Aviso: Esta obra menciona relacionamentos tóxicos, machismo e abuso de poder.
Theo esperou e esperou — pelo que, exatamente, não sabia. Por Pasha ou por Gwen batendo em sua porta para perguntar o que tinha acontecido, por Prosérpina surgindo de dentro de alguma pintura para pedir desculpas pelo beijo, ou para beijá-lo novamente. Até mesmo Eliza seria bem-vinda, pensou com algum amargor, porque pelo menos seria alguém que removeria aquele susto no qual estava imerso, aquele tom de vermelho que o incendiara por completo.
Por favor, ele se lembrava de ter dito a Prosérpina. Tinha dito mesmo ou só pensado? Por favor, não pare.
Ninguém jamais tinha lhe arrancado aquele tipo de apelo. Nunca tivera oportunidade, nem motivo para se colocar à mercê de alguém daquele jeito. As cores e os idiomas se misturavam dentro dele em uma grande confusão, e não sabia se gritava ou se deveria se esconder, deixar passar, quando na verdade o que queria era queimar naquele incêndio uma vez mais.
Mas quem apareceu no apartamento, no fim das contas, foi Samir — acompanhado de um outro homem em um casaco militar vermelho, suíças imensas de um castanho vívido no rosto queimado de sol.
Aquele cabelo cor de segredo, de novo. Por falar em banho de água fria.
— Patrão, consegui uma novidade sobre o… — Samir começou a falar, mas os olhos foram diretamente para o buraco no tapete.
— Que posso dizer? Não deveria dormir com o cachimbo na boca — Theo disse, olhando para a dupla díspar diante dele. — Desculpe-me, mas o senhor seria? — o colorista se dirigiu ao militar.
O sujeito em questão era alto, mais alto que Samir, um tipo musculoso que ocupava todo o ambiente e provavelmente entalava em poltronas estreitas quando precisava se sentar. Mas ao abrir a boca, a voz era de um adolescente levemente assustado:
— Capitão Emmanuel Horrel, senhor — o militar se identificou. — O senhor Nasser me disse que o senhor estava procurando informações a respeito do lorde Farrington.
Theo assentiu, ainda se esforçando para parecer animado. Ninguém chamava Samir pelo sobrenome: o capitão, pelo visto, tinha algum respeito pelas convenções mais elementares. Chegou a oferecer bebida por educação, mas o visitante recusou. Horrel era bem mais novo do que aparentava: as suíças provavelmente eram um disfarce para dar a impressão de mais idade, algo mais digno do que se esperaria de um capitão da guarda. Não tinha experiência de batalha, apesar dos olhos pesados indicarem uma vida tão sofrida quanto a de seus interlocutores. Ele era verde: a timidez das folhas ainda por nascer.
— O senhor Nasser me disse que a honra de uma moça está em perigo.
— Por assim dizer. — Theo olhou para seu secretário de soslaio, tentando imaginar o que Samir dissera para fisgar aquele homem. — O que o senhor tem a dizer sobre lorde Farrington?
— Nada de abonador, mesmo que ele seja o responsável pela minha existência.
Theo olhou outra vez para Samir, que deu de ombros muito discretamente. Aquele anglo-egípcio poderia realmente derrubar todo um governo — ou mesmo o palácio de Buckingham inteiro — se tivesse dois dias livres e algum motivo.
O jovem capitão Emmanuel não tinha uma história incomum — promessas que não foram cumpridas e uma mulher que acabou desonrada e grávida. A mãe do garoto recebeu compensação financeira: o lorde arranjou uma posição como governanta (dizendo que era uma viúva a quem lhe cabia o auxílio) e pagou a comissão do filho natural no exército.
Uma tragédia, sem dúvida. E, infelizmente, bem comum entre a gente do topo da pirâmide social — Theo, melhor do que ninguém, compreendia o incômodo do jovem em contar sua história. Mas precisava ser um tanto prático — o que tudo aquilo significava para Prosérpina, afinal? Porque, no fim das contas, Farrington só lhe interessava porque uma criatura mágica saltou da tela para fugir daquele homem. Samir, claro, não sabia disso, mas… O que ele não sabia, não tinha como machucá-lo.
— Lorde Farrington é um homem muito estranho, senhor Jansen. É triste dizer isso, mas não tem outra maneira de descrever — Emmanuel completou. — Simplesmente odeia a humanidade. E, em especial, odeia as mulheres. Por isso, quando o senhor Nasser me falou que a honra de uma mulher estava em perigo…
— Preciso que você seja um pouco mais específico. Quando você diz que ele odeia as mulheres…
— Não é uma palavra que eu uso de maneira leviana, senhor. Minha mãe escapou até que inteira de suas garras, mas outras…. Nunca encontrei outros filhos, não sei se existem. O senhor entende… No meu caso… ele disse à minha mãe, com todas as letras, que eu não era filho dele e por isso não teria seu sobrenome. Pagou minha educação como quem paga pelos serviços prestados de uma… — Emmanuel corou até ficar praticamente da cor de casaco. — Enfim, imagino que outras devam ter ouvido o mesmo. Ele só dava atenção para a sua coleção de arte.
— Ah, sim, a famosa coleção. — Theo sentiu o sangue correr mais depressa. Enfim estavam chegando a algum lugar.
— O senhor conhece? Ele é bem específico… As únicas mulheres que aprecia são as que estão nas telas. Ele adora apadrinhar artistas para que criem retratos baseados em lendas gregas ou orientais. O que significa que tem moças sem roupa à vontade para olhar e ainda chama de arte. A única que escapa disso é a Perséfone.
— Conheço esse quadro.
— É uma tela muito bonita, não é? Muito vestida para o gosto do lorde, mas é o quadro preferido dele. Tinha uma sala exclusiva, ninguém podia entrar ali. Ainda me lembro do que aconteceu quando tentei… — O jovem capitão franziu a testa em uma expressão de medo. Ali no alto, quase escondido no começo da cabeleira, uma cicatriz acusatória. — Mas como o senhor conheceu o quadro?
— Seu pai tem interesse na obra do artista e pediu para que eu avaliasse o quadro — Theo mentiu. — Minha preocupação não são as pinturas. Seu pai anda incomodando uma dama… E preciso que pare com isso. O que o senhor sugere que eu faça?
— A dama é alguma coisa sua? Uma irmã, ou parente? Recomendaria mandá-la para longe, o mais longe que o senhor conseguir… Ele não descansa enquanto não consegue o que quer.
— Não pretendo mandá-la para lugar algum! — Theo viu vermelho na frente dos olhos.
— Ah, entendo. — O tom da voz mudou para algo que parecia desânimo, desistência até. — Ouça, nesse caso, tenho de dizer que é causa perdida. Ele provavelmente vai oferecer muito dinheiro para essa moça. É o único idioma que compreende… O senhor tem como dobrar a aposta? — E, vendo como Theo enrubesceu de raiva: — Veja bem, senhor Jansen, imagino que ela seja uma moça decente, mas… O senhor precisa estar preparado. Se não tem como mandá-la para longe, case-se logo com ela. Meu pai não costuma invadir território alheio, se o senhor compreende.
Theo cruzou os braços, vendo como a imagem do capitão se alterava diante de seus olhos. O verde tímido do corpo imenso de Emmanuel tinha mudado de tom: agora era o verde do alimento que apodrecera antes de ser consumido. Era filho do pai dele, não havia dúvida. Era o mesmo tom da voz de Farrington, destruído pela saudade da mulher que chamava de Perséfone.
Pai e filho usavam o mesmo nome para o quadro. Certamente não era a única coincidência.
Theo tinha conhecido um homem como aquele que o visitante havia descrito: Hubretch Jansen, que Lúcifer o espetasse na bunda por toda a eternidade. Por tudo o que Emmanuel disse a respeito de Farrington, ele poderia estar descrevendo o velho mestre-colorista de Delft. A única diferença é que Hubretch tinha se casado com sua vítima preferida.
O colorista achou que a noite terminaria com aquela conversa, mas Samir tinha mais um truque no bolso do colete colorido. Após Emmanuel sair do apartamento, o anglo-egípcio pediu que o patrão aguardasse um instante, enquanto ia buscar algo em outro local. Dali a cinco minutos, trouxe para a sala uma moça mirrada em um vestido surrado recém-tingido de verde musgo — o cheiro dos pigmentos ainda pairava das roupas e manchava as fitas do chapéu igualmente surrado.
Eliza Silver, pálida de susto.
Samir nunca fazia nada pela metade. Theo bem que deveria ter desconfiado.
— Então esse é o seu militar com a vara de pescar enfiada no traseiro? — Theo não se levantou do assento. Eliza assentiu, trêmula. — Aquele que foi procurar a sua mãe. — Novamente, a resposta veio com um gesto de cabeça. — Horrel. Não Hummel, nem Horton, nem nada.
— Nunca disse que o nome dele era Hummel — Eliza protestou.
— Não, isso foi o Rossetti. — Que muito provavelmente não tinha ouvido direito o que Eliza lhe dissera. Não seria exatamente uma surpresa. Cada um que ouvia a história, ouvia sem prestar atenção: olha o lobo, olha o lobo, e ninguém via o lobo no fim. — O que ele queria com sua mãe?
— Não sei. Ela me disse que era para eu ficar longe dele, mas não abre a boca para dizer o motivo… Quando o senhor Nasser apareceu lá em casa, ela só faltou beijar o chão! — Theo ergueu a sobrancelha: de sujeito irritante para senhor Nasser, grande evolução. Olhou para Samir, mas o anglo-egípcio deu de ombros, enquanto recolhia as xícaras de chá e seguia para a cozinha, deixando os dois a sós. — Eu falei aquele monte de coisas e você ainda assim me ajudou. Theo, eu…
— Guarda isso para você. Por favor. Devia ter deixado você se afogar, mas…
— Você é melhor do que isso.
Em qualquer outro momento, aquela frase teria soado como uma afronta, porque Eliza era incapaz de dizer algo bom para alguém além de si mesma. Mas ela estava com medo de verdade, e Theo estava exausto demais para responder. O esforço para traduzir as frases dentro da mente, o esforço para mentir sobre Prosérpina e o motivo verdadeiro para ter posto Samir atrás de informações sobre Farrington, tudo o levava à lona.
— Talvez eu possa te arranjar um marido, no fim das contas.
— Estou bem como estou, obrigada. Nem toda mulher quer ou precisa de um marido, sabe? Talvez elas queiram outras coisas além de um panaca na cabeceira da mesa com poder de vida ou morte.
— Que seja. Você me lembra minha mãe, nesse aspecto. Não deu muito certo, a vida dela como um todo… Mas quem sabe pode dar certo para você? Você poderia investir sua imaginação em alguma coisa diferente. Se você começar a colocar as coisas que você inventa no papel, quem sabe?
— E quem iria ler isso? — Eliza deu uma risada.
— Todo mundo adora ler sobre escândalos e odeia vivê-los. Por que não tenta? Põe um nome de homem na capa e tenta ver o que acontece. Posso pagar pela impressão.
Eliza pareceu não acreditar muito na ideia, e Theo decidiu não insistir no assunto. Tinha dito aquilo sem pensar, mas a ideia parecia fazer sentido. Podia fazer outros tipos de coisas com a herança complicada que Higgins deixara. Se aquilo funcionasse…
— E aquela lá do quadro? Nunca mais a vi. Desistiu de você?
— É complicado de explicar, Eliza. Como tudo na minha vida…
Theo tirou o camafeu do bolso da calça. Petronella Jansen, jovem para sempre, loira e de bochechas grandes e rosadas, eternamente a moça de dezesseis anos vendida pelo próprio pai para pagar dívidas de jogo. A saudade, pensou, também era amarelada como papel velho, como roupas guardadas em um baú, como o metal do camafeu. Um tom de amarelo que contaminava tudo o que tocasse.
Estava exausto de tons amarelos, exausto de viver imerso em púrpuras de tristeza e inveja e inatividade. Queria algo que fosse vermelho: como romãs, como incêndios, como desejo compartilhado.
Continua…
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CRÉDITOS
Autora: Anna Martino Edição: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves Preparação: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves Revisão: Lavínia Rocha Diagramação: Val Alves Título tipografado: Samia Harumi
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