Aviso: Esta obra menciona relacionamentos tóxicos, machismo e abuso de poder. Este capítulo menciona violência física e comportamento tóxico.
— Não deu tempo nem de piscar, patrão — Samir resmungou. Gwen cuidava dos ferimentos do anglo-egípcio o mais rápido que podia, com a delicadeza que só ela conseguia ter enquanto Prosérpina auxiliava segurando uma bandeja com remédios e gazes. O rapaz tinha se recusado a voltar para casa: a mãe ficaria preocupadíssima em vê-lo naquele estado, com um olho roxo, um nariz machucado, escoriações variadas e um braço rachado. Foram todos para a casa em Lamb’s Conduit Street, e a tropa de amigos de Samir agora fazia barricada na porta da residência.
— Trabalho de mestre, tenho de dizer. — Pasha estava esparramado na poltrona ao lado da janela, segurando um lenço xadrez contra o nariz para estancar o sangue. Seus olhos mudavam de verde para azul a cada segundo, mas ninguém na sala parecia notar. — Não deu nem tempo dos colegas do Samir agirem. E os ladrões sabiam muito bem onde estava a tela. Tem algum informante lá dentro?
— Não, não tem. Essa é a pior parte. — Theo coçava tanto a cabeça que os cachos pareciam colunas de fogo erguendo-se na direção dos céus. Ele só conseguia olhar para Prosérpina ao lado de Gwen, e pensar que a pouca alegria que tiveram já era item de museu. Agora, a batalha entrava em território proibido. Ele não se importava de terem invadido a loja, mas ferir Samir? Justo ele, que não tinha nada a ver com aquela história?
Gwen achou melhor dar um sedativo para Samir, e o acomodou em um quarto. Quando ela se certificou de que o rapaz dormia, retornou para a sala de estar, onde o resto do grupo estava. Pasha, o rosto todo torto da pancada que levou, bebia vinho do Porto como se fosse água de fonte. Theo e Prosérpina, sentados lado a lado no sofá, olhavam para a lareira apagada. Eles se levantaram quando a curandeira entrou, ambos com o mesmo olhar assustado.
— Ele vai sobreviver — Gwen respondeu à pergunta não feita. — Não sei o que vou dizer para a mãe dele, porém.
— Diga a verdade. A loja foi roubada, ele tentou impedir e tomou uma surra que quase quebrou ele no meio. E eu vou fazer o culpado engolir os próprios dentes, ainda que me demore cem anos! — Theo resmungou.
— Sentimento admirável, meu querido, e compartilho dele… mas vamos canalizar isso para o alvo correto, sim? — Pasha colocou o cálice de vinho na mesinha. — Você tem certeza mesmo que não tem um informante na loja?
— Tenho. Só duas pessoas têm interesse no quadro. Farrington sabia de tudo o tempo todo, inclusive que Prosérpina consegue sair da tela… — Pasha fez uma careta, mas não dava para dizer se era de dor ou por se sentir um idiota. Prosérpina, por sua vez, desviou o rosto que queimava como um braseiro. Sua respiração começava a chiar uma vez mais. — Emmanuel, imagino, deve ter seguido o pai. Dois seguranças daquele tamanho, numa rua calma? Ele deve ter desconfiado de alguma coisa.
— E o Emmanuel sabe do truque como? — Pasha perguntou.
— Ele sabe por causa do Rossetti — Gwen respondeu por Theo. — Você conhece o sujeito, amor. Ele fez desenhos da Prosérpina quando estava aqui. Se ele acha mesmo que o tal Horrel é um possível mecenas para os Pré-rafaelitas, é claro que mostrou o que estava criando. Logo, dá para concluir muitas coisas…
— Como o fato de ele ter falado muito sobre um “belo anjo” chamado Malmaison, que não posa para ele porque o brucutu holandês que a sustenta não deixa! — Theo bufou. — Se a aparência de Prosérpina não entregou o mistério, o nome fez as honras! Mas isso é outro problema. O problema que me interessa resolver é o que vão fazer com uma tela vazia!
— Ah, meu querido, dá para pensar num monte de teorias. — Pasha se sentou na poltrona em frente ao casal. Gwen, por sua vez, ficou em pé atrás do marido, pousando a mão no ombro do falso russo. Ela estava vigiando a porta, e isso não deixava Theo mais calmo. — Ela se tornou uma criatura independente, isso já notamos… — Pasha pigarreou e Prosérpina de novo desviou o olhar. — No entanto… sem a tela de origem, pode ser que ela sofra algum tipo de revés. Você existe porque a tela existe, Prosérpina, não se iluda. Não existe magia que possa te transformar em uma pessoa.
— Não é para mim que você precisa dizer isso, senhor Doyle… — Prosérpina parou de olhar para as pontas de suas botinas forradas. Quando ergueu a cabeça, Pasha percebeu que a criatura mágica não estava assustada. Estava furiosa. — Theo, eu poderia falar com você em particular? — A jovem se ergueu do assento com a dignidade de uma rainha.
— Vão lá para o consultório — Pasha apontou a sala no fundo do corredor —, que lá ninguém tem como ouvir a conversa.
A sala pintada de verde que Gwen ocupava na casa era longe da rua — a clientela da curandeira precisava de sigilo tanto quanto de cura. Entre vidros de plantas secas e remédios variados, potes de incenso e vasos cheios de rosas, Theo respirou fundo e quase se engasgou com o perfume. Como era possível que alguém conseguisse trabalhar em um ambiente tão insalubre? Prosérpina, porém, não parecia abalada com o odor, nem mesmo quando trancou a porta e respirou fundo algumas vezes até criar coragem para olhar para Theo.
— Ele não tinha o direito. — Prosérpina ainda estava extremamente irritada. — Ele não vai me usar como instrumento de chantagem. Eu não vou deixar.
— O que você pode fazer? Sem a tela, sem nada? Não tente nenhuma maluquice. Se alguma coisa acontecer com você também, Prosérpina, eu não iria aguentar!
— Para quem queria me prender de volta na tela a qualquer preço, é uma declaração bem comovente.
— A culpa é sua. — Theo tentou manter sua voz calma, sem emoção, sem demonstrar nem medo nem tristeza, enquanto se sentava no sofá próximo da janela. O sotaque batavo estava começando a vazar por entre os dentes, arrastando vogais e consoantes em uma cascata. Vulnerável quando deveria ser forte, quando deveria ser enfim o cavaleiro de armadura brilhante que aquela mulher precisava.
Quando eles se encararam de novo, porém, não havia nem um traço de esperança de que aquele cavaleiro fosse mesmo necessário. Prosérpina, afinal, também era Perséfone: a delicadeza das flores também era a dureza da terra que ocultava os mortos que faziam as flores brotarem.
— Se Emmanuel está com a tela, então ele só tem um cenário vazio. Eu posso entrar nele, se conseguir fazer uma rota… Se você me carregar no relicário, se alguém me levar dentro de um cartão-postal ou de uma pintura, qualquer coisa feita com tinta a óleo ou aquarela. Ele quer irritar o pai, só isso. Se eu aparecer e prometer ser boazinha…
— Deus do céu, mas será que você não ouviu o que eu disse? Eu não posso perder você. É do meu interesse manter você viva!
— Se é que isso é vida, não é mesmo?
— Acredite, é vida o suficiente. — Theo beijou o interior do pulso de Prosérpina e ela tremeu involuntariamente. — Você é capaz de sentir isso, não é? Então você está viva. Mais do que eu. Vamos trabalhar juntos, está bem, mas ao menor sinal de perigo, você foge e eu fico. Você ouviu?
— E por que diabos eu faria isso?
— Porque você tem uma vida pela frente. Muitos bailes para ir, muita comida para experimentar. Visitar direito o jardim zoológico. Muitos passeios de barco. Eu não tenho muito uso para a minha vida. Eu nem deveria estar aqui.
— Theo, você consegue sentir isso? — Prosérpina ergueu a manga da camisa e do terno do colorista e retribuiu o beijo no pulso do rapaz, bem sobre a veia azulada. — De que cor é isso? Também é vermelho? — Ele assentiu, sem fôlego para conseguir falar. — Você está aqui. Não morreu com o tal Higgins. Por que você não consegue entender que você está aqui?
O colorista não respondeu. Ele se sentia petrificado, mudo, sem conseguir raciocinar direito, uma dezena de versões dele brigando dentro da mente para decidir como deveria agir — o azul de frio nos lábios da criança abandonada diante de um barco para cruzar o Canal da Mancha sozinha; o verde do desejo corrompido; o púrpura de uma inveja impossível de refrear ao ver um homem ter tudo e ainda assim reclamar de seu destino; o amarelo de uma saudade que carcomia tudo.
E o vermelho vivo que lhe vinha aos olhos quando Prosérpina tocava sua pele, sobressaindo-se a todo o resto.
— Não, não morri com ele. Mas só consigo sentir raiva. Raiva por ele, raiva por mim, raiva por tudo. Raiva. Só isso.
— E de que cor é essa raiva?
— Ela é branca — Theo suspirou. Prosérpina entendia como seu cérebro funcionava, por que ele estava surpreso? — Branco-cinzento, como as lápides novas dentro das igrejas… Como os ossos expostos no Sol.
— E você tem raiva dele por quê?
— Ik geloofde eigenlijk dat hij van me hield. — A frase veio sem que ele pudesse impedir, assim como as lágrimas que não tinha chorado diante do caixão lacrado, nem diante da solidão dos dias seguintes. Eu acreditei de verdade que ele me amava. As palavras se atropelavam dentro dele, e Theo desistiu de se impedir de falar. — Ele vivia para cima e para baixo lendo em voz alta na loja. Vendo quem reagia aos poemas, quem ficava vermelho, quem se constrangia. Viu que eu não corava e então começou a me importunar. Falando de Aquiles e Pátroclo, e de Hermes e Perseus, como se eu não entendesse! Como se eu fosse burro, além de pobre. E um dia…
Theo escondeu o rosto com as mãos, como se aquilo fosse capaz de fazê-lo calar-se. Prosérpina afastou os dedos compridos do rapaz, prendendo as mãos dele contra as pernas. O contato com o cetim engomado pareceu despertar algo inédito: uma sensação de segurança que o fez erguer os ombros sem que ele notasse. Se a morte e a decrepitude eram douradas, aquela coragem confortável era como fios de prata descendo do céu.
— Um dia, eu o tranquei naquela sala do primeiro andar e disse que entendi o que ele queria. Pois bem, eu disse, você quer algo de mim, não é? Você está praticamente colocando um anúncio pendurado no pescoço. Eu não tenho um tostão para chamar de meu, não tenho educação formal, mas eu sei o que você está querendo.
— Ah, Theo… Por Júpiter! — Prosérpina ergueu as sobrancelhas. — Você fez isso mesmo?
— Sim. E eu o agarrei pelas lapelas do terno e o beijei. Como você me agarrou da primeira vez que nos vimos em carne e osso.
— E beijá-lo fazia você ver vermelho também? — Prosérpina pareceu um tanto enciumada, apesar do teor da revelação. Era impossível impedir, e ela nem mesmo se esforçou para disfarçar.
— Não. Era púrpura. Um oceano púrpura. Eu não o beijei por amor. Eu o beijei para calá-lo. Eu não aguentava mais a batalha dentro da minha cabeça. O ruído… o ruído… O modo como ele lia e o modo como fazia questão de me atrapalhar de propósito… — Theo suspirou, cansado demais para brigar. — Consigo entender por que as pessoas cometem pecados, Prosérpina. Porque elas matam uns aos outros. Um século no inferno vale muito a pena por um instante de paz. Teria entregado minha vida para o carrasco se ele tivesse me beijado de volta. Você tem noção do que arrisquei? Você tem noção do que fariam comigo se descobrissem? Mas se ele tivesse me beijado de volta… se ele não tivesse fugido…
— Ele fugiu? Mas como assim, ele fugiu?!
— Fugindo. Ele disse que eu não tinha entendido nada, que não era nada disso, que ele não era assim. Que não era a intenção dele, que eu era um depravado, um monstro. Eu achei que fosse me demitir. Eu achei que ele fosse me jogar na prisão! Você sabe o que fazem com gente assim? Mas… as pessoas vinham para a loja por minha causa. Eu me tornei o mestre colorista que os concorrentes queriam contratar. Frederick não poderia me demitir… E não demitiu. Ele disse depois que tinha medo de que eu fosse contar para outra pessoa o que tinha acontecido.
— E você contou?
— Quem acreditaria em mim? — Theo se ergueu do sofá. — E por que eu contaria? Esse púrpura era problema meu. Ele que se virasse com o que era dele para carregar.
Parecia que o mundo do lado de fora havia sido consumido em um incêndio: não se ouvia nem mesmo um pio dos pássaros na janela. Ela seguiu apertando as mãos do colorista, sentindo como o pulso aos poucos se alterava, como aos poucos ele se moldava ao calor que vinha dela, como procurava também por um abrigo, por uma absolvição.
— Nenhum outro homem ocupou o lugar dele no meu coração, mas muitas garotas ocuparam o vale que ele cavou dentro de mim — Theo deu uma risada triste —, todas arrancando os espinhos, sem encontrar nada para levar. E o tempo… o tempo se encarregou de destruir tudo. Eu o perdi também. Do mesmo jeito que perdi todos os outros. — Um instante de silêncio. — Não sei dizer o que houve. Não sei se quero saber o que houve. Uma carta que ele escreveu para um outro, o escândalo foi todo abafado. Ele bem que tentou falar, eu é que não quis ouvir. Só sei que… quando disseram que ele tinha morrido, meu mundo acabou ali, e tive que fingir que ainda estava em pé. E quando abriram o testamento e descobriram que ele me declarou o dono da loja… Ninguém ficou mais surpreso do que eu.
Prosérpina deixou que ele permanecesse ali, sentado ao lado dela, em silêncio. Há quantos anos aqueles segredos estavam apodrecendo dentro dele? Cercado de gente para todos os lados, cheio de visitantes em seu apartamento, e sem poder tocar ninguém, sem poder falar com ninguém, sem poder compartilhar nem alegrias nem tristezas. Quem iria acreditar nele? Quem seria capaz de compreender?
E ele, apesar de tudo o que tinha dito e feito, apesar de se expor, ainda não conseguia confiar nela. Ele faria o impossível para cuidar dela, para garantir que sobrevivesse, mas não conseguia mais olhá-la nos olhos. Quando ele se ergueu, ao ouvir o som dos passos de Pasha do lado de fora da sala, era com o mesmo peso de antes, quando ele saía da cama e arrastava os pés para a copa do apartamento esquentar água para o chá: ele precisava ficar vivo porque tinha gente dependendo dele; não conseguia mais se erguer somente por si.
— Theo, é melhor você vir comigo… Prosérpina, esconda-se em algum quadro. — Pasha estava pálido de medo. — Porque vai ser complicado vocês acreditarem quem está aí na sala…
Continua…
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CRÉDITOS
Autora: Anna Martino Edição: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves Preparação: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves Revisão: Lavínia Rocha Diagramação: Val Alves Título tipografado: Samia Harumi
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