Aviso: Esta obra menciona relacionamentos tóxicos, machismo e abuso de poder.
Theo pensou em levar Samir consigo para Lamb’s Conduit Street quando buscou a tela vazia para os Doyle. Mas como explicar para o anglo-egípcio os pormenores daquele caso sem parecer um candidato ao asilo de insanos de Bedlam?
Contentou-se em pegar um coche de aluguel sozinho, e tentou organizar os pensamentos enquanto carregava o pacote, agora tão leve, quase tão desprovido de vida quanto ele próprio.
De todas as coisas que tinham acontecido, o fato de Prosérpina ter visto sua vida de camarote não era o que mais o incomodava. Quando pensava nos atos que compunham aquele apartamento — Eliza, os pintores, as noites em que falava sozinho em holandês para não perder o som do idioma paterno, para ter alguma coisa que fosse da casa que se foi —, deveria morrer de vergonha, não deveria? Quão ridícula sua existência deveria ser para uma criatura que estava acostumada com o luxo de um palácio!
Porém, não conseguia sentir vergonha. Ela tinha visto tudo, e daí? Ele não tinha por que esconder o modo como tocava seus dias. Claro… Eliza… Aquilo era vergonhoso — não o ato em si mesmo, as tentativas frustradas de Eliza em seduzi-lo ou convencê-lo a voltar a ser o brutamontes que um dia tinha sido. O que o envergonhava, de certa maneira, era saber que Prosérpina fora testemunha de quão estéril era tudo aquilo, do quanto não havia de amor ou desejo genuíno. Será que Prosérpina compreendia que, quando conversavam daquele jeito truncado, conseguia partilhar mais sua intimidade do que com as carícias tortas de Eliza Silver? Que quando ele pousara a mão na tela para tocar seus cabelos, teria dado a vida para poder acariciá-la de verdade? Que sonhara em enroscar os dedos naqueles cachos dourados e no brocado do vestido?
Que sonhara em ser beijado de verdade por alguém?
E quando ela o puxara para si…
A cada cinco minutos, levava o polegar aos lábios, assustado, porque sentia como se tivesse sido queimado.
Deus morava naquele tom de vermelho. Deus e todas as belezas do mundo, e tudo o que ele tinha sonhado por anos.
Mas Deus não o ouvira — aquela mulher parecia de verdade, mas não era real; quando se lembrava disso e tocava os lábios, e via que ainda era o mesmo, o calor do rosto arrancava lágrimas amargas.
Aquilo era um pesadelo, isso sim. E assim que pudesse, esganaria Pasha Doyle até ver a luz escapar daqueles olhos místicos. O que Theo tinha feito para merecer aquilo?
Os olhos de Pasha, porém, não eram um problema comparado ao que viu quando chegou ao seu destino: um casaco marrom surrado e um chapéu, pendurados próximos da porta, o som característico de uma conversa agitada na sala de estar.
O colorista quase saiu correndo quando reconheceu de quem era a voz: Dante Gabriel Rossetti.
E era mesmo o charmoso anglo-italiano na sala, conversando com Pasha alegremente, um caderno e um pedaço de carvão nas mãos enquanto admirava e fazia desenhos de Prosérpina — tímida e quieta em seu canto do sofá, ao lado de uma Gwen disfarçando muito mal a exasperação com a cena. Ao menos tinham arranjado roupas mais modernas para Prosérpina — ela estava muito bonita em um vestido de seda verde-escura, provavelmente a coisa mais discreta que havia no armário chamativo da dona da casa. E daí que o busto da criatura mágica estava quase estourando as costuras do tecido, ou que as saias eram tão compridas que se arrastavam pelo chão? Ela era um sol no centro da sala, e os olhos de Rossetti só desejavam ser ofuscados por sua luz.
— Ah, eis nosso mago colorista! — o pintor cumprimentou Theo com entusiasmo, o caderno quase caindo no chão. — Que alegria vê-lo. A senhorita Malmaison estava justamente falando de você.
— O senhor Rossetti é muito simpático. — Prosérpina parecia um pouco corada, esforçando-se para não falar muito alto, a voz um pouco chiada. Quando ergueu o rosto e encarou Theo, ele sentiu o corpo se retesar. Era como se ela estivesse olhando de dentro da tela pedindo socorro, só faltava a romã partida entre os dedos.
Só que agora Theo podia atravessar a sala e sentar ao lado dela. Não se importaria nem um pouco caso Rossetti espalhasse pela cidade inteira que o holandês colorista estava apaixonado por uma desconhecida de sobrenome francês, desde que ele parasse de comê-la com os olhos…
Era isso o que Rossetti fazia com Eliza? Se era, não era à toa que a garota tinha se apaixonado tão perdidamente.
O olhar de agradecimento de Prosérpina quase o derreteu. Era a primeira vez que alguém se dignava a se dirigir a ele assim — com gratidão e alegria, com um brilho feliz nos olhos. De novo, o vermelho invadindo o centro de seu peito, e justo agora que precisava se concentrar na tarefa à frente.
— Você precisa me deixar pintá-la, Jansen! Mesmo! Você precisa me deixar eternizar esse anjo em uma tela. — O pintor seguia tagarelando, mesmo notando que a atenção de Theo estava focada em Prosérpina, e que a atenção de Prosérpina era toda para Theo. — Onde você escondeu essa beleza esse tempo todo? Que sorte a sua de poder olhar para algo tão divino todos os dias!
— Estava tentando explicar para o entusiasmado cavaleiro andante aqui que Prosérpina está apenas de passagem na cidade. Ninguém escondeu ninguém em lugar nenhum. — Pasha era o anfitrião perfeito, mas Theo conhecia o filho das fadas o suficiente para saber que a fachada começava a desmontar. — Mas olha a hora! Imagino que sua mãe deva estar preocupada a essa altura, não, Gabriel?
Pasha nunca ganharia prêmios em nenhum concurso de sutileza, mas Rossetti também não ficava atrás. Ele se despediu de Prosérpina com a reverência de um peregrino que encontrou um anjo — ou de um artista que encontrou uma modelo bem bonita para retratar nas telas, e precisava tirá-la das mãos do concorrente a qualquer preço.
O concorrente colorista em questão só voltou a abrir a boca quando se certificou de que Rossetti tinha, de fato, abandonado o perímetro sem deixar nenhum de seus rascunhos para trás.
— Desgraçado, primeiro a Eliza e agora… — Theo começou a coçar a cabeça em um gesto nervoso. Encarou novamente a jovem loira cuja pose se desmontava em um suspiro que conhecia bem porque soava como imitação dele próprio: alívio porque o perigo se fora. — Malmaison? De onde veio esse sobrenome?
— Era o nome do lugar de onde vim. Palácio de Malmaison. — Prosérpina deu de ombros. O cansaço ainda estava ali, deixando o rosto mais pálido. — Eu não poderia dizer que me chamava Jansen ou Doyle!
— Embora aposto que é bem isso que aquele maluco vai contar para os amigos da Irmandade dele… — o colorista retrucou. — Enfim, eu trouxe a tela. Quanto tempo vocês precisam para consertar essa lambança, afinal?
— Bem, sinto muito por isso, meu querido, mas ainda não consegui nem mesmo descobrir por que o tal Lorde Farrington quer descobrir a magia do quadro, que dirá o resto… Então fico te devendo um prazo. — Pasha voltou a se sentar, uma mão ajeitando o lenço ao redor do pescoço e outra se apoiando no braço da poltrona. Gwen se sentou ao lado dele, e o falso-russo tomou as mãos da esposa com um sorriso breve. Theo sentiu inveja daquela interação, do jeito como Pasha e Gwen se entendiam sem precisar de palavras. — Pelo que Prosérpina me contou, não pode ser boa coisa. Parece que a lenda era mesmo verdadeira, não é mesmo, senhorita Malmaison? Os amantes foram mortos pelo marido da modelo. Agora, o que Farrington tem a ver com essa bagunça?
— Farrington matou os amantes, pode ser isso? — Theo seguia coçando a cabeça.
— Ele teria de ser muitíssimo bem conservado, te digo isso. Ou então se casou muitíssimo cedo.
— Magia explica tudo. Não resolve droga nenhuma, mas explica tudo. Ele poderia envelhecer mais lentamente. Ou não morrer nunca. Ou qualquer desses truques que as pessoas pedem nas lendas…
O colorista olhou para Prosérpina. Por falar em pedidos escusos: não tinha sido ele quem dissera que adoraria ouvi-la falar? Sentiu vontade de arrancar os cabelos de Rossetti quando o viu desenhando o perfil de Prosérpina, e não tinha ideia de como explicar aquele sentimento para si mesmo. Por que estava com raiva? Por que estava com tanto medo? Ela era só uma ilusão de ótica, um truque. Ele não queria nada com magia, não queria que nada destruísse aquela rotina que tinha lhe custado tanto para construir — e para reconstruir após a morte de Frederick. Não deveria ter estimulado aquela conversa, aquela intimidade. Mas como poderia imaginar…?
Deus, ele queria beijá-la de novo. Ou isso, ou sair correndo dali e não voltar nunca mais.
A empregada pediu licença para entrar na sala, carregando um cartão em uma bandeja prateada. Se ela tinha algum comentário a respeito da visitante dourada, ou do jeito que o ruivo amigo de seus patrões olhava para a moça, guardou todos para si.
— Vot eto pizdets! — veio o resmungo de Pasha ao ler a mensagem.
— Pável, modos! — Gwen retrucou na mesma hora.
— Amor, desculpa, mas… — Pasha chacoalhou o cartão de visitas. — Por falar em encrenca. Farrington quer falar comigo! Está aí fora esperando. Prosérpina, minha querida, você precisa se esconder. Vá para a cozinha, está bem? Jansen, talvez seja melhor você…
— Eu vou ficar — Theo se ergueu devagar. — Quero conhecer o sujeito. É meu direito, não?
— E como explico sua presença aqui?
— Sou seu parente. Sou um especialista. Ora, diabos, Pasha, não é você o truqueiro? Pense em alguma coisa!
Continua…
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CRÉDITOS
Autora: Anna Martino Edição: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves Preparação: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves Revisão: Lavínia Rocha Diagramação: Val Alves Título tipografado: Samia Harumi
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