Aviso: Esta obra menciona relacionamentos tóxicos, machismo e abuso de poder. Esse capítulo faz alusão à conteúdo sexual.
O pacote chegou na loja dois dias depois. Um cachimbo de porcelana branca com detalhes floridos pintados em azul, muito parecido com o que havia sido quebrado. Veio acompanhado de um cartão escrito com uma letra rebuscada, o papel cheirando a incenso e rosas:
P. pediu para te comprar esse troço — disse que você entenderia. Ela disse que posa para o quadro, não tem problema, mas você poderia aceitar isso como pedido de desculpas? (Por favor, trate de aceitar, porque a pobrezinha está morrendo de chorar e eu não aguento mais o barulho!)
— Samir, você tem alguma coisa a ver com isso? — Theo ergueu o bilhete. Não precisava de remetente quando a nota tinha o mesmo perfume do escritório de Gwen, e o tom de voz anasalado de Pasha em cada uma das letras inscritas no papel. Mas algo lhe dizia que aquele cachimbo não tinha sido ideia de nenhum dos Doyle.
— Por que teria, patrão? — Samir não se deu ao trabalho de olhar para o chefe enquanto fingia organizar a correspondência e as caixas de pigmentos. — Chamo o menino de recados?
Theo chegou a pegar um bloco de papel na escrivaninha e abrir o vidro de tinta para escrever uma mensagem de volta, mas ficou perdido, a pena erguida no ar, sem saber o que dizer. Que mensagem poderia funcionar e, ao mesmo tempo, escondê-lo caso a carta fosse interceptada por alguém?
Afinal, lembrava muito bem do que havia matado Frederick Higgins no fim de tudo — uma carta em mãos erradas. O mundo tinha desabado por conta de meia dúzia de palavras fora de contexto e intenções ruins. Ele não estava nem de longe na mesma situação, mas o medo o paralisou ainda assim.
E se alguém o visse? E se alguém soubesse? Por que ele achava que era especial?
— Patrão, não é da minha conta, mas…
— Mas você tem uma ideia.
— Por que não leva a senhorita Malmaison para um passeio? A loja não vai falir se o senhor sair por algumas horas, não tenho talento para destruição. E quem sabe o senhor pode agradecer a gentileza da moça em comprar um cachimbo novo igualzinho ao que o senhor quebrou…
— E quem será que contou para ela onde comprar o cachimbo, hein? — Theo resmungou, escrevendo uma nota para o menino de recados levar até Lamb’s Conduit Street. Samir deu de ombros novamente, mas dava para notar o sorriso mesmo de longe.
***
Quando ele foi buscar Prosérpina na casa dos Doyle, foi recebido por uma mulher que não conseguiu reconhecer à primeira vista: uma moça de azul-pavão das botinas forradas até o último dos enfeites, prendendo o cabelo trançado à perfeição, em um vestido moderno que a deixava parecendo ainda mais uma criatura etérea. Porém, sentados um diante do outro na carruagem de aluguel que Theo arranjara para o passeio, pareciam mais dois estranhos em um navio. Ele tentou de todo jeito achar tema para conversa, mas todos os assuntos acabavam morrendo de um jeito ou de outro. Prosérpina, por uma vez na vida, estava muda a ponto de mal se ouvir sua respiração, tentando se manter parada no assento como uma dama.
— Escute, temos um problema para resolver enquanto não chegamos ao ponto final. — Theo capitulou. — Preciso que você me fale sobre um homem chamado Emmanuel Horrel, se puder.
— Emmanuel? — Prosérpina levou as mãos ao pescoço, os olhos arregalados. — Ah, por Júpiter, não me diga que ele ainda está vivo!
— Está bem vivo, sim. Capitão do exército, aparentemente. Ele me falou sobre as outras pinturas do Lorde Farrington e…
— O harém? — A risadinha de desprezo fez o coração de Theo disparar. Ah, ali estava ela, então: debaixo dos trajes gentis, a mulher que conhecia ainda estava viva.
— Sim, o harém. Fale-me dele.
— O que tem para dizer? Eu só conheço de ouvir falar, e ainda assim porque punha o ouvido atrás da porta. Nunca pude andar pelas telas da casa… O lorde me trancava em uma sala especial, com velas e um troço onde ele ficava ajoelhado para ficar me encarando com aquele olhar de sapo.
— Como um altar? Mas você não é a Virgem Maria, o que aquele sujeito…
— Aquelazinha me chamava assim.
— Não era no sentido que estamos usando aqui.
— Em qual sentido seria?
— E lá vamos nós de novo… Explico depois. Precisamos nos concentrar…
— Não, não, outra vez não. Você vai me explicar agora, Theo!
— Ou o quê? — O colorista imitou o cruzar de braços de Prosérpina na frente dele. — Se eu disse depois, depois vai ser.
— Agora! Quero entender o que vocês estão falando! É de mim que vocês todos estão falando! É da minha vida!
Theo quase disse “que vida?”, mas se conteve no último segundo. Demorou para que encontrasse uma palavra que servisse de explicação, algo que não fosse obsceno, mas que não escondesse a verdade. E a verdade queimava as orelhas dele, melhor ir direto ao assunto.
— “Virgem” como uma mulher que nunca teve relações carnais com um homem. Como uma mulher tola ou inexperiente, inocente a ponto de parecer boba.
A jovem abriu a boca para perguntar algo. Depois fechou, e não conseguiu se conter:
— O que nós fizemos conta?
— Por Deus, claro que não. Não foi certo, está bem, mas…
— Por que não foi certo? Você não gostou? Eu gostei, pelo menos isso.
— Prosérpina, a coisa não é tão simples assim. Você precisa entender que…
— Preciso entender que não existo, eu sei — Prosérpina o interrompeu com um muxoxo. — Sou uma ilusão que pode ser destruída com terebentina. Preciso voltar para a tela ou você e Pasha Doyle vão sofrer as consequências. E lá eu vou ter que ficar até você ficar velho e morrer, até Pasha e Gwen e Samir e todos os outros ficarem velhos e morrerem! Só olhando, sem poder tocar nada! Isso não é justo!
Theo não sabia o que responder. A princípio, sim, aquele era o destino dela, por mais cruel que soasse. Um dia, Farrington morreria — afinal, todos os homens morriam. Talvez aí ela pudesse sair da tela. Mas, para fazer o quê? Quando Prosérpina partisse, ele seguiria em frente com a vida — a loja, os casamentos arranjados — até o dia em que enterrariam seus restos mortais em algum canto esquecido por Deus. E para quê?
Pressionou a mão de Prosérpina contra seu rosto. Parecia que morreria se ela se afastasse mesmo um milímetro. A jovem não se moveu, tampouco, assustada com o olhar daquele homem que nunca demonstrava o tormento que se passava dentro dele.
— Não, não é justo, nada disso é justo. — Theo tentou se recompor, mas ainda segurava a mão dela contra si. — Eu posso te beijar, Prosérpina? Eu não sou um príncipe, eu não posso te salvar desse sujeito, mas…
De fato, ela pensou — uma coisa era ter visto os homens puxando as mulheres para si nos cantos do palácio em Malmaison, e ouvir as risadas e gemidos mal contidos sem entender o que causava tudo aquilo. Outra coisa era ouvir a si mesma rindo do mesmo jeito enquanto Theo a puxava para seu colo, enquanto procurava por algo oculto debaixo do colete e da camisa do colorista. Sentir o coração dele batendo contra a palma de sua mão, e os lábios dele contra seu pescoço — e mais para baixo, e ainda mais para baixo — era como caminhar para dentro de uma fogueira acesa. Ouvir-se pedir por favor era algo assustador, mas não de um jeito ruim. O que mais havia para descobrir? O que aconteceria se descesse a mão mais um pouco, na direção da fonte de todo aquele calor?
O som da carruagem parando fez com que Theo se afastasse, e a empurrasse de volta para o assento. Os dois se encararam: ambos eram brasas vivas.
***
O destino não era um baile, nem um salão de chá: eram as alamedas da Sociedade Zoológica de Londres, o lugar que Theo mais amava no mundo. Ninguém estranharia um casal passeando entre as árvores de Regent’s Park sem ter a temida companhia de uma acompanhante por perto — era um local bem conhecido entre os mais jovens justamente por isso. Entre as mamães com os carrinhos de bebê e as crianças querendo ver os leões e tigres nas jaulas, ninguém prestaria atenção em um ruivo abrutalhado andando de mãos dadas com uma moça diáfana toda vestida de azul, os dois em um silêncio entre o tímido e o deliciado, com medo de que uma palavra pudesse destruir tudo. Um casal como qualquer outro, em um dia feliz.
Quem diria que a palavra que destruiria tudo viria não deles, mas de alguém em outra alameda.
— …Eu sei que você quer vê-la, mas é muito difícil convencer o namoradinho dela a permitir que pose para um quadro.
— Oh, ele é do tipo ciumento? Pensei que você era bom em convencer as pessoas.
— Você não o conhece. Ele é uma muralha. Um gênio! Um grande homem! Devo muito a ele, Deus sabe. Mas quando se trata dessa mulher, é uma parede intransponível. Nunca vi coisa igual.
— Entendo de tipos assim. Nada que certo incentivo não resolva. E eu posso aparecer com o incentivo…
Prosérpina agarrou a mão de Theo com mais força do que antes. Ela reconhecera as vozes. Um era Dante Gabriel Rossetti em seu conhecido casaco marrom, e não se preocupava com ele. Era o interlocutor do pintor que a assustara. Theo teve a presença de espírito de não fazer perguntas: simplesmente puxou o camafeu para fora do bolso do colete e, com um gesto, pediu para que ela se escondesse.
O truque foi bem na hora — cinco segundos depois, Rossetti apareceu na alameda, erguendo os braços em uma saudação entusiasmada.
O homem ao lado de Rossetti era Emmanuel Horrel, em um terno escuro que o deixava com cara de civil bem-nascido e ainda mais jovem do que era. Mas o verde que vinha dele ainda era do mesmo tom de podridão, de coisas que poderiam ter sido aproveitadas, mas que foram escondidas por tempo demais.
— Jansen! Mas que imensa surpresa o encontrar aqui! — Rossetti cumprimentou o colorista. — Então você também gosta de animais selvagens?
— Ajuda a descansar a vista… Como estão os preparativos para a famosa exposição dos Pré-rafaelitas?
— Indo de vento em popa! Por falar nisso… um assunto correlato… Preciso te apresentar o senhor Emmanuel Horrel. Um jovem apoiador das artes. Senhor Horrel, Theo Jansen é o maior mestre colorista de Londres.
— Bem que tento. — Theo estendeu a mão para Emmanuel, como se o desafiasse a manter a farsa. E Emmanuel aceitou o cumprimento com o mesmo sorriso emplastrado no rosto amplo. O verde estava derretendo em suor frio, mas o espetáculo precisava continuar. — Se me desculpem, eu preciso partir. Tenho um compromisso…
— Vai encontrar o belo anjo? — Rossetti sorriu, com um erguer da sobrancelha.
— Não, preciso voltar ao trabalho. Vocês me desculpem… Senhor Horrel, nós nos veremos em breve, certamente…
Aquele substantivo no lugar do título militar fez Emmanuel corar até a raiz dos cabelos castanhos, mas Theo não avançou mais no ataque. Sua mente já ia em outra rotação, tentando encaixar a imagem que tinha de Emmanuel com aquele patrono das artes que, provavelmente, não contara para o artista que ainda vivia com um soldo. De onde viria o dinheiro? Farrington? Ou uma outra fonte ainda por descobrir?
Quando voltou para a carruagem alugada, Theo estava tão histérico com todas as possibilidades batalhando dentro da cabeça que quase se esqueceu de Prosérpina dentro do camafeu. Foi o ruído de algo batendo contra o metal que o fez abrir a joia novamente — desta vez, ele viu a nuvem de vapor e a explosão, e Prosérpina desconjuntada, caída ao lado dele com cara de quem ia vomitar. O colorista bateu no teto, ordenando que o carro partisse. Só quando as árvores do parque estavam bem distantes é que Prosérpina pareceu recuperar a voz.
— Aquele… aquele desgraçado! — O grito se fez ouvir acima do ruído dos cavalos e da rua do lado de fora. O chiado de seu peito não era nada perto da raiva que sentia. — Você não armou isso. Não teria coragem. Você não faria isso comigo. Não me entregaria na mão daquele monstro!
— Estou tão perdido quanto você. Emmanuel aprontou alguma coisa contigo?
— Ele tentou pôr fogo na minha tela! Só isso!
— Ele me disse que brigou com o pai por sua causa. Foi isso?
— Sim! Quer dizer, não. Quer dizer, também por isso… Por Júpiter… Ele mudou bastante… Era um moleque quando eu o vi pela última vez… Um moleque irritante! Ele… Ele era curioso, sabe? Sempre conseguia destrancar a porta da sala onde eu estava. Sempre! O lorde mudava a fechadura e na semana seguinte…
— Não vá me dizer que Emmanuel também ficava de joelhos rezando.
— Definitivamente não. Eu era como uma das garotas do harém. Ele fechava a porta e abria as calças. — Prosérpina fez uma careta ante à lembrança. — Nada que eu não tivesse visto no palácio, tá bem… E, honestamente, no caso dele, mal dava para enxergar! Coitado, parecia uma tripinha!
— Suponho que a briga tenha sido por isso? — Theo se esforçou para disfarçar o constrangimento.
— Sim, sim, foi por isso. Foi um quebra-quebra danado… Eu nunca vi o lorde tão furioso. E ele xingava em francês, então entendi tudo muito bem. Disse que ele estava horrorizado com Emmanuel. Que era culpa do sangue ruim da mãe dele, aquela rameira, e que… bem, ele perdeu a cabeça. Emmanuel quase perdeu a cabeça, também. A de cima, no caso. O lorde arrebentou um vaso bem aqui — ela apontou o alto da testa. Bem onde Theo tinha visto a cicatriz na cabeça do militar.
— E depois disso…?
— Foi depois disso que o Emmanuel tentou colocar fogo na tela. Ele disse que foi um acidente com as velas… Acho que foi aí que o lorde percebeu que eu me mexia. Talvez. Não sei. Eu quis tanto fugir, mas para onde eu poderia ir? O lorde me colocou em outra sala, ainda menor e com mais flores e mais velas. Foi a única vez que falou comigo. Quero dizer, que ele olhou nos meus olhos e falou comigo. Disse que eu não deveria me preocupar, eu estaria a salvo ali. — Ela voltou a tremer. — A salvo! A salvo numa sala sem janelas! Escura como imagino que sejam os túmulos, depois que ele apagava as drogas das velas… A salvo de quê?
Theo apoiou a cabeça da garota em seu ombro e os dois ficaram quietos, acalmando um ao outro de mãos dadas enquanto a cidade e seus habitantes passavam pela janela.
— Você vai estar comigo amanhã, não vai?
— Confie em mim. — Ele beijou a palma da mão de Prosérpina como quem fazia uma promessa. Quando ela retribuiu o gesto da mesma forma e os dois se encararam, entendeu que estavam juntos naquela batalha, para o bem ou para o mal.
Continua…
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CRÉDITOS
Autora: Anna Martino Edição: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves Preparação: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves Revisão: Lavínia Rocha Diagramação: Val Alves Título tipografado: Samia Harumi
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