Aviso: Esta obra menciona relacionamentos tóxicos, machismo e abuso de poder.
Lorde Farrington era um homem de baixa estatura e trajes que denotavam uma riqueza que não existia mais. Theo notou os tons diferentes nas dobras das roupas do visitante — o uso constante, mas pouco movimento do corpo, faziam o preto da lã se desfazer em tons de marrom muito discretos. Tudo de boa qualidade, melhor do que a sarja das roupas que ele próprio vestia, mas ainda assim era de um desleixo que contava muitas histórias.
O descuido das roupas combinava com o resto da paleta de cores do sujeito. O branco nevado do cabelo farto dava ao nobre um ar honrado que os olhos de escleróticas irritadas e pescoço grosso negavam com sonora veemência. A pele frágil das mãos, com manchas marrons e veias esverdeadas, não podiam esconder o fato de que aqueles punhos e braços tinham visto muitas brigas.
— Nenhum progresso, então? — A voz do lorde era lapidada para parecer calma mesmo debaixo de um maremoto. Theo quase deu uma risada, mas se conteve a tempo. A voz do sujeito fazia Theo se lembrar de seu falecido pai. Os dois homens falavam medindo as palavras e o som que faziam, como um pintor calcula quanto de azul e de amarelo precisa misturar para criar o verde perfeito. Era tudo uma armação para impor respeito, e Farrington claramente adorava o efeito que causava nos outros.
— Estou fazendo tudo o que posso. — Pasha também falava com calma estudada, o vendedor por excelência. Colocara o rosto britânico para encarar o lorde, os doces olhos fundos prontos para conquistar o mundo. Longe da esposa que saíra da sala, porém, parecia perdido no palco, esperando sua deixa para agir. — Não é algo que seja fácil de detectar. Tanto que meu especialista em tintas aqui – o grande Theo Jansen!, melhor que ele não tem na cidade! – passou um mês trabalhando noite e dia, e não encontrou solução. Mas descobri algumas informações sobre o quadro. Parece que a lenda sobre ele era verdadeira… Ela foi testemunha do assassinato do pintor e sua modelo.
— Minha pobre Perséfone — Farrington soou profundamente penalizado.
— Perséfone? — Theo não conseguiu se conter. Os olhos de Farrington o encararam com surpresa: ah, tinha mais uma pessoa na sala? Uma análise rápida do terno de sarja marrom do colorista, das mãos manchadas de verde, e o lorde enfim se dignou a responder.
— Sim. Você conhece a lenda grega, decerto, senhor Jansen? — Farrington acertou a pronúncia do sobrenome: Ion-ssen, e não John-sen como todo mundo na cidade insistia em falar. A facilidade com o idioma estrangeiro abriu uma janela diferente naquele corpo destruído diante do colorista: ali, na memória de tempos distantes, pulsava a verdadeira personalidade daquele homem, num tom de dourado que chegava a cegar. — Perséfone, rainha do inferno, cônjuge de Hades. Quando recebi esse quadro, me disseram que este era o apelido dele, na falta de um título oficial.
— E como esse quadro chegou em suas mãos, senhor? Se permite que eu pergunte…
— Foi um pagamento por serviços prestados. Minha família aprecia arte há muito tempo. Uma coisa se uniu à outra. — A voz falhou um pouco: uma mancha de sangue no panteão dourado que era a presença daquele homem. Às vezes acontecia com as pessoas ao falar de familiares. — Quando estive no Château de Malmaison, disseram-me que Perséfone passeava pelos corredores, como se estivesse viva. Obviamente não pensei muito no assunto na época. Parecia mais uma conversa tola dos soldados continentais interessados em colocar medo nos visitantes.
— E o senhor decidiu provar a teoria?
— Quando o senhor chegar à minha idade, se o senhor chegar à minha idade… vai descobrir que algumas lendas podem ser verdadeiras. E Perséfone… depois de todos estes anos… ela é mais da minha família do que meus próprios familiares.
Não seria algo que Farrington confessaria para os colegas na Câmara dos Lordes, bem verdade. Não era algo que falaria em voz alta para si mesmo. E, no entanto, embora tudo tivesse um fundo de verdade, Theo sabia dentro de si que aquele brutamontes com um título de nobreza estava mentindo. Todas as palavras vinham em tons de verde — não o verde primaveril dos olhos de Pasha, mas um verde que lembrava bolor. Farrington, bom ator que era, seguiria falando mesmo que estivesse exausto de interpretar o papel.
E estava cansado de interpretar o papel. Era por isso que o quadro saíra de sua casa.
O colorista escutou um ruído estranho, como passos de rato correndo atrás das paredes. Ele ergueu os olhos discretamente na direção do barulho — um quadro da famosa Emma, Lady Hamilton, posando como Titânia em um manto vermelho; uma das joias da coleção particular de Pasha. O colorista conhecia muito bem aquela pintura e tinha certeza de que a escandalosa jovem retratada quase um século antes não tinha nenhuma dama de companhia — certamente não uma loura em um vestido verde-escuro, que sumiu da tela quando ele piscou os olhos.
***
— Sim, fui ouvir a conversa. Queria saber o que ele estava falando de mim! É meu direito, ora bolas. Afinal, vocês pretendem me devolver, não é? Se for bem boazinha e voltar para dentro da tela? Que parte do “eu não quero voltar” vocês não entenderam? Será que se eu gritar…?
— Não, não vamos começar com isso outra vez. — O colorista ergueu as mãos para interrompê-la. Lá estavam: sozinhos de novo e, ao mesmo tempo, sozinhos pela primeira vez, enquanto os donos da casa discutiam a visita inesperada de Farrington em outro cômodo. Provavelmente Pasha tinha isolado a sala onde estava com a esposa, porque não se ouvia um ruído que fosse do outro lado. Pobre Gwen! Uma mulher grávida não podia passar tanto nervoso, ele dissera, e pra ser honesto, nem eu!
Não havia uma tela entre eles e o círculo mágico parecia ter sumido um tanto com a emoção das últimas horas. Mas estavam a sós, enfim, e aquilo era mais incômodo do que o colorista imaginava. Não um incômodo ruim, porém: mais um estranhamento, como o modo como o rosto pinicava quando você entrava em uma casa quente após andar contra o vento frio.
— Qual é a questão? Ele te ameaça?
— Ele só fica olhando. Não abre a boca. Mas já vi aquele olhar antes. Era como o meu pintor, era como o homem que o matou. Eu vi o que aqueles dois fizeram, Theo. Eu vi. Nunca senti tanto medo quanto naquele dia. — Prosérpina parou de falar de repente, como se tivesse se dado conta de algo importante. Quando continuou, foi com um muxoxo triste. — Você era mais falante, antes. Eu devo estar te assustando, não é? É que ficar quieta todos esses anos… Agora eu posso falar e as pessoas entendem o que eu estou falando, simplesmente não consigo mais parar. Isso te incomoda?
— Pra ser bem honesto…
— Você é como o homem que me colocou na tela, então. Quando ele se apaixonou pela modelo, tudo era bonito como rosas. Aí ela começou a falar e falar, e fazer planos e perguntas sobre quando eles iriam fugir, o que seria da vida deles juntos. Não acho que ele estivesse esperando que ela falasse tanto.
— Ele morreu por ela.
— Sim, sim, e de maneira pavorosa! Mas se o sujeito com a espada tivesse esperado só mais um pouco… se ele tivesse sido só um pouco mais paciente… — Ela apontou a porta da sala com o queixo. Ah, então tinha entendido bem o que Rossetti tinha tentado fazer. Era por isso que tinha pedido ajuda com o olhar quando ele chegou na sala. — Ela nem era parecida comigo, a moça lá que morreu. O homem lá estava imaginando outra coisa enquanto pintava, eu acho. Isso é perigoso! Como você consegue ser amigo dessa gente?
— Eles não são mais perigosos do que eu. E eu preciso de cores. O mundo precisa de cores. Por isso ando com eles. — E, num tom de voz mais baixo: — Eu não me importo com você falando, Prosérpina. Não me entenda mal. É que não sei o que eu respondo quando você fala!
— A verdade já está de ótimo tamanho. Pode até falar em holandês. Pelo menos seria… seria alguma coisa. — Ela respirou fundo, com dificuldade para fazer o ar descer aos pulmões. — Agora que você viu aquele sapo, você acredita em mim? Acredita que eu não posso voltar? Ele vai me arrancar da tela. Não vai sossegar enquanto não me tirar do meu canto, sabe-se lá para quê. E eu sei como isso termina. Vou ficar como aquela mulher, como a modelo? É isso? Você acredita em mim, agora?
Ele acreditava antes. O problema não era esse — não era ela. Era ele, era a vida que tinha reconstruído e que agora se espatifava. Rossetti a tinha visto, Samir a tinha visto — e tolo seria ele de crer que a notícia não se espalharia. Prosérpina poderia voltar para a tela, mas ele passaria o resto da vida tendo que explicar o que acontecera de novo. Passara dois anos se explicando — não, ele não sabia por que Frederick lhe deixara a loja no testamento; não, ele não ameaçou o falecido dono da Higgins & Co., não chantageou ninguém; sim, ele era capaz de gerir a loja, não iria vender e nem demitir ninguém…
Tinha sobrevivido àquele maremoto, e agora o jogavam nas águas turbulentas de novo. Mas sabia que sobreviveria; Prosérpina não tinha aquela certeza. Quarenta anos em uma tela, e só agora decidira fugir? Não fora por causa dos cabelos ruivos dele, com certeza. Ela conhecia o perigo daquele valentão com título de nobreza.
— Você precisa voltar para a tela. Não está vendo como o ar daqui lhe faz mal?
— Ah, é por isso? — E ela deu uma risadinha. — Quanta coisa vou ter que descobrir, hein? Respirar é uma coisa engraçada, não é? Achei que doía assim pra todo mundo…
— Não, não dói. Pelo menos, não deveria doer… — Theo respondeu olhando para as pontas de seus pés. — Estava pensando… Acho que sei como o Samir pode me ajudar…
Afinal, quem foge, foge de alguém. Seria bom saber com quem, exatamente, ele estava lidando, porque abandonar aquela criatura à própria sorte estava fora de questão.
Continua…
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CRÉDITOS
Autora: Anna Martino Edição: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves Preparação: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves Revisão: Lavínia Rocha Diagramação: Val Alves Título tipografado: Samia Harumi
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