Aviso: Esta obra menciona relacionamentos tóxicos, machismo e abuso de poder. Este capítulo menciona violência doméstica.
Durante uma semana, o mundo pareceu
se acertar naqueles eixos recém-construídos. Prosérpina era pontual — oito da
manhã, surgia na copa e começava a arrumar a casa. Não havia muito o que
arrumar, verdade fosse dita: a sala podia ser espanada e arejada em meia hora,
e Theo nunca a deixava entrar no quarto de dormir, então o tempo que restava
era gasto conversando com o dono da casa, analisando as listas de matrimônios e
contando sobre os dias no palácio de Malmaison. Theo adorava aquelas histórias
— sentia-se em casa com os fios dourados que ela tecia com as narrativas sobre
os homens e mulheres que cruzavam os corredores do palácio que restara à
Joséphine depois que Napoleão a trocou por uma nobre capaz de trazer ao mundo
herdeiros para uma dinastia que nunca existiu.
Em troca, Theo sabia que deveria
contar histórias de sua vida, mas não conseguia achar nada que se comparasse
com o fulgor das narrativas dela. O que havia para contar? Delft era plana como
um tampo de mesa e pequena como uma miniatura; a Londres para onde ele tinha
sido enviado era fria e suja. Falava do trabalho — do processo para transformar
pigmentos em tintas, de como folhas ou pedras ou flores podiam se tornar
material para os artistas, de como ele criava cada um dos tons à venda na loja.
Nunca conseguira explicar como ele
via cores na voz e nos gestos dos outros, mas uma criatura nascida de magia não
pedia explicação. Ao invés de perguntar como era possível, Prosérpina se
entretinha perguntando quais as cores na voz dela ou na voz de Samir, nos
gestos de Gwen ou no jeito como Pasha se movia (a voz de Samir era sempre dourada;
os gestos de Gwen se refletiam em azul-escuro como a primeira hora da noite;
Pasha era como os arbustos de flores na primavera).
Quando chegavam visitas, Prosérpina
se recolhia aos fundos do apartamento, com medo de ser vista. Mas logo aquele
subterfúgio se tornou desnecessário: Samir sabia que ela estava ali. Um dia,
ela o cumprimentou em árabe claríssimo e o secretário de Theo só faltou
desmaiar de surpresa.
— Onde a senhorita aprendeu isso?
— Uma pessoa aprende muito sendo
observadora. Eu falei certinho?
O anglo-egípcio tinha sempre por
regra de conduta manter distância cortês das mulheres, mas Prosérpina parecia
ser um caso à parte. A distância física seguiu existindo, mas os dois se
entendiam às mil maravilhas apesar disso, especialmente quando discutiam o
mercado matrimonial. Prosérpina tinha razão — faltava a eles um ponto de vista
feminino na operação, alguém que compreendesse melhor o que uma noiva em
potencial esperava em um marido e, principalmente, o que elas temiam encontrar.
Amor, aos olhos dourados da jovem, era um motivo justo para casamentos, mas era
preciso outros detalhes para se garantir um mínimo de paz na convivência entre
o futuro casal.
— A senhorita Malmaison é uma bênção
para os negócios — Samir comentou para Theo quando estavam sozinhos na loja de
tintas. Theo estava em mangas de camisa, ocupando-se em moer e misturar
pigmentos como se fosse um aprendiz e não o dono do estabelecimento.
— É bom que ela se ocupe com algo,
ajuda a não se focar tanto no tal lorde… Falando nisso, alguma novidade?
— Estou fazendo o que posso, patrão.
Acionei alguns amigos, alguns contatos… Creio que logo ela terá paz novamente.
— Ora, vejam. — Theo riu um pouco —
Você está mesmo caído pela jovenzinha, pelo visto…
— Patrão, por favor. — Samir se
endireitou na cadeira —, minhas intenções são puramente amicais. Até porque ela
claramente não está interessada em qualquer outro homem além do senhor.
Theo derrubou o almofariz na bancada e o objeto acabou se rachando, espalhando pigmentos vermelhos por toda a mesa.
— A senhorita Malmaison é uma mulher
muito prendada. — Samir deu de ombros, fingindo não ter notado o choque do
patrão. — E atenciosa, também. Sua casa nunca pareceu tão habitável antes. E
ela é bem inteligente. Saberia administrar a loja muito bem! — E, baixando a
voz para que ninguém lhes ouvisse fora da sala: — Está na hora do senhor voltar
a apreciar a vida. Por que não com alguém que o tem algum módico de afeição?
— Você tem sorte de que eu não posso
te demitir, Samir. — Theo recolheu os cacos do almofariz em suas mãos. — E tudo
muito bem sobre o lorde… mas e o tal soldadinho de chumbo do qual a Eliza
estava se queixando?
— Parece que tomou o famoso chá de
sumiço, patrão.
— Mas ele existiu mesmo?
— Existir, existiu, mas está difícil
de dar um rosto a ele. A senhora Silver disse que eu não deveria fazer
perguntas, então não pude me estender muito… Os vizinhos não souberam me
informar muito mais coisa, tampouco. Mas os vizinhos nunca sabem de nada, o
senhor entende. Pode morrer alguém na casa ao lado, e ninguém nunca viu nada.
Theo assentiu, enquanto jogava fora
os restos do pigmento vermelho espalhados sobre a mesa. A voz do secretário,
sempre tão brilhante, sempre em tons solares, tingiu-se por um instante de
preto. Não, os vizinhos nunca sabem de nada: fingiam não saber que o pai inglês
de Samir demolia a casa de dentro para fora quando voltava do pub,
aterrorizando a esposa e os filhos, e ainda punham a culpa na “estrangeira” por
tentar se defender dos golpes. Não era à toa que o rapaz preferiu adotar o
sobrenome dos avós maternos e se fazer mais estrangeiro de propósito. Se ser um
inglês era ser cruel daquele jeito, então ele seria o oposto disso.
Também não era à toa que ele e Theo
se entendiam. Sobreviver aos golpes de quem deveria protegê-los e amá-los era
um traço de personalidade que transbordava pelos dedos — ou se usava isso para
salvar os outros ou você poderia morrer envenenado.
— Mas nós sabemos, no fim — Theo
olhou para as mãos avermelhadas —, e vamos ter de nos virar com isso.
***
Pasha apareceu no apartamento de
Gower Street no fim daquele dia, acompanhado de um Rossetti todo arrumado, com
o cabelo todo penteado e a melhor gravata — um homem pronto para conquistar o
mundo, consciente de seu charme. Prosérpina se escondeu na copa, mas não
adiantou: o pintor tinha vindo por causa do anjo de cabelos cor de linho.
— Eu realmente precisava vê-la,
Jansen — Rossetti argumentou com o dono da casa. — Por que você não a leva para
as nossas reuniões lá na casa do Millais? Não é justo que você esconda essa
beleza!
— Honestamente, Gabriel, sua opinião
a respeito dos meus hábitos não me vale nem meio pence. — Com um suspiro, voltou-se para a copa. — Senhorita
Malmaison? Você tem visitas…
Rossetti ficou mudo quando a jovem
apareceu na sala, chocado como se estivesse diante de uma aparição divina. E a
jovem em seu vestido emprestado que não servia direito no busto, por sua vez,
agiu como era esperado: fingindo timidez, um “boa noite” teatralmente
engasgado, deixando-se admirar enquanto servia chá para as visitas, lidando com
a louça velha e o bule torto com doçura o suficiente para ocultar a falta de
prática no manejo do equipamento.
E ela se pôs a entreter o pintor,
perguntando sobre seus estudos, sobre as raízes da família na Itália, sobre
poesia e os planos da Irmandade Pré-rafaelita — ao que parecia, o grupo secreto
planejava uma exposição e tinha até conseguido um mecenas, alguém que
concordava com os ideais do bando contra o academicismo paralisante que
consumia as artes do país.
Do outro lado, Theo se surpreendeu
com a docilidade da mulher que tanto lhe provocava os sentidos — ela estava
interpretando um papel ou finalmente o charme do pintor conseguiu silenciá-la?
Demorou para o colorista entender: estava distraindo o visitante para que Theo
conseguisse falar com Pasha a sós.
E o falso-russo tinha notícias aos
montes. Enquanto Prosérpina fazia o melhor para seguir enrolando o artista,
Theo fingia mostrar novidades no gabinete de curiosidades para o amigo no canto
do cômodo. Entre as porcelanas e os brinquedos de corda, Pasha se ocupava
mudando animaizinhos de cristal de lugar, os olhos de um verde tão profundo que
chegava a dar medo no dono da casa. O demônio, dizia-se, tinha olhos daquele
tom.
— Progresso, então?
— Sim, e do tipo interessante. Não é
à toa que o Samir não encontrou rastros de Farrington. Ele é como eu.
— Filhote de fada?!
— Não, não, isso não… Ele é
binacional! O pai é britânico, a mãe é francesa. Ele viveu na França na
infância, só veio parar aqui depois de certa idade. A mãe… bem… Há um certo
boato, pelo que entendi… Ela era uma cortesã. Nada contra, inclusive tenho
grande respeito pela profissão. Sabe, a abordagem do assunto é diferente lá na
França… Mas, claro, aqui a história é outra, dá para entender se ele não quis
falar muito…
Uma risadinha interrompeu a conversa
— Prosérpina, ocultando os lábios enquanto ria de algo que Rossetti havia dito.
Theo sentiu a garganta queimando, uma vontade de agarrar o sujeito pelos
cabelos compridos e fazê-lo voar pela janela ao lado da estante — mas voltou a
atenção para as xícaras azuis e brancas, vindas dos domínios holandeses no
Oriente, antes que transformasse seus pensamentos em ação.
— Enfim, a profissão dos pais é o de
menos, no caso. Embora haja um boato de que ele poderia ser filho de Napoleão
Bonaparte, imagine — Pasha continuou falando. — As idades até permitem o sonho
e a mãe dele, ao que parece, era da entourage
da imperatriz. A primeira, Joséphine, não a outra. Outros dizem que ele é
filho natural de algum notável da corte francesa à época. Ou ainda… E eis o nó…
Filho do criador de nossa estimada Prosérpina. O camarada pintor era o
queridinho da corte.
— Bem, isso explicaria muita coisa.
— Theo pegou um dos peixes de cristal com mais cuidado para trocá-lo de lugar.
Prosérpina parou de rir, embora Rossetti seguisse tagarelando. Na certa tinha
escutado o modo como Pasha pronunciou seu nome, e estava se perguntando do que
falavam. — Se ela foi a única testemunha do assassinato, talvez o lorde queira
algum tipo de informação…
— Pra que diabos ele quer essa
informação, me pergunto eu. O galho é que não dou mais conta de enrolar o
sujeito. Ele quer ver o quadro. Diz que está com saudade. Saudade, como se ela fosse gente de verdade!
— Quero ver você convencê-la a
voltar para a tela…
— Bem, quanto a isso… — Pasha pegou
duas das xícaras de porcelana e ficou admirando a paisagem pintada. — Estava
pensando. Se você for junto… Sei lá, se você ficar por perto, talvez ela se
acalme em posar para ele por alguns instantes dentro do quadro. Sabe, só por
precaução. Desculpa pedir isso a você, mas… — Pasha franziu a testa.
— Agora você pede desculpa?
Theo olhou para trás, e a primeira
coisa que viu — a única coisa que viu — foi o rosto de Prosérpina o encarando.
Todo o púrpura do ciúme no qual estava imerso se dissolveu na mesma hora,
substituído por tons majestosos de vermelho e dourado, retesando o corpo inteiro
contra sua vontade.
Só conseguia pensar em como ela o beijara, tão feliz em provar que ela era de verdade, tão admirada com o calor que vinha dele, com a cor de seus cabelos. Aquele incêndio que carregava em si desde então, aquela vontade de queimar entre os braços dela até se transformar em cinzas — ele bem que queria culpar a magia, mas era ela.
Não era magia, era solidão; Prosérpina parecia compreender isso como ninguém mais. Mas saber que ela compreendia não trazia alívio, e sim pânico.
Da janela, viu um homem parado debaixo do lampião a gás depois que a carruagem de Pasha partiu. Theo reconheceu o cabelo primeiro: aquele tom de castanho que lembrava coisa guardada. Eles já tinham se visto, não?
O dia em que Prosérpina saiu de seu escritório, escondida debaixo da capa de Gwen Doyle. Aquele sujeito estava do outro lado da rua, pegando algo do chão. Era ele: Theo jamais esquecia uma cor, e a cor dos cabelos do homem iluminado pelo lampião trazia mais lembranças do que gostaria de admitir.
Num piscar de olhos, porém, o homem desapareceu. Seria outro fantasma? Theo fechou a janela e bufou, cansado demais para pensar no assunto e assustado demais para não pensar.
***
Do outro lado da sala, Prosérpina desviou o rosto quando Theo a encarou. Ela sempre ouvia as moças do palácio falando que “queimavam” quando sentiam vergonha. Agora a expressão fazia sentido: parecia que tinham acendido uma fornalha dentro dela, e o rosto ardia como se exposto ao sol.
— A senhorita tem mesmo uma afeição pelo senhor Jansen — Rossetti não soou enciumado. Admirado, talvez: do mesmo jeito que alguém fica admirado de ver um cachorro andando em duas patas.
— Fala como se fosse a coisa mais ridícula do mundo!
— É admirável ver uma mulher ser tão… objetiva em seus afetos.
— Objetiva? Soa tão triste! Como se eu estivesse interessada nele por motivos práticos.
— Certamente o amor não é prático. — O pintor tentou disfarçar seu erro. — E, claro, o senhor Jansen tem qualidades admiráveis… Mas o sentimento é recíproco?
Prosérpina olhou para o colorista, que agora se
ocupava em fechar a janela. Boa pergunta. Ela achava que entendia desejo, de
tanto ver como agiam os homens no palácio de Malmaison. Mas Theo parecia ter
medo do que sentia quando a tocava. Para além do medo, porém, havia um mundo
cor de rubi, e queria conquistar cada centímetro daquele território. Mas como?
Onde estava a porta para entrar nesse mundo secreto?
Continua…
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CRÉDITOS
Autora: Anna Martino Edição: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves Preparação: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves Revisão: Lavínia Rocha Diagramação: Val Alves Título tipografado: Samia Harumi
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