Aviso: Esta obra menciona relacionamentos tóxicos, machismo e abuso de poder. Esse capítulo faz alusão à conteúdo sexual.
No dia seguinte, a imensa carruagem de Farrington apareceu na loja de tintas no horário marcado, com dois guarda-costas que se postaram à frente do estabelecimento sem a menor cerimônia, atrapalhando quem passava pela calçada do mesmo jeito que os dois cavalos magricelos atrelados ao carro atrapalhavam na rua. Os funcionários, avisados de antemão, tinham arrumado a loja impecavelmente e usavam as melhores roupas e os aventais mais limpos que conseguiram achar. Até mesmo Samir se dera ao trabalho de vir mais à moda ocidental — a julgar pelo olhar decepcionado do lorde ao vê-lo, talvez fosse um erro tático.
Mas a falta dos coletes chamativos de Samir não era problema, não quando a preocupação de Theo era o esquema de segurança do local onde Prosérpina tinha sido pendurada: um cômodo no primeiro andar da loja, sem janelas e com uma única porta. Garantia de privacidade para o lorde, dissera, embora a garantia de fato fosse para ele: não tinha para onde Farrington fugir, não sem enfrentá-lo. Theo deixara Samir avisado sobre Emmanuel, e o secretário tinha pedido ajuda aos amigos para vigiar a loja de longe. Pasha, por sua vez, usara truques para garantir que o cômodo com o quadro fosse protegido enquanto durasse a visita. Eliza, por precaução, tinha sido mandada para uma sessão com um dos colegas de Rossetti na Irmandade, longe de onde Emmanuel pudesse procurá-la.
Com as peças dispostas em jogo, restava apenas um item para ajeitar, e a jovem loira com a romã nas mãos não decepcionara o público pagante — nem mesmo um fio fora do lugar no arranjo intrincado de cabelo, nem um amassado nos brocados do traje medievalesco. Aquilo pareceu deixar Farrington feliz o suficiente enquanto andava de um lado para o outro, observando cada detalhe com olhos muito atentos.
Theo, por sua vez, olhava para o nobre e tentava encontrar algo que parecesse com Emmanuel naquele rosto enrugado. Aqui e ali, na curva do queixo, no porte dos ombros, o pai lembrava o filho. O capitão tinha herdado os olhos rasos da mãe, mas o nariz era parecido com o do nobre que olhava para o quadro com um desespero que tingia tudo ao redor de azul como as porcelanas que Theo colecionava.
— Jansen, eu posso perguntar uma coisa em particular? — Antes que Theo pudesse responder, o lorde continuou: — Você tem parentes vivos?
— Alguns tios por parte de mãe, milorde. Não temos contato. — Theo começou a ficar nervoso. O que aquele homem queria? Tentar ameaçar sua família? Os tios não dariam a mínima para a chantagem. Certamente não sabiam da nova fortuna de Theo, do contrário teriam aparecido para cobrar sua parte do butim.
— Sinto muito por isso. Família… Às vezes eu me pergunto… Enfim, são só os devaneios de um idoso cansado. Perséfone me lembra de tempos mais felizes — o lorde disse, por fim. A voz tinha perdido todo o orgulho e toda a empáfia. — Você ainda é jovem, decerto não compreende direito o que sinto. Deus queira que você nunca passe por isso. — Ele respirou fundo, voltando para o personagem. A brecha se fechara, o homem ferido se escondera debaixo do manto do nobre. — Siga a investigação. Preciso compreender o segredo dessa pintura. Preciso saber o que está por detrás disto tudo. Você será bem recompensado por seu trabalho.
— Lorde Farrington, eu preciso perguntar…
— Qual a recompensa? Ora, imagino que um selo vindo da Família Real seria um grande incentivo para a clientela. Seu trabalho será reconhecido pela rainha em pessoa, creia em minha palavra. Os artistas que trabalham para a Coroa saberão seu nome. Paul Doyle não seria capaz de lhe dar algo mais precioso.
— Não, não é isso. O que o senhor pretende fazer com o que descobrir sobre a tela?
— O que pretendo fazer? — O sorriso de Farrington pingava superioridade e desdém. — Creio que não possa revelar, meu caro Jansen. Mas não se preocupe. Sua loja e reputação permanecerão intactas. Ninguém sairá ferido.
Ninguém a não ser Prosérpina, Theo pensou com seus botões, olhos para a tela para não trair seus pensamentos. Já tinha ouvido aquilo antes, da boca de um homem bem mais jovem do que aquele nobre, com a mesma intenção e a mesma empáfia, a mesma certeza de que não havia mal algum em seus gestos, em suas ações. Podia ver Frederick Higgins diante dele naquela mesma sala, quando era ocupada por livros e materiais de consulta cinquenta anos defasados. Ora, vamos, por que você está me olhando deste jeito, Jansen? Você é um adulto, deveria saber como as coisas funcionam. A culpa não é minha se você entendeu tudo errado…
Aquela empáfia veio seguida de uma ameaça que era também um pedido desesperado: Se você contar para alguém…
Se Theo contasse para alguém que a modelo de um quadro saíra de sua tela e o beijara, seria enviado para o hospício mais próximo. Era a única garantia que Farrington tinha: todos envolvidos naquela situação estavam isolados, não poderiam contar nada para ninguém do lado de fora. Exatamente como antes, quando Frederick o enfrentara: podia fazer o que quisesse, sua posição o protegia de tudo, exceto dele mesmo.
Theo se lembrava do que acontecera com Frederick, como o desdém daquele homem virou um mar cor de vinho que acabou afogando-o. E agora, passado tanto tempo, podia dizer que nunca estivera realmente isolado. Antes, tivera Samir, Pasha e Gwen, ainda que não pudesse dizer com todas as letras o que tinha acontecido, ou como tinha escapado do maremoto.
E agora, tinha aquela mulher vestida de dourado que o encarou com desespero tão logo Farrington virou as costas para ir embora. Theo suspirou e sacou o camafeu do bolso: ela precisava sair dali, e depressa.
Ele deveria ter ido para a proteção da casa dos Doyle, deveria ter ido para qualquer outro lugar, mas seguiu para a própria residência, olhando por cima dos ombros a cada minuto para se certificar de que não estava sendo seguido. A jornada até Gower Street fez seu coração arder de cansaço: quando enfim chegou no apartamento, tudo ao redor parecia laranja como uma chama acesa. O camafeu praticamente pulou do colete, caiu no chão com um ruído duro. Do meio da fumaça de vapor, Prosérpina se ergueu com dificuldade, o vestido pesado limitando seus movimentos, e correu tropeçando nas pernas até o lavabo.
O ruído de vômito e de respiração difícil fez Theo se mover para pegar um copo de água e, depois, uma toalha para limpar o rosto da jovem. Ela parecia ainda mais frágil e trêmula enquanto a guiava de volta para a sala, mas aquilo era uma impressão passageira: do jeito que ela agarrava o brocado com as mãos avermelhadas, poderia muito bem esganar lorde Farrington ou Emmanuel Horrel. Talvez a solução para os problemas fosse justamente essa: quem acreditaria que um quadro tinha matado alguém?
— Não consigo respirar. Não consigo respirar! — Prosérpina puxava a gola do vestido com tanta raiva que acabou rasgando a frente do traje. Ela olhou para o desastre e começou a rir e chorar ao mesmo tempo, as mãos trêmulas agarrando o que sobrara da roupa. — Por Júpiter, eu odeio esse vestido! Odeio aquela tela! Por que não posso ficar aqui? Por quê? Por que é sempre outra pessoa quem decide tudo por mim? Eu não quero mais vestir isso! Não quero voltar para aquela sala! Não quero!
Theo a puxou para perto e ela, sem aviso prévio, jogou-se nos braços do colorista, procurando seus lábios. Ela também parecia querer se certificar de que ele era real, de que ainda havia algo de vermelho quando se tocavam.
— Você não precisa voltar para lugar nenhum — ele sussurrou entre beijos, escondendo a garota em seus braços, tentando acalmar aquele coração que batia tão desesperado contra seu corpo.
Ele achava que entendia de desespero: não tinha sido desespero que o levara a enfrentar Frederick anos antes? Não tinha sido por desespero que engolira a si mesmo, que tinha negado tudo o que sentia e o que era? O que movia seus dedos a terminar de rasgar aquele brocado odioso, o que o fez cair de joelhos para beijar as pernas de Prosérpina — aquilo que fazia Prosérpina agarrar seus cabelos enquanto implorava para que afundasse ainda mais nela —, aquilo não era desespero. Aquilo era ele — era tudo o que escondera, e que agora explodia como um caleidoscópio.
Ele tinha se enganado em uma coisa, porém: Prosérpina não era do tipo que apenas afastava a roupa para devorar com pressa o que conseguisse alcançar. Ela fez questão de despi-lo com alguma cerimônia, de olhar admirada para o que havia debaixo da sarja marrom e do algodão encardido de tinta que ele vestia como uma armadura.
A admiração era mútua, a falta de jeito idem — há quanto tempo não ria daquele jeito, ou era beijado daquele jeito, tropeçando nas próprias pernas para alcançar o leito? Ele conhecera homens e mulheres antes — que Deus os guardassem, todos eles, mas nenhum tinha arrancado nem a metade do que ele sentia agora. E daí que os vizinhos escutariam os gemidos ou os solavancos da cabeceira da cama batendo contra a parede? E daí que provavelmente Pasha e Gwen desconfiariam do que tinha acontecido? E daí? Vê-la montada sobre ele, o cabelo dourado cobrindo seu corpo, a cabeça pendendo para trás em um suspiro rasgado — aquilo valia sua morte, aquilo valia a morte de um reino inteiro.
Claro que tanta doçura teria um preço amargo. Quando acordou, o sol estava se pondo, e alguém batia à porta da frente com desespero. Ele sabia que era má notícia assim que colocou os pés no tapete gasto, vendo Prosérpina agarrar os lençóis com medo de ser flagrada nua.
Não era nem Pasha, nem Samir, nem mesmo Eliza. Era um moleque de recados da loja, com os olhos esbugalhados de quem vinha com más notícias no alforje.
Continua…
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CRÉDITOS
Autora: Anna Martino Edição: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves Preparação: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves Revisão: Lavínia Rocha Diagramação: Val Alves Título tipografado: Samia Harumi
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