— Vamos criançada, deixem os dois sozinhos — disse Kenshin.
Yumi, Kotaro e Kenshin se retiraram. Kenjiro ficou apenas encarando Ishida. Após vários segundos desconfortáveis, o garoto perguntou:
— É… bom, você não tinha algo para falar comigo?
— Sim, eu tenho. — Continuou encarando.
Novamente ficaram um tempo sem dialogar.
— Mas por que não pergunta nada?
— Estou esperando você me contar a merda que usou para enfrentar aquela muié.
— Ah… — Observou o braço esquerdo. — Não sei o que era aquilo. Perdi a consciência por um tempo.
— Mas o que viu antes de apagar?
— Fiquei preso em meus pensamentos e de repente, me vi afundando em meio às águas de algum lugar. Estava tudo bem escuro e apenas uma pequena luz me iluminava. Eu tentei pegá-la, mas não consegui, então, chamas negras começaram a sair dos meus braços e meu coração foi parando aos poucos. Foi aí que apaguei.
“Chamas negras?”, pensava Kenjiro.
— Certo. — Se aproximou do garoto e agachou-se. — Deixa eu ver sua mão.
Ishida retirou as bandagens, revelando seu braço, o qual ainda estava escurecido, como se tivesse sido fundido pelas chamas.
“O que aconteceu comigo?”
Ele estendeu a palma da mão para que Kenjiro pudesse avaliar o símbolo estranho que surgiu.
— Hum…
“Um sigilo demoníaco, mas de quem?”, pensava Kenjiro, franzindo a testa.
— Já viu essa marca antes, garoto?
— Não que eu me lembre.
“O véio não gosta que ele lute, então ele realmente deve saber de algo.”
— Bom, conversei com o seu coroa. — Levantou-se — E ele me deixou te treinar.
— É…
— Não se engane, você ainda é uma criança idiota. Só vou te treinar porque essa merda aí é perigosa e pode ferir não só a você, mas também o vilarejo todo.
Ishida olhou para baixo, desapontado.
— Você não deve depender desse poder. Tem que usar a sua própria força. Entendeu?
— Sim, entendi — respondeu Ishida, um pouco triste.
Kenjiro foi se retirando, mas antes de sair, disse:
— Me encontre em minha casa amanhã de manhã.
— Certo.
Ishida ficou parado, observando seu braço. Enquanto ele conversava com Kenjiro, Kenshin acompanhou Yumi.
— Por que está vindo comigo?
— Preciso lhe perguntar uma coisa.
— Certo, pode falar — disse Yumi, apertando a mão esquerda.
— Sabe onde Ishida conseguiu aquele machado?
Yumi paralisou.
“O que eu respondo? O que eu respondo?!”
— Não, quando eu o vi, já estava com ele.
— Entendo, obrigado. Tenha uma boa noite então e… obrigado por sempre estar com ele. O Ishida é um garoto quieto e não demonstra muito seus sentimentos, mas pode ter certeza que ele gosta de você.
Yumi parou de apertar a mão. As falas de Kenshin aliviaram sua mente.
— Tudo bem, fico feliz com isso. Devo muito a ele.
— Não se preocupe com aquilo, já faz dois anos e ele fez o que todos nós faríamos.
Kenshin se virou e seguiu para sua casa.
“Todos nós faríamos”, pensou Yumi, olhando para o céu.
No caminho de volta, Kenshin encontrou Kenjiro. Ele o encarou enquanto passava.
“Ele está desconfiando de mim?”
Ao chegar em casa, Kenshin se deparou com Ishida colocando as bandagens de volta.
— Olá — disse ele.
— Como foi a conversa? — perguntou, indo em direção a tigela que o garoto havia usado para comer.
— Tranquila. Kenjiro disse que vai me treinar e que é pra eu estar na casa dele amanhã de manhã.
— Entendo. E como está o braço? — Kenshin pegou a tigela e olhou para Ishida.
— Está bem, não sinto dores.
“Não vou perguntar sobre o machado, não agora. Melhor deixá-lo descansar.”
— Certo. Bom, é melhor você descansar agora. — O velho foi em direção a um balde que continha uma tigela mergulhada em um pouco de água. — Tenho certeza que o treino daquele homem não é nada fácil.
— Você tem razão. — O garoto deitou sobre a esteira de palha, virando as costas para o avô. — Meu corpo ainda está cansado, mesmo depois de dormir tanto.
— Você o levou ao limite, então era de se esperar. — Agachou-se, colocando a tigela sobre o balde.
— Isso é verdade… — disse Ishida, fechando os olhos lentamente.
— Ei, peço desculpas pelo jeito que falei com você na reunião. — Olhou para trás, observando seu neto — Você sabe que faço isso para te proteger, né?
— Sim… eu sei vô. — A respiração de Ishida ficou mais lenta, indicando que caiu no sono.
— Parece que já dormiu — disse Kenshin, após soltar uma leve risada.
Ele pegou a lamparina e foi em direção a esteira de palha. Deitou e ficou por alguns segundos apenas olhando para o teto, então apagou a lamparina e se virou para o lado direito.
“O que devo fazer para manter meu neto seguro e longe de coisas ruins?”, pensou ele, fechando os olhos.
Os dois dormiram, mas alguns minutos antes de Ishida acordar, ele teve um sonho. No início, só pôde escutar diversas gotas caindo sobre um local cheio de água. Ele sentia estar boiando em algum lugar.
“O que está acontecendo?”
Após abrir os olhos, notou que estava garoando. As nuvens do céu estavam totalmente negras e a lua daquele lugar era vermelha como sangue. Sua luz deixava tudo com um reflexo avermelhado.
“Onde estou?”
Ele boiou na vertical e viu que se encontrava em um lago, cuja água era escura e apresentava um tom sangrento devido ao reflexo da lua. No perímetro do local havia diversas árvores negras, sem folhas.
“Que merda de lugar é esse? Será o mesmo em que afundei?”
Ishida observou haver um pequeno barco à sua frente. Ele nadou até o transporte e embarcou.
“Que porcaria é essa?”, pensou ao olhar para um remo feito de ossos.
Ele pegou o objeto macabro e remou até encontrar um pequeno cais de madeira. Ao deixar o barco, o mesmo voltou sozinho pelo caminho que Ishida atravessou, sem condução.
“Que lugar sinistro”, pensou após engolir a saliva.
Ao dar um passo, as árvores se agruparam, formando uma trilha única e impossibilitando Ishida de seguir em outra direção.
“Não tenho nem um sonho tranquilo. O que fiz para merecer isso?”
De repente, uma raiz de árvore saiu do chão, ao lado de seu pé esquerdo. Da ponta dela se formou uma tocha acesa, com uma chama da mesma coloração da lua. Ishida se apropriou dela e observou o fogo.
“Obrigado?”
Notavelmente, a chama parecia não ser afetada pela água caindo do céu.
“Esse fogo não se apaga com a chuva.”
Após andar por um tempo, deparou-se com a entrada de uma caverna. Ishida entrou com passos lentos e cuidadosos.
Ele só escutava gotas d’água pingando no chão.
“Nunca vi esse lugar.”
Após seguir por alguns minutos naquela escuridão, Ishida viu uma leve luz avermelhada. Parecia ser o fim da trilha. Quando chegou até ela, adentrou um imenso lugar. Nele, havia uma grandiosa porta de ferro centralizada no fundo. Ela continha um desenho elaborado em sangue de uma lua cercada por seis arestas conectadas, que formavam uma pirâmide. Era o mesmo símbolo que havia no pergaminho usado no ritual de Kenshin.
A porta era protegida por duas gigantescas estátuas humanoides de pedra, as quais tinham a cabeça de um chacal e usavam túnicas e sandálias. Uma delas portava um cajado dourado em sua mão direita e um tipo de cruz dourada na outra, já a segunda estátua segurava uma balança feita de ouro na mão esquerda.
As laterais do salão abrigavam pequenas estátuas retratando chacais deitados sobre plataformas rochosas, repletas de hieróglifos gravados.
Todo o local era iluminado pela lua através de uma grande abertura nas alturas e o sereno também adentrava o local.
“Outro lugar estranho.”
Ao observar aquele espaço, Ishida se surpreendeu ao perceber um homem de cabelos brancos e ondulados, penteados para trás. Vestia uma batina preta de padre e um manto de seda da cor vermelho vinho com alguns detalhes em tonalidade ocre dourada, muito similar ao manto de um rei.
Ele apontava uma tocha para cima, iluminando a porta. Sangue pingava de sua mão esquerda, sugerindo que aquele era o responsável por desenhar o símbolo misterioso.
“Esse símbolo me é familiar! Mas quem é esse cara?”
— Está pronto — sussurrou o homem. Sua voz indicava ser um senhor.
O estranho arremessou a tocha para seu lado direito e se virou, observando Ishida com seus óculos escuros de lente arredondada. Ele possuía uma barba grisalha, milimetricamente aparada. Seu rosto tinha uma aparência imponente, com traços graves e uma expressão malévola. A idade demonstrada por suas feições sugeria que se tratava de alguma autoridade.
— Estava te esperando.
“Me esperando?”
— Quem é você?
De repente, o senhor se moveu numa velocidade assustadora e apareceu do lado esquerdo do garoto, que pôde discernir seus olhos azuis através da abertura lateral dos óculos.
“O quê?!”
O manto que cobria o velho se elevou na conclusão do movimento. Ishida não conseguiu acompanhar nada e ficou sem reação enquanto aquele homem estranho o ameaçava.
— O que foi? — perguntou ele.
O tom azul-turquesa em seus olhos faziam qualquer pessoa sentir inveja. Seu olhar era como uma hipnose perfeita.
Ele agarrou a mão do garoto e a virou, observando a palma enfaixada.
— Hum…
As bandagens que escondiam o braço pegaram fogo e se tornaram cinzas, revelando o sigilo demoníaco.
— Azaziel, interessante.
“Estou paralisado. Esse cara não é normal.”
De repente, Ishida sentiu um choque percorrendo todo seu corpo. Então, em um ato inesperado, desferiu com a mão direita um golpe muito veloz contra o senhor, o qual segurou sem problemas o ataque com a mão esquerda. Ao defender, um grande barulho se espalhou por todos os cantos e as gotas de chuva se afastaram por alguns segundos.
— Calma, garoto — disse o homem após soltar um leve sorriso.
“O que foi isso? Meu corpo agiu sozinho!”
O senhor puxou o garoto para si e lhe passou uma rasteira, derrubando-o.
— Nesta forma você não é nada.
Ele levantou a perna esquerda. As solas de suas sandálias assustaram o jovem, fazendo-o pensar no que iria acontecer.
“Eu não quero mo…”
O estranho pisoteou o abdômen de Ishida com uma força monstruosa. Todo o perímetro rochoso trincou e até mesmo as estátuas dos chacais se partiram.
Ishida cuspiu sangue ao receber o golpe e perdeu a autonomia no mesmo instante.
— Não pensei que fosse tão fraco — disse o senhor.
Ele largou a mão do adversário caído e sacou uma adaga que estava dentro do manto. Fez um pequeno corte na palma da mão e com a outra passou sobre o sangue de Ishida.
— Certo.
O homem se posicionou defronte as grandes estátuas e juntou as palmas das mãos, misturando o sangue. Ele então conjurou uma magia empregando uma língua desconhecida.
— Anuq Ib Edrol.
Após entoar o feitiço, o estranho se ajoelhou e colocou as duas mãos sobre o chão. De repente, todo o local tremeu e os olhos das estátuas gigantes brilharam em dourado.
O símbolo que estava na porta também se tornou dourado. Simultaneamente, outro símbolo desconhecido se sobrepôs à marcação original.
— Vamos, Anúbis, quebre este selo.
Ishida conseguiu recuperar os movimentos e observou melhor o que se passava..
“Que merda tá acontecendo?”
As estátuas ganharam movimento, fazendo algumas pedras se desprenderem do alto do recinto. Com a cruz que segurava, a estátua da esquerda abriu a fechadura do gigantesco portão, virando a chave dentro do mecanismo. As representações de Anúbis então puxaram as portas, abrindo a passagem.
— Magnifico! — afirmou o estranho após rir com intensidade.
“O que tem atrás daquela porta? E o que esse cara quer?”
Após concluírem a abertura, as estátuas voltaram para posição original e perderam o brilho dourado nos olhos.
— Está feito… O primeiro passo foi efetuado.
Um pouco de fumaça foi expelido de dentro do espaço recém-aberto.
— Você deve estar entediado, não é mesmo? — disse o senhor, olhando para a escuridão através da porta.
De repente, um grande barulho de correntes se fez ouvir no interior daquele lugar. Parecia que alguém estava tentando se soltar. Pela força do barulho, demonstrava que não era humano.
O senhor gargalhou e exclamou:
— Seu poder ainda será meu!
— Ei, Você aí! — gritou Ishida, se levantando com dificuldade. Sangue escorria de seus braços, pernas e até mesmo no rosto. Seu cabelo estava todo encharcado devido à chuva.
Ele continuou dizendo:
— Não sei que lugar é esse e não sei quem você é, muito menos o que fez, mas se for para me matar… — Limpou o sangue que escorria de seu nariz com a mão direita. — Que eu esteja em pé.
— Você é corajoso por fora, é bonito de se ver, mas isso não faz de você um homem forte. Muito pelo contrário, eu consigo perceber a sua farsa. Você não é nada, garoto.
Ishida respirava profundamente com os olhos fixos no senhor, que prosseguiu:
— Não se preocupe, ainda não é o momento de te matar, mas se prepare, porque esse dia chegará. — Suas pernas foram se transformando em fumaça negra. Ele estava desaparecendo.
— Quem é você? — perguntou Ishida, enquanto metade do homem já havia sumido.
— Eu sou aquele que dá a vida e causa a morte. — Só restou sua cabeça em meio a fumaça. — Lembre-se bem de meu nome.
Ele sumiu por inteiro e suas últimas palavras ecoaram por todo o local.
— Eu sou… Nimrod — disse ele, desaparecendo.
Ishida se manteve em pé, ofegando e refletindo sobre as palavras do velho.
“Conhece a minha farsa? O que ele quis dizer com isso?”
O som das correntes retornou. Em paralelo, um pouco de poeira saiu pela porta.
— Quem está ali? E por que está preso?
Devagar, Ishida avançou até o portão para descobrir do que se tratava aquele som, um som que demonstrava ser de alguém tentando se soltar utilizando a força.
“Ele está certo, eu sou fraco. Sou muito fraco. Não consegui nem acompanhar seus movimentos. Como posso ter aquela força?”
Ishida parou em frente a porta. Ele observou bem a escuridão no interior.
— Eu quero ser forte.
Ao dar um passo em direção a abertura, chamas negras o impediram. Elas bloquearam a entrada e começaram a tomar todo o local.
“As chamas escuras!”
Elas se espalharam por tudo, sobrando apenas o espaço em que Ishida estava. Pareciam gigantescas ondas que circulavam o garoto sem parar. De repente, a mesma voz macabra que escutou na batalha contra a youkai ressurgiu.
— Não se preocupe, garoto. Minha ira lhe fortalecerá!
— Você é o tal de Azaziel?! O que quer de mim?! — gritou o garoto.
A voz diabólica emitiu uma risada ensurdecedora.
— Apenas quero que tu saibas que as trevas lhe tornarão mais poderoso!
Ishida sentiu uma dor agonizante nas palmas das mãos após a fala de Azaziel. Ao dirigir sua visão para elas, notou as marcas em brasa fumegante.
Enquanto o garoto agonizava, as chamas engoliram todo o espaço e consumiram seu corpo por inteiro. O jovem olhou para o alto e berrou de tanta dor. De repente, ele despertou do sonho, apavorado e gritando.
“Que merda foi aquela?”
Ishida olhou para sua mão direita e contemplou o símbolo em sua palma.
— Azaziel…
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