Aviso: Esta obra menciona relacionamentos tóxicos, machismo e abuso de poder.
No fim, Dante Gabriel Rossetti foi útil para alguma coisa: bastou Theo mencionar que gostaria de conversar em particular com o novo mecenas sobre os planos para a exposição dos Pré-rafaelitas para descobrir onde Emmanuel se escondia. Não era um hotel chique ou um endereço na parte mais esnobe da cidade: o senhor Horrel morava em um apartamento muito parecido com o de Theo, próximo da estação de trem de Euston. O típico endereço de quem estava de passagem pela cidade: um quarto de dormir e uma casa de banhos, uma pequena sala para receber eventuais visitas. Nada de cozinha própria, nada de confortos domésticos. Aquele lugar era pago com soldo de soldado, era um milagre que fosse um local minimamente limpo.
Samir e Pasha quiseram vir junto, mas o colorista recusou a ajuda. Samir mal conseguia abrir um dos olhos, e tinha escoriações o suficiente para o resto do ano; Pasha precisava proteger Prosérpina e Eliza — e só o charme mágico do filho das fadas conseguiria achar uma desculpa para evitar que Eliza soubesse da verdade.
No fundo, Theo queria ir sozinho porque precisava enfrentar aquele fantasma pessoalmente. Ele vira o horror nos olhos de Prosérpina — podia ser um resquício de orgulho idiota de sua parte, uma maneira de se estabelecer de vez como o objeto de admiração da criatura mágica que tanto amava. Que fosse isso, então, ele admitia o sentimento e a inutilidade dele no cenário — mas precisava enfrentá-lo sem ajuda.
Emmanuel não tinha motivo para matá-lo. Afinal, quem sabia onde estava a modelo do quadro era ele, e se morresse, quem contaria o segredo?
Sentado diante da lareira, um homem muito alto em um terno preto esperava pelo visitante. Um homem que até se parecia com Emmanuel Horrel, não fossem os ferimentos de briga no rosto e no pescoço. Apesar de seu porte de Golias, parecia mais do que nunca um moleque assustado, e não com um capitão do exército ou um mecenas das artes.
— Soube que você foi assaltado — Emmanuel se dirigiu a Theo, mais gago do que nunca.
— Claro que você soube. Eliza lhe contou, não foi? Eliza, sua meia-irmã?
— Então você descobriu. — A frase veio com um suspiro de derrota. Que ninguém esperasse uma declaração mais formal sobre o assunto.
— Não importa no momento. Quando você se arranjou esse monte de machucados?
— Ontem. Os homens do lorde vieram em cima de mim.
— Foi por causa do quadro?
— O quadro! O maldito quadro! Ele me acusou de ter roubado a tela e deixado aquela imitação barata sem a menina, só o cenário. Disse que não tinha nada que ver com isso, mas os cachorros de caça daquele velhaco vieram pra cima de mim do mesmo jeito.
— Também achei que você tivesse levado a tela embora da loja.
— Bem que imaginei. Odeio aquela pintura, mas daí a assaltar uma loja por ela? Não sou idiota. Não tanto assim. — Emmanuel trincou os dentes. — Aquela pestinha foi correndo atrás de você, então. Como sempre! Ela adora você, não sei se sabe. Fala de boca cheia como você é rico e generoso, como é mais nobre do que todos os príncipes do mundo… Rossetti tem muita inveja de você por causa disso.
— Rossetti tem inveja de mim? Conta outra!
— Mas é verdade. Ele queria ser você. As pessoas se reúnem ao seu redor, todos o conhecem… E aquela pestinha te adora. Ele não suporta concorrência.
— Isso é assunto para outro dia. Por que não me conta outra história? Como um capitão do exército pretende financiar uma exposição de jovens pintores, por exemplo?
— Não pretendo financiar nada. Com que dinheiro? Mal me sustento com o meu soldo! — Dava para perceber que um dente da frente tinha trincado com os golpes que Emmanuel tinha levado. — Sou amigo do irmão do Gabriel. William Michael, o nome dele. Um ótimo sujeito. Ele trabalha para o governo, nós frequentamos os mesmos locais… O irmão dele às vezes cola para pedir dinheiro. E uma noite, Gabriel me mostrou desenhos de um “anjo” que tinha conhecido.
— Prosérpina.
— Perséfone — Emmanuel corrigiu.
— As duas são a mesma coisa, e isso não importa agora. Você viu os desenhos e então o quê?
— Então decidi descobrir como ele conseguiu vê-la! Porque meu pai nunca mostraria aquele quadro amaldiçoado para um sujeito como Rossetti. Ele não faz quadros que possam interessar para o harém. Nenhum daqueles tais moleques pré-rafaelitas faz. Rossetti garantiu que não era uma pintura, era uma mulher, mas eu reconheci o quadro na hora.
— E o que Eliza tem a ver com isso tudo?
— Quando Rossetti me contou sobre você, comecei a te seguir. Se você teve acesso ao quadro a ponto de mostrá-lo para aquele moleque… O que você tinha de especial? E quando vi Eliza saindo de seu apartamento repetidas vezes, o meu raciocínio foi bem direto. Vocês eram amantes… E se você viu Perséfone, então meu pai tinha planos para vocês dois. — Ele franziu a testa como se tivesse mordido algo amargo. — Achei que fosse um truque da mãe dela em conluio com o meu pai… Deus, aquela mulher! Pior do que a minha mãe! Aquela bruaca seria capaz de vender a filha se achasse comprador rico o suficiente… Você não é rico, mas se emprenhasse aquela lá, e desse um herdeiro pra ele…
O soco que Theo deu acertou o nariz de Emmanuel de tal jeito que o militar quase caiu da cadeira. O colorista não se afastou: se aquele sujeito queria briga, teria briga, mas não iria ofender Mary Silver na frente dele. Não a mulher que lhe dera um abrigo, não mesmo. Emmanuel, porém, não reagiu. Ao contrário: pareceu encolher ainda mais dentro de si mesmo. Algumas pessoas tinham queixo de vidro; pelo visto, Horrel tinha nariz de vidro.
— Agora que estabelecemos alguns fatos… — Theo puxou uma cadeira e sentou-se em frente ao militar, pronto para sair no soco de novo se necessário fosse. — Vamos ao que interessa. Você estava me seguindo, no fim das contas. Quando Samir veio atrás de você, o que você achou que era?
— Seu secretário disse que a honra de uma mulher estava em jogo e mencionou o nome de lorde Farrington. Claro que fiquei curioso. Não era de Eliza que aquele sujeito estava falando, era?
— Não, não se trata de Eliza — o colorista respondeu, por fim. — Eu tenho uma outra curiosidade, Emmanuel, e só você pode responder. Seu pai tem outras pinturas desse artista que criou a Prosé… a Perséfone?
— Sim! Pelo menos uns cinco quadros, todos pendurados no harém. Por que a pergunta?
— Porque eu acho que a resposta para a minha pergunta e a sua pergunta estão dentro desses quadros. Não, eu não vou te explicar o motivo. Você vai me dizer como consegue entrar na residência do seu pai quando ele não está em casa… E você vai me levar para ver esses quadros.
— E por que eu faria isso?
— Porque você quer uma resposta e eu também. Por que seu pai precisou invadir uma loja para recuperar uma pintura que era dele? Ele só precisava ter pedido o quadro de volta.
— O corno realmente acha que eu tenho alguma coisa a ver com isso? Ele ficou maluco?!
— Não, ele só está fazendo conjecturas. Assim como você inventou esse cenário todo com a Eliza e o Rossetti e eu dentro da sua cabeça. Vocês se parecem. — Emmanuel fez uma careta de nojo. — Que quer que eu diga? É verdade. Ele só tem um inimigo, e foi atrás dele. Eu nem apareço no mapa! — Mas é minha vida que termina se vocês dois se incendiarem, Theo pensou com os olhos na lareira quase sem fogo. É minha vida e a vida de Prosérpina que vocês vão destruir com esse ódio. — Então, você tem duas escolhas. Ou dá um jeito de abrir as portas da mansão ou eu minto para o lorde e digo que você está por trás de tudo.
— Você não tem coragem!
— Não tenho nada a perder, você quis dizer. E aí? O que vai ser?
***
Duas horas depois, Theo descobriu que, quando Emmanuel disse que o pai tinha um harém em casa, não era força de expressão. Cada centímetro do longo corredor que conectava as salas da casa em Pall Mall era decorado com pinturas a óleo com temáticas greco-romanas ou então em cenários orientais, uma excelente desculpa para exibir mulheres praticamente nuas sem ser condenado por isso.
A casa em si, fora as pinturas fulgurantes, era um horror: teias de aranha no teto mofado, o cheiro de óleo rançoso vindo das lamparinas que há muito não eram lavadas decentemente. O local tinha sido construído há pelo menos um século, se as análises de Pasha a respeito da estrutura e da decoração estavam corretas — e, pelo visto, não fora reformado desde então.
— Com todo o respeito, mas que pocilga, hein? — Pasha olhou para Theo e para o capitão, e para o rastro que seus passos faziam nos tapetes com uma grossa camada de poeira. — Seu pai não tem serviçais?
— Só a cozinheira e um mordomo. Os dois já trabalhavam aqui quando ele herdou o título. De resto, todo mundo foi mandado embora ou fugiu com o passar dos anos. As mulheres, principalmente… — Emmanuel abriu uma porta — Aqui estão os outros quadros…
Mais mulheres seminuas e algumas até mesmo vestidas, em uma sala com papel de parede verde-musgo. Tudo tinha pelo menos um dedo de poeira; as molduras das telas estavam quase todas carcomidas. Os quadros mais bem-conservados ficavam na parede oposta à porta, e mal ele pousou os olhos neles, Theo conseguiu reconhecer os pigmentos mais vivos na tela, parecidos com aqueles que tinha visto na de Prosérpina. Aquilo que tinha achado que era magia, mas que era apenas talento.
Os retratos eram ligeiramente parecidos com o estilo do quadro mágico: moças em vestidos de brocado e pérolas nos cabelos castanhos muito claros, olhos límpidos e sorrisos tímidos. Aqui e ali, dava para notar semelhanças entre as mulheres retratadas com liras ou com rocas de fiar — como se todas tivessem sido modeladas em uma mesma pessoa. Ele se aproximou para ver a assinatura em uma das telas: Corentin Durant.
— Me deixem sozinho aqui um instante — o colorista se voltou para os dois homens atrás de si —, preciso verificar uma coisa.
— Seja o que for, que seja rápido — Emmanuel disse, afastando-se —, porque eu não sei a que horas o dono da casa volta. E não quero ser flagrado aqui!
Theo olhou para Pasha, apontando a porta, e o filhote de fada sorriu de volta. Tão logo ele e Emmanuel saíram, o colorista escutou o som de algo sendo sugado para fora — a magia selava a porta, impedindo que as conversas pudessem ser ouvidas.
Era bom aquele truque dar certo, Theo pensou antes de puxar o camafeu do bolso do colete.
De dentro da joia, Prosérpina saltou em uma nuvem de fumaça, de azul da cabeça aos pés. Plantou-se diante dos novos quadros, olhando para as moças tão parecidas com ela sem grande surpresa.
— Não gaste seu tempo, elas não se mexem. — Prosérpina suspirou. O chiado em seu peito tinha aumentado, assim como a palidez do rosto.
— Imaginei que não. Mas são do mesmo artista, não é? Preciso que você me faça um favor. Às vezes, os pintores colocam o nome do quadro nas costas da tela. Você pode verificar se ele fez isso com esses desenhos? Tem uma peça nesse jogo que está faltando… Deus queira que esteja aí!
Prosérpina não entendeu o que Theo quis dizer, mas também achou melhor não pedir esclarecimentos: ela saltou dentro da primeira pintura na fila e começou a recitar os nomes que eventualmente encontrava nos fundos das telas — títulos tão anódinos quanto a renca de personagens femininas estereotipadas estampadas nos quadros. A esperança do colorista estava quase acabando quando o último quadro enfim apareceu com um nome diferente: Retrato de Giselle Courtemanche.
Pasha certamente seria capaz de analisar a idade precisa daquele pequeno retrato feito com carvão em um papel cartonado — mas estava claro para Theo que ali, diante dele, estava o catalisador de toda aquela confusão — o primeiro desenho que Corentin Durant fez de sua musa, da mulher que causaria sua morte.
E sua musa não era nenhuma nobre. O retrato mostrava uma mulher diante de um poço — não uma pose artificial, como as fiandeiras e pastoras dos outros retratos, mas algo tirado da realidade. Prosérpina, retratada em brocados caros e pérolas no cabelo, tinha calos nos dedos delicados por causa daquela mulher arqueando o corpo pequeno para tirar água de um tanque com um balde pesado.
— Você parece ter encontrado o que queria. — Prosérpina tinha perdido o laço de seus cabelos em uma das telas e transpirava com o esforço de navegar por entre os quadros.
— Achar, eu achei, mas não consigo encaixar as peças. Mary Silver me disse que Farrington se apresentou a ela como Gregoire Courtemanche de Farrington. Essa modelo — ele apontou o retrato em carvão — é Courtemanche também. Não deveria ser Farrington? Se ele é filho do marido assassino, não deveria ser Farrington?
— Talvez esse retrato seja de antes do casamento. — Prosérpina tentava respirar fundo e não conseguia. — Ou talvez… Você não me disse que o sujeito herdou o título do tio? Talvez aquele olho-de-sapo não fosse de fato um Farrington. Talvez fosse só Courtemanche antes. Talvez…
Um ruído imenso quase derrubou a porta. Prosérpina se assustou e fez a coisa mais insólita possível, uma reação impensada e automática. Agarrou a mão do colorista e pulou para dentro da primeira tela que viu na frente.
***
[Continua na Parte 2]
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