Já era perto do anoitecer em uma floresta cercada pelo nevoeiro. Não se ouvia tanto os pássaros naquela hora do dia, apesar de que, de qualquer forma, não só eles como os demais animais não costumavam marcar presença nos arredores.
Mas como julgá-los se nem ao menos os aldeões ousavam se aventurar por aquele lugar, bem, a maioria deles, já que o medo era tamanho. Ainda sim, havia alguém que se sentia bem caminhando por lá.
Quem sou eu...?
Uma jovem se perguntava ao mesmo tempo em que andava tocando os galhos das árvores em que passava.
Por que não me lembro?
Respirava o ar puro enchendo seus pulmões.
Um enigma... Um mistério... Um segredo qual fora oculto de mim...
Ao deixar de andar, fechou seus olhos, que eram azuis e belos como o oceano, sentindo o sopro do vento levar seus lindos cabelos negros para trás.
— Parece que já vai escurecer. — Lentamente, abriu os olhos e observou o entorno daquela floresta. Se fosse outra pessoa, com certeza estaria perdida, todavia, conhecia bem a localidade, não se afastando tanto de seu lar. Não vou dizer que nunca aconteceu tal desastre, mas por algum motivo, sussurros do vento a guiavam quando preciso, não a deixando entrar em perigo.
Ao chegar em casa, bateu na porta de madeira, que apodrecia com o tempo, e esperou por alguma resposta. Sabia que estaria em apuros naquela noite, já que sua guardiã a proibia de passear pelas matas escuras. Mas o que poderia fazer? Era lá onde se sentia livre... Era lá onde sabia que podia ser ela mesma.
Fora puxada às pressas pela velha senhora, que pegou em seu pulso com aquelas mãos frias como o gelo. Estava aborrecida, como já esperado, com uma grande colher de madeira na outra mão. Após isso, fechou a porta rapidamente e voltou o olhar para a mais nova cruzando os braços e dando batidas leves com o pé sobre o chão:
— Onde estava?
A menina continuou em silêncio como costumava fazer, pensando em alguma resposta que não zangasse ainda mais sua guardiã. Não era de seu feitio mentir, contudo, não via outro caminho a não ser dizer o que a mulher queria ouvir.
— Vamos, responda! — Chamou sua atenção novamente. Odiava aquela demora mais que tudo. — Onde é que você estava?
— Estava andando pela vila, senhora Clerence... — Não conseguia encarar a outra, olhando para o chão ao mesmo tempo em que segurava o braço.
— E o que são esses carrapichos na saia do seu vestido? — Apontou a colher de pau para eles. — Que eu saiba, não deixam com que essas pragas cresçam pela vila.
— Oh! — Enfim olhou para o rosto dela. — É que... Eu precisava pensar um pouco, senhora Clerence.
— E por isso, decidiu caminhar por aquela floresta horrenda novamente? — Franzia as sobrancelhas. — E ainda por cima tentou me enganar? O que é isso, menina? Onde você pensa que vai chegar mentindo dessa forma?
— Me desculpe...
— Deveria pedir desculpa a si própria, garota ingrata. Poderia acabar morta! Violentada! Sequestrada! Escravizada! — Deu um longo suspiro ao ver que a mais nova permaneceu em silêncio, se virando e caminhando até o grande caldeirão ao mesmo tempo em que voltava a falar: — Agora vá se lavar. O jantar já está quase pronto.
— Claro, senhora Clerence.
Não me seria estranho pensar que você provavelmente deve ter tido uma primeira má impressão em relação à guardiã de Ashley, e não lhe julgo por isso, afinal, quem não teria, não é mesmo? No entanto, ainda sim não era tão má como parecia. Uma mulher de idade, com a vida cheia de experiências, sendo elas boas ou terríveis... Sabia o que dizia, além de prometer a uma velha amiga que cuidaria da pequenina há muitos anos atrás.
Mas não era apenas o gênio de Clerence que se mostrava assustador, tendo sua aparência que nada a favorecia. Poderia até ser uma velha senhora graciosa, só que era sempre emburrada, dificilmente sorrindo. Seus cabelos eram brancos, constantemente amarrados em uma longa trança que passava alguns dedos de sua cintura e uma franja curta separada no meio e levemente enrolada para dentro em suas pontas, seus olhos pratas, uma característica diferente dos demais cidadãos daquelas localidades. Tinha uma verruga negra pouco abaixo do lado esquerdo de sua boca e uma pinta ao lado do olho direito na parte inferior. Sua pele era branca como a neve, constantemente rosada por sua fragilidade. Às vezes, Ashley achava que congelaria quando Clerence tocava suas mãos frias sobre a garota.
Apesar daquele não ser seu reino natal, foi lá que passou alguns anos de sua longa vida após pisar os pés naquele mundo, todavia, se afastou por tempos para que a poeira abaixasse. Era arriscado cuidar da garota naquele lugar quando a mesma era mais jovem, afinal, com tudo recente, poderiam descobrir os segredos de sua velha amiga e acabar com todo o seu sacrifício. Só que, semanas após Ashley completar seus quinze anos, concluiu que já poderia viver em paz por lá, afinal, a adolescente não havia se adaptado a lugar algum que moraram durante todo esse tempo. Mas como se adaptaria, afinal? Seu destino fora traçado naquele lugar...
Já de madrugada, a moça continuava acordada olhando para o teto de seu quarto ao mesmo tempo em que segurava nas pontas do cobertor; que era costurado por diversos trapos de diferentes cores e texturas; sem conseguir dormir. Não era sempre que pensava em seu passado, do qual não lembrava, mas quando acontecia, sentia que ia parar em outro mundo, sem conseguir diferenciar sua imaginação da realidade.
O vento bateu contra a janela a abrindo ferozmente, o que assustou a jovem menina. Levantou-se e caminhou até lá, observando a linda lua cheia cercada por nuvens negras quais queriam ocultar sua beleza. Ao menos foi o que ela pensou.
— Que malvadas... — Suspirou se debruçando ao parapeito. — Podiam ser amigas... E brilharem juntas... Mas querem esconder ela por ser bela...
Esconderam-me por eu ser diferente.
Uma voz feminina ecoou sussurrando a tal frase atrás da porta do quarto de Ashley, o que fez um frio percorrer sua espinha conduzindo o olhar da jovem para o mesmo lugar.
— O quê? Senhora Clerence? — Nenhuma resposta, apenas o vazio do silêncio. —... Oh, céus... Acho que já deveria estar repousando... — Falou em voz baixa para si.
Assim, se dirigiu para cama para que pudesse aproveitar o pouco tempo que tinha para descansar, no entanto, barulhos vindos da cozinha não permitiram que a menina pudesse dormir. Preocupada, deixou o quarto sem fazer um ruído sequer e procurou por uma vassoura de palha para que pudesse se defender caso precisasse.
Caminhava com cuidado, já que notara a porta fechada do quarto de sua guardiã. Quando chegou à cozinha, procurou pelo causador dos sons, mas nada. Perto de desistir e voltar para cama, um animal que se escondia dentro da lareira usada para fazer os ensopados deixou escapar um choro já que prendeu sua pequena pata em um dos galhos queimados.
— Oh... — Admirou-se colocando uma mão aberta em frente à boca, então se aproximou após encostar a vassoura sobre a parede. — Então é você. — Parecia íntima do pequenino, mas nem ao menos o conhecia. — Como conseguiu entrar aqui? — Esperou por uma resposta, até que se deu conta do que a solidão fez consigo e riu de si própria. — O que estou pensando? Não podemos conversar, não é?... Bem... — Se abaixou. — Está tudo bem, amiguinho. Eu vou te ajudar.
Enquanto levantava aqueles pedaços de madeira, acabou por encostar a mão em uma alavanca fria. Não esperava aquela textura gélida, o que fez Ashley se afastar com um susto, e ao se recuperar, aproximou-se do objeto sem poder enxergá-lo de fato por causa do escuro. Ao mesmo tempo, a raposa observava a menina sentada ao seu lado. Não parecia com medo, mas sim, agradecida.
Tocou aquele instrumento estranho e o estudou por instantes, perguntando-se para o que servia. Por um momento, temeu que aquilo acendesse o fogo da lareira, já que ficava escondida pouco acima de sua abertura, no entanto, respirou fundo e a puxou mesmo assim.
De repente, um estalo pôde ser ouvido embaixo do chão, logo abrindo uma passagem para uma escada qual ia para o subterrâneo da pequena casa, lugar esse que nem mesmo sua existência passara pela cabeça da garota.
Ashley voltou a se ajoelhar de frente a lareira encarando aquela passagem escura. Suas mãos estavam trêmulas de medo, ainda desejando descobrir o que havia lá embaixo. Sentiu uma lambida áspera em seu braço e lembrou-se de que não estava sozinha.
— Ah, ainda está aqui... — Olhava para o pequeno animal que a encarava de volta. — Você... Iria comigo?
Mesmo sem falar, a raposa se levantou e olhou para a passagem secreta respondendo a pergunta da moça. Sabia que não enxergaria caso fosse de mãos vazias, então acendeu uma vela e pingou algumas gotas sobre o pequeno castiçal simples, logo o levando até as escadas. Respirou fundo e começou a descer.
Não era muito longa, tinha apenas degraus suficientes para que o subsolo fosse formado, tendo o teto poucos centímetros acima da cabeça da menina. O tal porão era formado por paredes de pedras e chão de madeira negra, já velha e quebrada, maltratada pelo tempo. Haviam estantes cheias de livros velhos, cobertos por uma camada grossa de poeira e quase inteiramente tomados por teias de aranha. Em um dos quatro cantos, encostada a parede e de frente com a escada, havia uma escrivaninha com algumas gavetas trancadas e folhas de papel manchadas pela tinta das canetas quais estavam jogadas naquela mobília. E pouco afastado, quase escondido pelas grandes estantes do lado esquerdo da escada, tinha um pequeno baú também coberto pela poeira.
— Curioso... — Olhou para o animal que parecia ter concordado. — Acho que... Talvez seja melhor sairmos daqui... A senhora Clerence não vai ficar nada feliz se souber que ainda não estou dormindo e...
Ignorando a menina, a raposa caminhou até o baú o cheirando curiosamente. Por causa do pó, acabou por espirrar diversas vezes, mas não deixou de farejar aquele objeto chegando ao ponto de arranhá-lo com suas garras afiadas tentando abri-lo de alguma maneira.
— Também queria saber o que há aí dentro, mas creio que esteja trancado... — Foi ignorada mais uma vez. — Está bem, não custa tentar.
Acabou por se aproximar do filhote e colocou o castiçal sobre o chão deixando suas mãos livres para que pudesse abrir aquela caixa. Olhando de perto, pôde ver desenhos florais esculpidos na madeira do baú, com a tinta desbotada em certos lugares. Hesitou em tocá-lo, pois sentiu um pouco de nojo daquela sujeira, todavia, a curiosidade falava mais alto logo a fazendo segurar os dois lados da tampa. Olhou novamente para o pequeno filhote, que encarava aquela coisa sem piscar, e assim, tomou coragem e abriu sem muito esforço.
— Parece que se esqueceram de trancar! — Deu uma gargalhada suave, algo que não costumava fazer, contudo, por algum motivo, se sentia à vontade ao lado do animal. Aproximou o castiçal para que pudesse ver o que tinha dentro. — Oh!
Era um pequeno livro, tendo escrito em sua capa marrom com detalhes dourados: "O Diário de Agatha", com letras jamais vistas por qualquer outra pessoa daqueles arredores, todavia, a moça podia entendê-las. Nem ao menos tinha notado suas diferenças, como se já as conhecessem há tempos.
Não eram todas as meninas naquele reino que sabiam ler, afinal, era proibido tal conhecimento entre as plebeias, no entanto, Ashley podia desde que se conhecia por gente.
Você deve estar se perguntando se tinha alguma outra coisa ali, e sim, um colar difusor de prata, qual estava emperrado, com algo que se parecia com uma pedra de opala dentro.
Não tocou os objetos logo de cara, os encarou pensando no valor que cada um tinha para estar escondido ali. De repente, ouviu passos do lado de cima, o que fez com que um frio percorresse por sua espinha a arrepiando. Sem pensar muito, pegou o diário e o colar e correu para as escadas. A raposa a seguiu, e quando ambos saíram, Ashley puxou a alavanca e se dirigiu ao seu quarto tentando não acordar sua senhora.
Mesmo curiosa para conhecer o que tinha pelas páginas daquele livro, não conseguiu vencer o sono e acabou por dormir abraçando ambos os objetos. Quanto ao filhote, se deitava aos pés da menina já se sentindo em casa. De fato, aquele se tornara seu lar desde então.
Um enigma... Um mistério... Um segredo qual fora oculto de mim desde o dia da condenação da minha irmã.
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