[Continuação da Parte 1]
— O que você quer, afinal de contas? — Theo gaguejou. — Quem te deu o direito de falar desse jeito com a Prosérpina… com o Samir… Comigo?! O que você quer?!
— Boa pergunta! — O sorriso de Eliza sumiu. — Sabe o que eu quero? Descobrir qual a palavra mágica para virar gente! Rossetti e os amigos dele gostam quando eu sou suja e desbocada porque eles adoram uma Jezebel para pintar nos quadros. Mas eu sou tão útil quanto um vaso para eles. Você pode colocar flores em um vaso e nos meus cabelos, é a mesma coisa! E você se acha grande coisa só porque…
— Só porque sobrevivi? — Theo disse, devagar. — Tenho o direito de ser feliz, também! Eu sou gente, também. Devo respeito à sua mãe, que me deu de comer. Mas você não tem o direito de me tratar como se eu fosse um cachorro que vem pro seu colo quando você assobia.
A frase foi um susto para eles dois: ele nunca tinha se defendido das ofensas, ela nunca esperara que se defendesse. Eliza saiu correndo, cesta em punho, e Theo retornou para o apartamento. Ao fechar a porta — seria mais correto dizer que ele esmurrou a porta até que ela se fechasse, quase empenando as dobradiças no processo —, viu Prosérpina sentada no sofá da sala de estar, sorrindo. A cena ao mesmo tempo era uma alegria e uma fonte de raiva. E, infelizmente, a raiva ganhou:
— Se você entrou aqui pelo camafeu de novo, você vai se arrepender de ter saído de dentro daquela maldita tela!
— Por Júpiter, claro que não. — Prosérpina logo parou de sorrir. — Vim enrolada na papelada do seu secretário. Ele estava carregando um cartão-postal no bolso e eu consegui me espremer ali. Depois, eu pulei para a pintura no calendário na cozinha.
— E como você achou o Samir?
— Ele passou na casa dos Doyle para perguntar de mim. Mas pelo céu, essazinha… Você percebeu, não percebeu? Que ela está fazendo o que pode para te fazer pular? Citando o nome daquele outro moço para ver você ferver de ciúme?
— Claro que percebi. Depois de todos esses anos… Sou tonto, mas não tanto assim. — Theo se sentou ao lado de Prosérpina sem pensar muito. Era a coisa mais certa a fazer, tão fácil como respirar. — Não é o primeiro olha o lobo que ela grita. Sempre tem alguém que vem atrás dela, um pintor que prometeu mundos e fundos, alguém que disse algo… E eu sempre correndo atrás dela como um tolo… E por quê?
— Porque você se importa. Como se importa comigo, e com as moças para quem você procura marido decente. — Prosérpina fez com que aquilo soasse tão óbvio que ele se sentiu envergonhado de ter perguntado. — Mas você não a ama. Você se importa com ela, mas não a ama.
— Faria diferença, amar ou não? No fim das contas… — No fim das contas, ele estava sozinho de novo e ela seguiria querendo ser musa inspiradora de outro, era o que ele queria dizer e não conseguiu. — Escuta, o que você veio fazer aqui?
— Estava preocupada com você. E, tá bem, o ambiente do lar dos Doyle é uma bagunça. Gwen atende moças o tempo todo. A choradeira é de dar nos nervos! Todas as mulheres dessa cidade ou foram enganadas por algum homem ou vão ser! Que inferno! Parece o palácio de onde eu vim. Eu não aguentei. De que diabo me vale ter saído da minha tela se não posso ver outras coisas? Mas estava preocupada com você, e como não voltou pra lá, vim atrás de você. É isso.
Theo não sabia mais o que sentia — se era raiva de Eliza ou de Prosérpina, se era pânico pelo modo como as coisas estavam saindo dos trilhos, se era vontade de dar risada no fim de tudo. Era tão ridículo — a cena de ciúme de Eliza, o modo como disse que Rossetti tinha descrito Prosérpina (e Theo bem que imaginava o sujeito falando daquele jeito mesmo — sem perceber como pisava no coração de Eliza com cada palavra em sua descrição floreada). E, no entanto, agora que estavam lado a lado naquele sofá, em silêncio… tudo o que sentia era calma. Não era a calma de antes, o sossego abandonado daquela casa vazia. Era algo novo, o círculo mágico se estendendo e os envolvendo uma vez mais. Era um acalanto que silenciava a raiva, que afrouxava o nó da garganta e a tensão dos ossos.
— Eu devia pedir para o Samir dar uma olhada nesse tal Horton. — Theo suspirou.
— Porque você acredita no olha-o-lobo.
— Porque é o melhor a fazer. Vai que esse daí também fugiu de uma tela? Ou é um fantasma que só ela enxerga? Eu acredito em qualquer coisa, agora. Juro que acredito.
Prosérpina se arriscou a tocar o dorso da mão do colorista, e ele se afastou com um gesto automático. Quando percebeu o que tinha feito, era tarde — ela também se afastara, o dourado de seus gestos tingido de azul por um breve instante.
— Escuta, Theo. Melhor perguntar duma vez… O que quer dizer bruaquinha?
Theo se engasgou e começou a rir. E ela acabou rindo junto. O que mais era possível fazer numa hora daquelas? Rir e rir, rir até cansar, rir diante do absurdo até o corpo começar a doer. Rir como nunca antes, por desespero e por exaustão, porque não sabia mais o que fazer. Mas a risada logo se dissolveu em outra coisa, uma pontada no centro do peito, algo que implorava para ser notado: um tom de vermelho que se escondia no canto dos lábios de Prosérpina.
Ele ergueu a mão para tocar as fitas do cabelo de Prosérpina. Ela sorriu de volta.
Foi como se tivesse queimado os dedos. Ele se levantou depressa, a risada morreu e o vermelho desapareceu. A salvo, pensou. A salvo, por enquanto, mas por quanto tempo?
Continua…
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CRÉDITOS
Autora: Anna Martino Edição: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves Preparação: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves Revisão: Lavínia Rocha Diagramação: Val Alves Título tipografado: Samia Harumi
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