tremendo de frio, por isso, o levei para o quarto e entreguei uma toalha limpa. A chuva continuava a cair e os trovões ficaram mais forte, a energia ameaçou acabar, porém, foi apenas um susto.
— Acho melhor eu ir. — Zedu disse me entregando a toalha.
— Cê tá louco? Pode pegar um resfriado. Tira a roupa. — pedi passando a toalha nos cabelos de Zedu.
O meu rosto ficou próximo ao dele. Consegui sentir o aroma suave do perfume dele. Os olhos do Zedu eram castanhos claros, conseguia me ver pelo reflexo deles. Continuei a enxugar os cabelos dele sem medo. O Zedu conseguia trazer um lado meu que eu temia, o Yuri corajoso.
— Não quero incomodar. — ele soltou segurando minhas mãos, percebi que ele estava tremendo.
— José. - falei de uma forma áspera. — Você não vai sair no meio dessa tempestade. Tira essa roupa que vou colocar na secadora.
O maior problema em ser gordo é que nossas roupas não servem aos amigos. Então, a única maneira era secar todas as roupas do Zedu. Só não reclamei mais, pois ele usava apenas uma toalha branca. Coloquei todas as peças na secadora e respirei fundo para não fazer nenhuma loucura.
***
A tempestade atingiu toda cidade de Manaus, ou seja, o trânsito ficava uma desgraçada. Sério. Nunca vi. Nesses poucos meses em solo manauara, percebi que os motoristas esquecem como se dirige durante a chuva. A minha tia e Orlando ficaram presos no trânsito, enquanto o mundo desabava em água.
— Acho melhor a gente parar. — sugeriu Tia Olívia fazendo força para enxergar o caminho.
— Vamos parar na parte alta. Essa rua costuma alagar. Ainda mais aqui no Centro. — informou Orlando, ligando o ar quente para desembaçar o vidro.
— Nossa. — titia nem teve tempo de falar e um forte trovão caiu a fazendo gritar. — Espero que os meninos estejam bem.
— Você é uma tia muito zelosa. Eles têm sorte de ter você.
— A sortuda sou eu, Orlando. Aprendo muito com eles. Acho que sou uma pessoa melhor por causa deles. Não é uma tarefa fácil, ainda mais com a Giovanna que é tão geniosa.
***
Em casa, Zedu e eu, ficamos assistindo à um programa de televisão, na verdade, uma competição de doces. Sempre gostei desse tipo de programa, mas meus favoritos nunca vão para a final. Nesse tipo de programa, o vilão sempre se destaca e perde para a pessoa boazinha que, geralmente, é péssima.
O Zedu continuava apenas de toalha, percebia que ele queria dizer algo, porém, nada saia de sua boca. A secadora apitou e fui até a área de serviço pegar as roupas dele. Quando virei, o Zedu estava parado atrás de mim.
Quando encostei no ombro dele pude sentir a vibração de seu coração, rápido e frequente. Do nada, o Zedu me abraçou e, pela primeira vez, não fugi e o abracei de volta. O meu amigo começou a chorar e ficamos abraçados por quase cinco minutos. Seria o momento perfeito para uma declaração de amor, né? Só que no final, o Yuri corajoso não era tão corajoso assim.
— Eu não quis fazer isso. — disse Zedu com a voz rouca.
— Ei. - me afastei de Zedu e limpei suas lágrimas. — Foi um acidente, essas coisas aconteceram. Não chora.
— O pessoal da escola. Eles, eles gostaram do que eu fiz. Todos riram e pensaram que fiz de propósito. Yuri, eu nunca teria coragem de te machucar.
— José Eduardo. Você é o meu melhor amigo. — peguei no rosto do Zedu e sorri. — Dentre todas as pessoas do mundo, você é o único que não teria coragem de me machucar. Se tem um culpado nessa história é a Ramona que correu para frente da trave.
Um forte trovão caiu e, por impulso, abracei o Zedu novamente. As luzes desligaram e o Yuri corajoso apareceu. "Você é o meu melhor amigo, não esqueça disso", falei perto do ouvido dele.
Como estava tarde, o Zedu ligou para a mãe e pediu para dormir em casa. Infelizmente, ele colocou a bermuda e me fez rir ao colocar as toalhas amarradas na cabeça.
Enquanto isso, a tia Olívia teve uma noite agradável com Orlando, só que precisava conversar com ele sobre um assunto muito delicado. Ela tentou durante o jantar, mas sempre acontecia algo, como por exemplo, um antigo amigo de Orlando que foi até à mesa ou a garçonete que derrubou um copo de vinho no chão.
Nessas situações de estresse, a minha tia começava a suar demais. Ela pegou um lenço de papel, tirou os óculos e limpou o suor da testa. Finalmente, após muitos rodeios, o assunto veio à tona.
— Eu transei com outra pessoa. — soltou a tia Olívia com a delicadeza de um guindaste.
— Bem, Olívia. Isso não é algo para se conversar durante um jantar, mas... — Orlando tomou uma taça de vinho e pensou com cuidado nas palavras. — Você é solteira, eu sou solteiro. Estamos nos conhecendo.
— Desculpa. Desculpa, te falar dessa forma, só que estou tentando te avisar há tanto tempo.
— E você gosta dessa pessoa?
— Não sei. É muito confuso pra minha cabeça, eu não quero machucar ninguém nessa história.
— Olivia. Já vivi muitas coisas na minha vida. Sei ter paciência. Leve o tempo que você precisar. — garantiu Orlando pegando na mão da titia.
— Obrigada. Isso é importante para mim.
Sou uma pessoa com uma rotina noturna bem estabelecida. Gosto de estudar, assistir séries (enquanto janto) e ouvir músicas até dormir. Só que naquela noite era diferente. Eu tive uma visita mega-hiper-ultra especial, o senhor José Eduardo. Ficamos ouvindo música no meu celular até a energia retornar, então, subimos para o quarto.
A minha cama é grande, adoro ter espaço para dormir. Sou o tipo de pessoa que dorme de bruços e espalhada pela cama. Mas, como estávamos apenas o Zedu e eu, resolvi que dormiríamos juntos. A gente passou a noite conversando sobre diversos assuntos. Contei mais sobre os meus pais e ele lembrou as histórias que viveu ao lado da avó.
Outro fato sobre mim? Coloco o ar-condicionado no máximo, no caso, na menor temperatura. Adoro o frio. Em Manaus, até às noites são quentes, então, o splitter reina absoluto. É engraçado, né? Apesar de curtir baixas temperaturas, durmo com um edredom super quentinho.
O Zedu não dorme, ele apaga do mundo, juro. A gente estava conversando sobre a professora de história, que é a minha favorita, e ele, simplesmente, dormiu, sem ao menos dizer boa noite. O cobri com o edredom e virei para dormir, mas a dor no nariz não deixou, ou será que era outro motivo?
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