Aviso: Esta obra menciona relacionamentos tóxicos, machismo e abuso de poder.
Para convencer Prosérpina a voltar para a tela por algumas horas, foi preciso apelar para algo inesperado: dinheiro para que comprasse “coisas de mulher”. Afinal, se Prosérpina ficaria mais tempo entre eles, precisava de outros trajes além do vestido verde-escuro que a curandeira tinha arranjado.
Mas como Theo não poderia abandonar a loja, Gwen tinha que cuidar de suas pacientes e Pasha estava ocupado pavoneando lorde Farrington para ganhar mais tempo, sobrou para Samir e a mãe levarem a criatura em uma excursão pelas ruas sempre cheias da capital.
— Não entendo por que Theo não pôde vir conosco — Prosérpina reclamou, olhando para a cidade movimentada pela janela do coche de aluguel. Era preciso quebrar o silêncio de algum jeito, já que a senhora Nasser, embrulhada em xales coloridos, os cabelos brancos escondidos em uma antiquada touca de renda preta, tinha pegado no sono tão logo o carro começou a andar. — Quero dizer, não se ofenda, mas a sua religião não tem uma série de regulamentos sobre homens solteiros acompanharem moças solteiras por aí?
— Não me ofendo, senhorita. Minha mãe está presente, então é como se estivesse levando uma irmã para um passeio. E como a senhorita sabe tanto sobre minha religião?
— Havia visitantes da sua gente no palácio. E, bem, eu não sou surda, ouvi Theo falando com você.
— A senhorita morou muito tempo nesse tal palácio?
— Tempo o suficiente para aprender. — Prosérpina se endireitou no assento. Precisava se lembrar que Samir não conhecia sua história. — Queria perguntar uma coisa. Há quanto tempo você trabalha com Theo?
— Depende de como a senhorita deseja calcular. Trabalho para a Higgins & Co. desde os meus quinze anos. Metade da minha vida. Quando eu tinha três anos de loja, o senhor Jansen foi contratado. Ele começou varrendo o chão e lavando os almofarizes, depois foi escalando a montanha até se tornar o mestre colorista. E ele é meu patrão há um ano e dois meses.
— E é um bom patrão?
— Não tenho queixas.
— “Não ter queixas” não significa lá grande coisa. Eu não tinha queixas do palácio, mas também não gostava de morar lá.
— Ele é competente em seu ofício e sabe tratar os funcionários com justiça. Muitos no lugar dele teriam vendido a loja e mandado todos para o olho da rua… Mas, como a senhorita deve ter notado, o senhor Jansen é um bom homem, então…
— Ele é tremendamente solitário, isso sim. Tem você e tem o senhor e a senhora Doyle, mas vocês têm os próprios problemas, suas famílias. Onde está a família dele? Os irmãos? As irmãs?
— Pensei que ele houvesse dito, senhorita. Ele não tem irmãos ou irmãs. Nem pais ou tios ou qualquer outro parente de sangue. — Samir olhou para fora. Maldito fosse o trânsito daquela cidade! Sempre tudo parado, era mais fácil andar a pé.
— É pior do que eu pensava! Mas… não sei… essa solidão… Está bem, família de sangue não dá para criar com um passe de mágica, mas… nem uma esposa? Ele encontra esposas para Deus e o mundo, por que nunca encontrou uma para si?
— Honestamente, senhorita? Só entre nós? — Samir olhou para os lados, como se realmente precisasse se certificar que ninguém estava ouvindo. A senhora Nasser seguia cochilando. — Qualquer outra pessoa teria dado pulos de alegria em herdar uma loja como aquela. Quero dizer, o dinheiro e a posição… para quem veio do nada como ele, como eu… E ele trabalha duro para manter o que recebeu. Mas acho que não sabe como… não tem nem ideia de que existe vida fora da loja. Ele vive para as cores que cria, mas…
Antes que acabasse falando mais do que devia, Samir abriu a porta do coche para escoltar Prosérpina e a senhora Nasser para dentro do ateliê da modista recomendada por Gwen. Seu patrão o esfolaria se soubesse daquela conversa, com certeza (se bem que, para isso, Theo teria de subir em um banquinho, do contrário não alcançaria seu pescoço. A cena pareceu tão hilária que o medo que sentia se dissipou em uma discreta gargalhada, e ele não percebeu um homem alto e de cabelos castanhos espiando a cena do outro lado da calçada).
***
Quando Samir devolveu uma Prosérpina sã e salva e cansada ao apartamento de Theo, o colorista tinha retornado do trabalho, mas ainda estava envolvido nos assuntos da loja — havia um volumoso relatório de vendas apoiado na poltrona, esperando por ele. O anglo-egípcio, exausto e pressentindo que não era exatamente bem-vindo quando o chefe tinha uma pilha de documentos fiscais para ler, não ficou nem mesmo para tomar chá — logo partiu, deixando o patrão e a senhorita Malmaison a sós.
— Estava esperando mais pacotes — Theo disse para Prosérpina à guisa de cumprimento.
— Mandei entregar tudo na casa dos Doyle. É lá que eu moro, não é? Samir tomou conta de mim direitinho, manteve sua palavra. Ele e a mãe foram muito gentis comigo. E tenho que lhe entregar o troco…
— Fique com ele, pode ser que você precise de dinheiro mais tarde.
— Você não quer saber quanto eu gastei?
— Se foi mais do que o combinado, as contas vão para a casa dos Doyle, então não vou me preocupar com isso.
— Você está bem? — Prosérpina se aproximou um pouco mais de Theo. — Parece que foi arrastado por uma tropa de cavalos!
— Não, fui atropelado por isto aqui. — Ele ergueu os calhamaços desajeitados com as duas mãos. Várias caligrafias e datas se espalhavam pelas páginas, indicando que os vendedores da loja não tinham um sistema coeso de organização. — Sou o responsável pelo estabelecimento, então preciso ver o que anda saindo na loja para saber quais tintas devo fazer a mais, quais não valem mais a pena investir, o que o pessoal anda procurando, as últimas tendências… É um trabalho bem chato.
— Você gosta da loja, Theo? — Prosérpina se sentou ao seu lado na poltrona. De novo, o gesto parecia a coisa certa a fazer, mesmo que todos os outros dissessem que o educado seria manter distância polida. Próximos o suficiente para sentir o calor do corpo um do outro, mas aquilo não parecia perigoso, apenas óbvio.
— Gosto de ter um teto todo meu e comida na minha mesa. A loja me dá isso.
— Sim, sim, mas… você poderia contratar alguém para fazer isso para você. Promover o Samir, por exemplo.
— Ele insinuou que estava infeliz em sua posição, por acaso? — Theo ergueu uma sobrancelha, o som de sua voz levemente alterado.
— Não, nem conversamos sobre isso. É que você parece infeliz lendo esses relatórios.
— Ônus e bônus. Adoraria só me dedicar aos pigmentos, que é o que gosto de fazer, mas a vida é assim. Frederick devia saber o que estava fazendo, eu acho. — Theo colocou o cachimbo de cerâmica na boca com um gesto distraído. — Pasha já devia ter chegado para te buscar. O que está causando essa demora?
— Theo, um dia você me fala sobre esse Frederick?
— Não tem muito o que dizer. Ele era o dono da loja, mas não tinha o menor tino para os negócios. Odiava o primo que seria o herdeiro natural de tudo, depois da morte dos dois irmãos mais velhos dele. Quando morreu, deixou tudo para mim de vingança. É só isso. Agora, eu queria realmente voltar ao…
— Sim, mas por que você? E não, sei lá, o Samir ou outra pessoa?
— Eu realmente não quero conversar sobre isso! — Theo deu uma baforada no cachimbo, tentando se acalmar. — Escute, combinado é combinado. Você ganhou seu passeio. Salve minha pele e pose para o lorde amanhã. Está bem?
Prosérpina não respondeu, apenas permaneceu ao lado de Theo. Ele parecia tão exausto que dava até pena — ela se lembrava das noites em que o observava ali, naquele canto, lendo e fumando até altas horas da noite, encolhido na poltrona. Agora parecia fazer sentido, considerando tudo: se ele se encolhesse e não fizesse barulho, ninguém desconfiaria que estava ali. Ninguém poderia acusá-lo de estar em um local proibido, em uma casa que não era sua.
— Sinto muito por ter entrado no camafeu — Prosérpina disse, de repente. — Você sente muito a falta dela, não é? Da moça no retrato.
— A “moça” é minha mãe. Foi a minha mãe — ele se corrigiu, a testa franzida. — Petronella Jansen. Deus a tenha.
— Deve ser bom ter uma mãe. Ou ter tido. Como é?
— Prosérpina, minha mãe morreu quando eu tinha seis anos de idade. Acho que não sou boa fonte de conhecimento do assunto. — Ele baixou de novo o relatório e o cachimbo. — Por que não pergunta para Samir? A senhora Nasser é o centro do universo dele. Não pergunte para Pasha, ele foi abandonado ao nascer. E não pergunte para a Gwen, ela odeia a mãe. Será que eu posso…? — Ele ergueu a papelada com um gesto irritado.
— Theo, você me levaria para dançar em um baile um dia?
— Que conversa de maluco é essa?!
— Não é maluquice. É só uma coisa que me ocorreu. Da minha parede no palácio, eu às vezes via os convidados dos bailes… Conseguia até ouvir a música. Tudo tão bonito e não tinha um retratinho no salão onde eu pudesse me esconder e ver tudo de perto. Por que não me leva para um baile?
— Em primeiro lugar, não sei dançar. E em segundo lugar, pelo amor de Deus, é tudo o que eu precisava nessa vida, ser visto com você em público. E ainda por cima em um baile!
— Por quê? Eu sei me comportar. Juro que sei!
— Prosérpina Malmaison, você já considerou a ideia de que eu teria de explicar quem é você para quem nos encontrar? E você já considerou a ideia de que alguém pode te ver e contar ao Lorde Farrington? “Olha, eu vi uma moça que parecia tanto com a Perséfone do seu quadro!”. Como eu explico isso? Como? Você nasceu, se é que dá para dizer isso, há quarenta anos. Você tem só três anos a menos do que a minha mãe, se ela tivesse vivido até o dia de hoje.
— Quantos anos sua mãe tinha quando se casou?!
— Dezesseis. Praticamente arrastada para o altar para se casar com um homem de quarenta e oito anos. Ela odiava o marido e me odiava porque eu parecia com ele. Pare de fazer perguntas, pelo amor de Deus!
Theo se ergueu com um salto da poltrona e o cachimbo de porcelana caiu no chão entre eles, partindo-se em três pedaços. Prosérpina correu para recolher as brasas — Theo tentou impedi-la, com medo de que se queimasse; os dedos dos dois se entrelaçaram e eles se encararam.
Ah, lá estava o medo que o fazia se encolher na poltrona: era isso que esfriava as mãos dele.
Ela o puxou pela nuca e o beijou muito de leve, esperando ser rechaçada, expulsa do apartamento e da vida dele por causa da transgressão. Mas era inevitável: ele estava ali, tão próximo, tão desolado, que não conseguiu se impedir de consolá-lo. Pelo menos era o que ela tinha em mente nos primeiros cinco ou seis segundos, antes dele agarrá-la de volta, retribuindo o beijo com tamanha ferocidade que não era possível raciocinar, apenas reagir com o mesmo ímpeto, agarrando-se onde possível para não ser derrubada ao chão.
Como era possível que ele fosse doce? Doce como torrão de açúcar, e ao mesmo tempo ter um certo amargor como as sementes e o suco das romãs, doce e incandescente. Ali estava ele: ali, naquele beijo.
A campainha soou; Theo se afastou, arfando. Algo havia mudado dentro dele, Prosérpina conseguiu notar. Queria que fosse um lampejo de vida, uma centelha nova, mas ele parecia ainda mais perdido do que antes. Ela sabia o motivo, e se odiava por isso: ela seria mais uma pessoa que iria embora. Arruinara a paz que ele tivera tanto trabalho para conquistar, tanto trabalho para cultivar, e iria embora sem ver os escombros que deixava.
Pasha, do outro lado da porta, foi misericordioso — se ele percebeu algo, guardou para si os eventuais gracejos. Apenas a levou de volta para Lamb’s Conduit Street e não fez comentários além de questões do dia de compras e dos trajes adquiridos. Tudo muito raso, tudo muito cortês — tanto melhor assim. Ela sentia como se tivesse perdido a voz e a mente em algum lugar entre as frestas do assoalho daquele apartamento, entre as marcas dos dedos de Theo em seus braços e a sombra do calor das mãos dele em seus cabelos desfeitos.
Ela não era Prosérpina coisa nenhuma: naquele instante, estava mais para Pandora, e no fundo da caixa aberta só havia um resto de esperança quase apagada.
Continua…
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CRÉDITOS
Autora: Anna Martino Edição: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves Preparação: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves Revisão: Lavínia Rocha Diagramação: Val Alves Título tipografado: Samia Harumi
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