Sem nenhuma opção mais eficiente, saí daquele espaço entre prédios e comecei a caminhar entre as pessoas. As expressões em seus rostos provavelmente eram causadas pelo cheiro nauseante que carregava agora, que escolha tinha? Não havia qualquer lago por perto, nem mesmo a sensação de um, o ar abafado deste lugar demonstrava com precisão que a água estava a quilômetros longe daqui.
Estiquei os braços sentindo as dores por dormir em um lugar tão duro se juntarem ao cansaço de andar tanto, certamente havia atravessado a cidade e ainda não havia encontrado qualquer sinal das garotas.
As ruas se alargaram e lembravam um centro comercial, a quantidade de pessoas também aumentou e elas entravam e saiam dos lugares freneticamente. “Como poderia haver tantos deles em um só lugar? Realmente são uma praga”.
Vi um grupo de garotos andando, rindo e comendo lanches parecidos com os de ontem, minha barriga roncou quase no mesmo instante, não havia comido nada desde aquela hora e mal havia dado duas mordidas no pão antes de ter que sair correndo graças a arte da guerra de Elizabeth, “Porra Liz…”.
Não poderia cometer o mesmo erro de Liz e roubar algo para comer, certamente acabaria me envolvendo em outra perseguição tão frenética quanto a última, eles provavelmente estavam nos procurando ainda, em alguns dias cartazes e mais cartazes vão estar espalhados por aí com nossos retratos falados, e as coisas podem se tornar ainda mais problemáticas se a Igreja se envolver, sou muito nova para ser posta na fogueira!
Me aproximei de uma loja, podia sentir um cheiro diferente e quentinho vindo dela, provavelmente mais uma das novidades desse lugar. Eles possuíam um enorme painel de vidro como porta e por alguns instantes fiquei a observando tentando entender como abri-la. Um homem que estava saindo a segurou aberta como se me oferecendo passagem, entrei e ele a soltou permitindo-a lentamente fechar, fiquei surpresa por alguns deles conhecerem um mínimo de etiqueta. Ainda sabendo que não tinha nenhuma moeda humana comigo e provavelmente acabaria apenas com mais fome por observar aquelas maravilhas, estava curiosa demais para saber a origem do odor. Fui me aproximando timidamente do balcão e três moças estavam atendendo os clientes com um ritmo assustador, escutavam os pedidos, anotavam em papéis, recebiam papéis coloridos e devolviam outros, os clientes então se moviam para outra fila, pegavam um copo branco estranho e iam embora, apenas ver aquilo já estava me deixando mais cansada. Eu…
— Garota! — Uma voz masculina bradou em minha direção — cai fora e leve sua imundice com você, anda. Sua gente não é bem vinda aqui!
— Minha gente?... — Atônita tentei processar suas palavras. Como ele sabia que eu era uma bruxa?
— Saia antes que eu chame a policia para te tirar daqui!
Arregalei os olhos. Polícia? Não me parece estranha essa palavra… Aqueles caras de uniforme… Ele ia chamá-los para mim apenas por causa do meu cheiro? Pelo menos parece que ainda não percebeu que sou uma bruxa.
— Sai, sai, anda!
Sendo enxotada do lugar, passei rápido pela porta que ele abriu com medo de que ele começasse a me agredir e acabassemos começando uma briga.
Quando ele deu as costas me sentei em uma mesa num canto escondido do lado de fora, corria o risco de mais alguém como ele voltasse para me perturbar, mas estava cansada demais para continuar andando agora. Deitei minha cabeça em meus braços na mesa e observei o movimento das estradas, tudo parecia sem esperanças agora.
Repassando os problemas na minha mente me permiti viajar um pouco ouvindo roncos, vozes e risos vindo de várias direções. Uma cidade feia com lugares lindos, pessoas educadas e pessoas agressivas, barulhos ensurdecedores por todos os lados, estava começando a duvidar se este lugar em que acabamos parando era realmente um pedaço de terra no mundo em que vivíamos. Poderíamos ter sido transportadas para outro mundo? Ou será que fui nocauteada por alguma criatura e estou delirando em sonhos neste momento? Meus pensamentos foram interrompidos com um som baixo muito perto de mim, levantei a cabeça assustada e meus olhos se encontraram com os de um humano.
— Tá tudo bem?
Ele disse naturalmente, sua mão estava estendida sobre a mesa segurando um copo em minha direção como se me oferecesse, em sua outra mão repousava outro copo. Ainda com os braços cruzados sobre a mesa não pude deixar de ficar completamente confusa. Ele tinha uma expressão diferente, serena, seu volumoso cabelo encaracolado esticava levemente como uma mola pela brisa que passava rumo a oeste.
— Pode pegar — disse sobre o copo — você parecia cansada, isso deve te animar um pouco.
Olhei para a porta procurando o idiota que me expulsou da loja.
— Não liga praquele cara, esse tipinho tem em todo lugar infelizmente, sei como é ser tratado como se não fosse humano, é exaustivo — ele mostrou um sorriso sem graça, levemente carregado de dor.
— Não sou humana — cobri minha boca logo após deixar isso escapar.
Ele riu, talvez tenha levado isso como piada… Eu não posso ser honesta aqui ou vou acabar em uma estaca…
— Você parece bem humana pra mim. Um pouco de sujeira não te faz um animal — ele tomou um gole do copo que estava mais próximo dele — tá bem bom, pega logo antes que esfrie, espero ter escolhido algo que goste.
Ele havia soltado o copo que me ofereceu e deixou bem perto de mim. Levantei meu corpo e fiquei observando, tentando entender como se bebia aquilo até que encontrei um buraco na tampa. Aproximei meu nariz e senti o aroma, era parecido com o que vinha de dentro da loja, porém com um toque adocicado.
— Você gosta de capuccino, né? — Ele continuava fazendo perguntas que não eram respondidas — não coloquei nada no seu copo, pode tomar sem medo.
Enquanto o encarava buscando qualquer traço de mentira em seus olhos, agarrei o copo com as duas mãos e o aproximei dos lábios, o vapor quente começou a me fazer desejar beber isso mesmo que me matasse, minha fome implorava por isso. Virei um gole e tomei, afastei o copo bruscamente, cuspi o líquido no chão e coloquei as mãos na boca sentindo minha língua queimar.
— Esqueci de avisar que estava quente, foi mal… — Ele soltou outro de seus sorrisos sem graça.
— O-o erro foi meu…
Mais preparada, assoprei pelo buraco na tampa antes de beber novamente. Agora pude sentir o forte e doce sabor do "cappuccino", as bebidas deste lugar eram fascinantes, primeiro um suco que borbulhava na boca, agora uma água marrom doce e intensa. Bebi outro gole.
— Ah, que bom que gostou, estava realmente preocupado que tivesse escolhido algo ruim. Bem, não dá pra errar com cappuccino — ele aparentava tentar puxar assunto comigo, mas não acho que deveria, já era ruim o bastante ter aceitado algo dele — Como se chama?
— …
— É, acho que tem razão, não deveria contar seu nome para estranhos — ele tomou outro gole — me chamo Isaac — ele contou seu nome mesmo assim? — A privacidade é uma ilusão mesmo. Bem-vinda a 2022.
2022?! Ele ficou confuso quando viu minha expressão assombrada. “Como assim 2022?! Ele está maluco, não é?! Definitivamente é impossível que seja…”, desta vez eu expressei um sorriso sem graça. Minha mente se recusava a aceitar isso e definitivamente não havia lógica em suas palavras.
— Não é 2022 — afirmei completamente segura.
— É 2022, com certeza 2022.
— Não, não é.
— Você é uma negacionista como aqueles pirados da terra plana?
— Do que diabos você está falando? Definitivamente não é 2022 e a Terra é plana.
— … — Ele pareceu processar suas palavras — Está brincando comigo? Claro que está…
Apenas o encarei com toda seriedade possível.
— Vocês acham que a Terra não é plana?
— Já foi provado, poxa!
— Provado o quê?
Ele puxou um retângulo brilhante, uma luz era emitida em seu rosto e seus dedos tatearam-no rapidamente.
— O que está fazendo?
Ele virou o retângulo para mim, ele emitia luzes coloridas formando uma imagem nítida.
— Uma esfera! A Terra é uma esfera! — Com um dos dedos ele mexeu no retângulo e a imagem suavemente mudou, aquilo me assustou completamente e acho que ele percebeu, mas ignorou — E estamos em 2022, vê? 2022.
— Está tentando me confundir com seus aparelhos malucos de humano? — Perguntei sem graça. Ele negou com um movimento de cabeça — Estamos mesmo em 2022? — Não conseguia acreditar facilmente na palavra de um humano — Certeza?
— Absoluta.
— Isso explica todo esse caos…
Terminei o “cappuccino” e me levantei, nossa conversa estava tomando um rumo muito bizarro e não desejava estender meu contato com humanos, quanto mais longe dessas pestes melhor, apesar que ele me pagou um cappuccino… Não, definitivamente tenho que ir. Levemente me curvei e emiti um “obrigada pelo capuxino”.
Ele me olhou torto e se levantou também. Pegou o meu copo e o jogou em um objeto cilíndrico junto ao dele.
— É cappuccino, na verdade — me corrigiu, degustei a palavra com os lábios.
Me virei para ir embora e ele começou a me acompanhar. Não precisava que ele me distraísse ainda mais, então interrompi meus passos e o questionei:
— O que está fazendo?
— Pensei que ainda estivessemos conversando.
— Não estamos.
— Uhm… Você pareceu preocupada com algo, o que é?
— Não é do seu interesse, humano.
— Talvez… — Ele processou minhas palavras — Por que fica me chamando de “humano”? Você também é, espero.
— I-i-isso… Sou uma humana também… — Expressei um sorriso que definitivamente não apoiava minha mentira.
— Poderia ser que está usando um cosplay? Suas roupas são um pouco incomuns, parece que saiu de um anime — riu.
— Você está inventando palavras para me confundir.
Ele riu de novo?
— Vamos lá, pode me falar, prometo não rir de você.
O que há para rir? Tudo que tenho é apenas lamentos por ter aceitado o “cappuccino” dessa criatura insistente.
— Preciso encontrar minhas amigas, se me der a sua licença, estou indo.
Me virei e voltei a caminhar rumo ao norte, certamente as aulas de caça e sobrevivência se põem úteis em certos momentos, então facilmente sabia as direções.
— Talvez… Eu possa te ajudar nisso.
— Não acho que será útil, apenas a bebida foi suficiente, agradeço mais uma vez.
— Toda essa formalidade é desnecessária, senhorita.
— Informalidades são proíbidas com desconhecidos, nós bruxas somos rígidas com isso.
Interrompi meus passos novamente e cobri minha boca com ambas as mãos. Outra vez, eu cometi esse erro bobo, dessa vez eu definitivamente vou ser posta para queimar até a morte na fogueira… Fugir? Devo fugir imediatamente! Tirei meus olhos atônitos dele e me preparei para correr. Ao perceber ele se pôs a minha frente barrando minha passagem.
— Ei ei, tá tudo bem, se você pensa que é uma bruxa, então uma bruxa você é.
Me coloquei pronta para lutar.
— Você não vai me levar.
— Não vou mesmo, não esquenta. Não vou te caçar até a morte — riu — pararam com isso a alguns séculos atrás. E eu sou judeu, então… — Ele deu de ombros — Mas vai ter que me mostrar alguma coisa pra eu acreditar totalmente em você.
— Não tenho que te provar nada — desviei dele e voltei a andar — Humano.
— Onde você viu suas amigas pela última vez? Talvez elas tenham voltado para lá se querem ser encontradas — ele tentou mudar de assunto.
Suspirei sem esperanças de me livrar dele.
— Sua polícia estava nos perseguindo, por isso nos separamos, e por isso estão escondidas.
— Vocês mataram alguém? Roubaram? Violaram?
— Uns lanches…
Ele riu.
— Então não esquenta, coisa assim costuma ser esquecida. Tá cheio de filho da puta fazendo coisa bem pior por aí.
— Nós revidamos e fugimos.
— Ah... Então a coisa tá bem… Feia. Mas não me lembro de nada disso no jornal. Apesar que houve uma baita confusão ontem à noite em uma rua aí.
— O que é um jornal?
— Tantas coisas que você não sabe… Bem, se aceitar sair comigo prometo te ensinar muita coisa.
— Não.
— Curta e grossa, saquei — por um momento achei ter ouvido o som de algo quebrar.
— Isaac — Ele me olhou com um pouco de alegria crescente — não quero ser deselegante, mas não preciso de alguém falando na minha cabeça no momento. Sou uma bruxa e você um humano, não deveríamos estar conversando agora e muito menos andando juntos.
— Me prove que é uma bruxa então.
Suspirei e grunhi um pouco, levantei meu palmo aberto e meus anéis começaram a brilhar suavemente, sem muito esforço uma chama dourada apareceu no centro entre as pontas dos meus dedos.
— É de verdade? — Ele enfiou o dedo na chama e rapidamente o puxou de volta enfiando na boca — Do-finetivament ê di vordade…
Extingui as chamas fechando o punho e abaixando a mão.
— Meu pai pode te ajudar a achar elas, e talvez até a limpar tua barra — “barra da saia?” me perguntei — Ele manda na polícia daqui, mas é dos bons, certeza que ele vai entender.
— E o que eu faço se ele não entender?
— Pode me dar um soco na cara e dar no pé.
— Meu soco pode estourar o seu crânio.
— Beleza — ele falou com um sorriso convicto.
— Tudo bem então… Mas saiba que posso acabar gostando de te dar um soco na cara.
Ele riu. Ele foi caminhando a frente mostrando a direção.
— Você estava brincando sobre estourar meu crânio, né?
— Quem sabe — Dei de ombros.
Ele estremeceu.
Comments (0)
See all