Aviso: Esta obra menciona relacionamentos tóxicos, machismo e abuso de poder.
Era Eliza, em seu vestido tantas vezes refeito e tingido, segurando entre as mãos o chapéu de palha enfeitado com flores de seda de um vermelho tão artificial que chegava a doer na vista. Ela estava acompanhada de uma senhora gordinha em um vestido preto de luto gasto e amassado, o rosto enrugado pela velhice precoce que a pobreza e o frio causavam nas pessoas. Gwen, boa anfitriã que aprendera a ser, servia chá para as duas visitantes quando Pasha fez com que Theo entrasse no cômodo. Não dava para imaginar contraste maior entre a curandeira em verde esmeralda e rendas brancas nos punhos e as duas mulheres à sua frente, admirando a porcelana e o papel de parede com ares ao mesmo tempo invejosos e assustados.
— Senhora Silver? — Theo arregalou os olhos. Mary Silver, a mãe de Eliza, a mulher que literalmente o recolhera da sarjeta quando foi expulso da casa dos tios. A última pessoa que esperava encontrar ali. — Aconteceu alguma coisa?
— Passarinho me contou que vocês andaram tendo uns entreveros por aí… — A voz da mãe de Eliza era rouca, marcada pela exaustão. Ela estava preocupada com Theo, mas também não iria esconder o fato de que estava ali contra sua vontade. — Você até que escapou, pelo visto… Me disseram que o seu braço direito quase morreu.
— Samir apanhou feio, sim, e levaram bastante coisa da loja, mas como a senhora ficou sabendo? E como vocês sabiam que eu estava aqui?
— Anda, mãe, desembucha logo — Eliza bufou, espremendo o chapéu como se quisesse esganar alguém —, eles precisam saber o que aconteceu duma vez, senão vão ficar correndo atrás do rabo e ninguém resolve nada! — A jovem olhou para Theo, séria como ele nunca vira. Fosse lá o que tivesse acontecido, tinha transformado Eliza em uma adulta. — Você disse que ia dar um jeito naquele milico, e eu acreditei. Aí contei pra minha mãe e ela quase saiu do corpo. Depois, Rossetti veio me dizer que arrebentaram a sua loja e eu…
— Sempre aquele carcamano católico! — Mary resmungou.
— Ele não é católico! E não é carcamano! Anda, fala logo pro Theo, ou falo eu! — A senhora Silver virou o rosto, emburrada. Theo teria rido de como elas se pareciam, se não estivesse tão varado de preocupação, tão vazio depois daquela conversa com Prosérpina.
— O senhor Horrel é irmão da Eliza — Mary cuspiu a frase. — Os dois têm o mesmo pai. Pronto.
Cabelo castanho, Theo pensou: como pelo de ratazana, como segredo dentro de baú, como os cabelos de Eliza e as suíças imensas de Emmanuel. Era o mesmo tom, a mesma espessura. Ela sempre dissera que o pai dela morava em um castelo no Pall Mall. Uma mansão podia ser um castelo para uma criança — qualquer coisa é um castelo para quem morava num quarto do tamanho de um armário na área mais pobre da capital. Se Theo fechasse os olhos, poderia sentir aquele lugar: o cômodo com aquele papel de parede verde encardido com estampa de florzinhas cobertas de poeira e fuligem, eternamente cheirando a sabão carbólico, fumaça do braseiro e suor. O cheiro que ele, Theo, carregava consigo mesmo depois de ter mudado de vida, de ter dinheiro para sabão decente e quartos mais arejados.
Não era à toa que Eliza e Mary olhavam para a sala dos Doyle como se fosse o paraíso.
— Como vocês se conheceram? A senhora e lorde Farrington, quero dizer.
— Faz muito tempo, querido. Quando eu ainda era jovem e bonita. E quando ele era jovem e feio. — Mary deu uma risadinha. — Há mais de trinta anos. Imagine, Napoleão tinha sido mandado para o exílio e houve um grande troço lá em Viena…
— O encontro do czar da Rússia e do imperador Francisco da Áustria — Theo interrompeu com leveza. O mesmo evento para onde o quadro de Prosérpina deveria ter ido, e onde os pais de Pasha tinham concebido aquele que se tornara seu melhor amigo.
— Sim, sim, eles dois e toda sorte de cabeça coroada que havia no mundo. Uma oportunidade única! Eu era novinha, na época, parti com mais umas outras em uma aventura atrás de dinheiro. Nunca nem tinha saído da cidade e de repente lá estava eu, em Viena! Foi uma porcaria de viagem, viu? Todo mundo ficou doente, vomitando pra fora do barco… E o caos na cidade! Tinha gente de tudo que era canto. Que sujeirada. Comida cara, tudo caro. Todo mundo querendo um pedaço do bolo, vamos dizer assim, deu nisso.
— E você encontrou Lorde Farrington nesse caos.
— Pois é. Na época, um sujeitinho cheio de marca de bexiga na cara. Nem lorde ele era. Gregoire Courtemanche de Farrington, ele disse. Depois é que virou Gregory, Lorde Farrington, o homem que você conhece. O nome era maior do que ele! Não sei quem na família dele era de família nobre não sei de onde, mas também não estava montado no luxo. Um lambe-botas que falava francês e que me pagou com o dinheiro do soldo.
— Bem, Eliza tem só vinte e um anos… Como…?
— Isso é mais difícil de explicar. A coisa durou muito lá, mas eu fiquei cansada de bagunça. Voltei para cá e fui tocar minha vida: casei, enviuvei, casei de novo, o filho da puta foi preso… Deus o tenha… E aí, imagine você, recebo uma mensagem do famoso Gregoire! Imagine! Quinze anos depois! — Mary riu um pouco, as rugas em seu rosto se esticando por um momento. — Agora ele era lorde e tinha uma casa bonita. Caindo aos pedaços, mas bonita, tem que dar o crédito. Juro que não entendi por que ele quis me mostrar tudo isso. Sempre fui profissional, nunca confundi as coisas. E ele também não era nenhum apaixonado, não sou nem besta de acreditar nisso.
— Bem, Eliza está aqui. Então…
— Ela foi uma grata surpresa. Eu não era nenhuma jovenzinha quando ela nasceu. E… bem, você viveu lá na casa comigo, menino. Você sabe como funciona o serviço. Faz um mal danado pra gente, esses troços pra não ficar bichada ou embuchada. Eu tinha achado que era meu destino não ter filho. E dei graças a Deus, pra ser honesta. Mas, enfim, pra resumir, avisei que tinha dado à luz e que era uma menina. E ele disse “que pena”. Ele nunca mandou nem um pence. E como não esperava dele nem um pence, ficou por isso mesmo.
— Até que Emmanuel começou a seguir a sua filha — Pasha foi delicado ao interromper.
— Pro senhor ver… Ela me disse que tinha alguém na cola dela, e eu achei que era outro desses moleques tontos que nunca viram mulher pelada na vida e se dizem artistas… Até que me apareceu o garoto na frente. Um gaguinho em um casaco vermelho, igualzinho ao papai! Parecia até gêmeo! Ele veio me conhecer, disse. O pai dele está ficando tantã, ele disse, e andou deixando escapar umas coisas que precisava confirmar. Como, por exemplo, se é verdade que a gente se conheceu em Viena e que eu tive uma filha dele.
— E a senhora confirmou?
— Claro, ué. Não é segredo. Eu, pelo menos, nunca fiz segredo. Nunca falei pra Eliza porque, né, pra que ia dar esperança pra ela? — Mary apontou o polegar para a filha com ar desgostoso. — Do jeito que ela é, era capaz de querer enfiar na cabeça de querer um dote ou coisa parecida. Ia tomar dois fervendo no meio da testa que era pra deixar de ser besta, então tentei evitar o constrangimento o quanto deu…
— Meu pai é um lorde, e você nunca me disse nada — Eliza resmungou. — Eu sabia que tinha ouvido certo daquela vez, quando eu era pequena, e você me disse que eu estava maluca!
— Se você fosse um homem, ele te comprava uma comissão no exército que nem fez pro moleque lá. Mas dar nome? Dar dote? Pruma filha de rameira? Esquece, menina! Ele não te assumiu antes, ia assumir agora pra quê? Pra passar vergonha? Eu disse pro moleque lá, o senhor pode ficar sossegado. Aqui não tem concorrência pra sua herança. Quando seu secretário veio atrás de mim, Theo, achei bem estranho… Que é que você estava metido com essa história toda? A Eliza te falou alguma coisa? Aí que eu descobri que o “milico” da Eliza era o Emmanuel. E que o seu galho era com o pai do moleque…!
Theo assentiu, a mente voltada para outros pontos do grande quadro. Então Emmanuel sabia sobre Eliza. Provavelmente poderia prometer dinheiro para ela, como tinha prometido a Rossetti: somos filhos do mesmo crápula. Quando ele morrer, nós dois podemos herdar algum dinheiro, se você me ajudar.
Não, aquela combinação de cores não estava funcionando na tela. Ele fechou os olhos e se concentrou nos tons que formavam o corpo de Emmanuel: vermelho do casaco militar, castanho dos cabelos paternos e dos olhos que, Theo imaginava, o rapaz recebera de sua mãe, mais o azul que o colorista associava à tristeza e o verde de podridão, verde de desejo frustrado, embolorando dentro do corpo.
Se ele era como o pai, então algo estava fervendo dentro dele. Aquele bolor iria escurecer, virar pólvora e explodir. Farrington fez questão de encontrar uma prostituta que o servira quinze anos antes para exibir a riqueza que tinha herdado… O que Emmanuel seria capaz de fazer para demonstrar para si mesmo que tinha algum poder?
Ele iria atrás da única coisa com a qual seu pai se importava. A única coisa que Farrington defendia a ponto de trancar em uma sala secreta.
Continua…
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CRÉDITOS
Autora: Anna Martino Edição: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves Preparação: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves Revisão: Lavínia Rocha Diagramação: Val Alves Título tipografado: Samia Harumi
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