Aviso: Esta obra menciona relacionamentos tóxicos, machismo e abuso de poder.
Dois dias depois, Samir chegou de manhã no apartamento em Gower Street com duas listas nos bolsos do colete colorido — a dos candidatos ao matrimônio e a das informações que tinha conseguido sobre Lorde Farrington. Era difícil dizer qual era mais esquálida.
— O sujeito parece ter nascido ontem, patrão. Nada de rastros, pelo menos que eu tenha achado nos locais esperados… — Samir se sentou diante de Theo, com um suspiro de cansaço. — Foi oficial de gabinete, patente comprada. Carreira bem aguada auxiliando o serviço diplomático. O título foi herdado do tio, ele foi o único homem que sobrou na família… Solteiro, sem filhos legítimos. E desconhecido nos estabelecimentos mais óbvios para alguém da classe dele… Não é do tipo que aparece na Câmara dos Lordes, não é do tipo que frequenta clubes, é quase como se não existisse!
— Esses tipos são os piores — Theo resmungou.
— Isso lá é verdade, patrão. Água muito parada é a que afoga pior, é o que diz minha mãezinha. Afinal, se ele fez uma moça fugir de casa, alguma coisa está escondendo… Aliás, como está a senhorita Malmaison?
— A salvo com os Doyle. — Theo passou a mão pelos cabelos. Ele achou engraçadinho o modo tímido como Samir falava de Prosérpina. Pelo visto, o encantamento daqueles olhos dourados conseguia perfurar até as carapaças mais duras. Dois dias mantendo distância, e ele até se atrevia a dizer que sentia falta da moça espiando-o através da tela.
— Tanto melhor assim. Espero que possamos descobrir quem está ameaçando a moça. O senhor descobriu quem fez o quadro falso?
— Um especialista em artes fraudulentas — Theo mentiu com dor no coração, mas Pasha tinha razão: melhor esconder os detalhes. — Mas ele não soube dar mais informações, a encomenda foi por meio de terceiros… De qualquer forma, foi um recado bem claro…
Ainda pensava na mentira que contava para Samir quando a campainha soou. Por um instante, pensou que seria Prosérpina acompanhada por Gwen ou Pasha — ele até podia ouvir o tilintar que acabara associando mentalmente àquele truque de mágica transformado em gente. Mas era outra mulher, sozinha e com cara de poucos amigos, o cabelo castanho escondido em um chamativo chapéu de palha com flores de seda vermelha.
— Senhorita Silver. — Samir se ergueu educadamente quando a recém-chegada entrou no recinto.
— A senhorita Silver deseja falar a sós com o seu patrão. — Eliza se agarrou nas saias do velho vestido para manter a pose. — Queira se retirar.
Samir olhou para Theo admirado com a petulância da mulher, mas o colorista não parecia muito disposto a começar mais uma discussão, não quando os vizinhos pudessem ouvir. Vendo o olhar perdido do patrão, o anglo-egípcio recolheu seus papéis e disse que seguiria na frente para abrir a loja. Eliza esperou que ele fosse embora de vez para poder se sentar na poltrona costumeiramente ocupada por Theo.
— O que te deu para falar com o Samir desse jeito? — O holandês cruzou os braços.
— Esse sujeito irritante, sempre se enfiando onde não é chamado! — Ela resmungou, estendendo as pernas como se estivesse em um trono. Seria petulância se Theo não soubesse que era dor nas pernas, que era cansaço de quem ganhava a vida trancada costurando flores em chapéus noite e dia. — Por que ele precisa vir aqui tão cedo? O que vocês dois estão aprontando dessa vez? — A garota se ergueu ao ver algo sobre a mesa: um papel que Samir havia deixado. Theo não conseguiu impedi-la de agarrar a anotação, que ela leu com o papel quase colado em seu nariz. — Viúvo, sem filhos, marceneiro. Procura uma esposa.
— Eliza, devolva isso…
— “Precisa ser católica”. Ah, não, não, católicos são péssimos! Eles não comem de propósito às sextas-feiras. Onde já se viu? Passar fome de propósito? Mas por um bom matrimônio, eu posso fingir que não como e rezar às escondidas. Ele é bonito?
— Eu não sei, não vi o sujeito. Eliza, o que você quer? — Enfim Theo conseguiu arrancar o papel nas mãos da garota.
— Aquele maluco que estava me seguindo, se lembra? O que andava me rondando e você achava que era só invenção minha? Ele voltou. Foi falar com a minha mãe! Eu disse que era encrenca, não disse? Mas você não me ouviu.
— E por que ele iria falar com a sua mãe? Você deu corda para ele, por acaso?
— Para um milico que só falta desmaiar quando eu encaro?! Não consegui nem descobrir o nome dele! Horrocks ou Horwell, ele gagueja de tal jeito que parece que nunca viu mulher na vida. Mas esses aí são os piores, você sabe.
— Dizem que são, mas se ele foi falar com sua mãe, talvez as intenções…
— Você acha mesmo que ele foi oferecer casamento? Deixa de ilusão! Será que você anda tão ocupado com sua francesinha que não se importa mais comigo? — Theo se engasgou, e Eliza abriu um sorriso que dizia te peguei no flagra. — Rossetti me contou que você anda enrabichado com uma loira. Um anjo, ele disse! Um anjo que você está escondendo de todo mundo.
— Você foi vê-lo? Depois de tudo o que ele te fez?
— Ele veio atrás de mim, na verdade. Achei que era para fazer as pazes, mas não… Queria saber se você montou uma casa para esse tal anjo, ou se a moça era séria. — O complemento da frase, Eliza não precisou dizer: porque ele acha que eu não sou. — Você poderia ter me contado. Depois de todos esses anos… Eu sei que fui uma grossa com você lá no passado, mas nós dois não somos mais crianças. Aquilo que você me disse outro dia me magoou bastante, sabia?
— Me fale mais desse tal Horrocks — Theo desconversou. — Qual a patente dele?
— Eu sei lá! Só sei que usa casaco vermelho de milico e anda marchando, parece que tem uma vara de pescar enfiada no rabo! Você vai me ajudar ou não? Rossetti tem medo de quebrar os dedinhos, mas você é forte o suficiente para espantar aquele bicho feio duma vez. Você tem esse muque todo pra quê, afinal? Você não precisa mais ficar ralando pedra pra fazer tinta, você é o dono da loja agora.
O gelo se tingiu de verde dentro da mente de Theo. Não era o que Frederick tinha dito quando foi embora? Que ele só servia para moer coisas? Que era bruto e nunca seria de uso para ninguém senão por causa da brutalidade? Quando contou isso para a mãe de Eliza — porque precisava contar para alguém, porque não conseguia mais carregar aquele carvão em brasa no centro do peito, ainda que tivesse ocultado a identidade de quem tinha lhe queimado —, Eliza ouvindo atrás da porta deu tanta risada que parecia que ia se engasgar. E você achou mesmo que você era especial?
— Traga esse tal Horrocks aqui e aí eu vejo o que pode ser feito.
— Como assim, trazer ele aqui? — Eliza arregalou os olhos.
— Quero saber quem é o sujeito, quais as intenções dele. Não é para eu dar um jeito? Esse é o meu jeito. — Theo sentia as palavras arranhando a garganta. O sotaque estava aparecendo de novo, as consoantes holandesas arrastando a pronúncia. Péssimo sinal: ele estava cansado demais para raciocinar, para se esconder.
E ouviu o som de ratos correndo atrás da parede.
Essa não.
— Theo, você quer açúcar no seu chá?
A voz veio da copa do apartamento. Era Prosérpina, sem dúvida, o mesmo sotaque e o tom de voz como um sino, mas que história era essa de chá? Ele não era de pensar rápido, nunca tinha sido, mas precisaria adquirir o hábito logo, pelo visto, porque entre reconhecer que aquela era a voz de Prosérpina e pensar como foi que ela tinha se enfiado dentro do apartamento, Eliza já tinha corrido para a copa para ver a grande novidade.
Mas ao invés de encontrar uma senhora de coque sisudo e avental branco no minúsculo cômodo nos fundos do apartamento, o que ela viu foi uma mulher loira em um desajeitado vestido verde, mangas arregaçadas e barra arrastando no chão, mãos sujas de carvão enquanto tentava acender a espiriteira para aquecer água.
— É a menina do quadro! — Eliza deu um grito. — É ela! Meu Deus, seu canalha duma figa, você me disse que aquele era um quadro velho! Essa aí é o tal anjo? — E, para Prosérpina: — De onde você veio, sua bruaquinha?!
— França, senhora. — Prosérpina era a imagem da inocência mais do que absoluta, os olhos imensos encarando a cena diante de si com a tranquilidade de uma criança. Era um sol incandescente mesmo em posição subserviente diante do carvão e da chaleira de ágata.
— É “senhorita” pra você! — Eliza corrigiu com um guincho. — De onde você veio? Você posou para aquele quadro, não posou?
— Madame… Perdão, mademoiselle… Estaria me confundindo mesmo com outra pessoa? Eu só vim ajudar o senhor Jansen com a casa a pedido de uma amiga minha, a senhora Doyle. Nada de mais.
— Aquela outra pervertida. Claro que só podia ser ideia dela. Dela e daquele marido indecente. — Eliza encarou Theo com tamanha raiva que só faltava soltar faíscas. — E pensar que eu te achava melhor do que aquela gente nojenta. Você tá agindo que nem eles… Um anjo, rá! Você é um canalha que nem o seu ex-chefe, não é à toa que ele te deu a loja de presente!
Theo viu vermelho na frente dos olhos, mas a raiva passou depressa quando notou que Eliza estava quase chorando como se…
Como se ele tivesse também partido seu coração.
Não deu tempo de perguntar nada, ou de analisar a situação: Eliza saiu correndo, deixando a porta aberta atrás de si. Theo olhou para Prosérpina, para a porta, de novo para Prosérpina, e com um palavrão em idioma que nem ele sabia qual era, pôs-se a correr porta afora atrás de Eliza.
E Eliza, parada em um canto do minúsculo saguão de entrada do prédio, respirava fundo para não sair na rua com lágrimas nos olhos castanhos. Quando viu que Theo descera as escadas correndo atrás dela, abriu um sorriso de triunfo. Você voltou para mim.
Se ele não a conhecesse, teria acreditado naquele sorriso. Teria se agarrado a ele e nunca mais se soltado. O problema é que a conhecia.
[Continua na Parte 2]
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