Após alguns segundos observando o símbolo, Ishida sentiu um cheiro delicioso. Havia à sua direita um peixe assado na fogueira de sua casa. Ele exalava um pouco de fumaça, indicando ainda estar quente.
“O vô já foi trabalhar?”
Ishida se alimentou e seguiu até a porta de sua casa. Estava muito pensativo a respeito do último sonho.
“Nimrod…”
Ao abrir a porta e sair, uma pedra foi lançada em sua direção. Ela acertou em cheio a sua bochecha direita.
— Mas que merda — reclamou ele, com a mão na ferida.
Kotaro saiu dos arbustos com os olhos arregalados.
— Me desculpa! Você sempre segura, então pensei… Enfim, você está bem?
— Sim, sim. Tá tudo certo. — Fechou a porta da casa. — Minha mente não está muito boa hoje.
— Teve outros pesadelos?
— Eu sempre tenho pesadelos.
Os dois começaram a caminhar em direção ao centro do vilarejo.
— Seu avô me disse que irá treinar com Kenjiro hoje.
— É… Vou sim.
— O que será que ele vai te ensinar?
— Bom, contanto que eu segure uma espada, eu não ligo.
— Segurei uma faz muito tempo. Também sinto vontade.
— Eu nem sequer segurei. Só vejo elas nas cinturas dos samurais.
— Hoje em dia é difícil de se ver.
— O rei atual é um medroso.
— Também acho — falou Kotaro, após dar uma leve risada.
— O Kenjiro ainda tem uma espada, aparentemente. Me lembro dele usando naquele dia.
— Ele foi um Ronin. É normal que ele tenha uma escondida.
Ronins são samurais que perderam ou não servem a nenhum mestre. Eles costumam vagar sem rumo, como uma onda.
— Isso é verdade.
Enquanto eles andavam, algumas pessoas olhavam para Ishida e cochichavam entre si.
— Parece que você ficou famoso, né? — perguntou Kotaro, dando um tapa no amigo.
Ishida desviou o olhar e se manteve em silêncio, lembrando das falas de Nimrod.
De repente, um senhor que passava entre os garotos colocou uma das mãos no ombro de Ishida e sorriu. Ele carregava uma pesada cesta de legumes nas costas e andava um pouco inclinado.
— Parabéns, garoto. Fico feliz que temos alguém tão corajoso — disse ele, com a voz baixa e calma.
— Obrigado…
Ao chegarem no centro do vilarejo, Ishida perguntou:
— A criança está com a senhora Nozomi, certo?
— Isso, você quer vê-la?
— Sim, vamos lá.
Os dois seguiram até a casa da senhora.
— Tenho dó dessa criança. Nem cresceu direito e já perdeu toda a família.
— É… realmente é algo de apertar o peito — disse, desviando o olhar.
Ishida refletiu sobre o momento em que Aika morreu.
“Ela morreu por minha culpa.”
Após caminharem por poucos minutos, eles chegaram na casa da senhora Nozomi e bateram na porta, a qual foi aberta por Yumi.
— Yumi? — perguntou Kotaro.
— Olá, estou ajudando a cuidar da criança. O que vocês querem?
— Viemos dar uma olhada nela.
— Certo, mas evitem barulho. Ela tá dormindo.
Em silêncio, os garotos entraram na casa. Ela era simples, como a de qualquer camponês daquele vilarejo. A estrutura era dividida em duas partes, uma com piso de madeira e a outra com piso de cimento.
A parte de madeira era usada para comer e descansar. Tinha uma pequena mesa com uma grossa vela acesa em cima e duas prateleiras, que continham cestos de diferentes tamanhos e tigelas usadas para os alimentos. Havia também duas esteiras de palha utilizadas para dormir.
A parte de cimento continha três prateleiras. Duas guardavam os materiais de trabalho, chapéus de palha e também alguns cestos que usavam nos campos. Já a outra prateleira guardava alimentos e outros itens para o preparo das refeições.
“Toki…”
Logo que entraram, os garotos se depararam com uma jovem de cabelos negros que carregava e balançava lentamente a criança adormecida. Ela usava um coque preso com dois palitos e sua pele era clara como a de Yumi. A moça cantava uma melodia suave que encantava os ouvidos, repetindo uma única onomatopeia.
A jovem inclinou a cabeça, cumprimentando os garotos.
“Me desculpe, Aika…”, pensou Ishida, olhando para a criança.
— Olá, garotos — falou, em tom baixo, uma senhora que mexia em um pequeno forno a lenha no canto do local. Seus cabelos eram brancos, amarrados a um laço preto e suas vestes de camponês estavam puídas.
Os garotos cumprimentaram a senhora e se aproximaram da jovem, a qual parou de balançar a criança para que os garotos pudessem olhar.
Ishida passou umas das mãos na cabeça do bebê e pensou:
“Me perdoe. Não fui forte o suficiente para proteger a sua família, mas te prometo que irei protegê-la até o fim. Você… será feliz.”
— Vamos Kotaro.
— Certo.
Os dois acenaram para a senhora Nozomi e seguiram para a porta. Ao deixarem a casa, Yumi perguntou, olhando para Ishida:
— Como você está?
— Ah… estou bem até.
— Que bom. Então… até uma outra hora. Tchau.
Yumi adentrou a casa e fechou a porta.
— Tchau.
— A relação de vocês dois é bem estranha, né? — perguntou Kotaro.
— Talvez.
— Enfim, vamos lá?
— Claro, vamos.
Ishida e Kotaro foram até a entrada da trilha de terra. Eles continuaram conversando enquanto caminhavam até a casa de Kenjiro.
— A Saori é tão bonita, não é mesmo? — comentou Kotaro. — Aquele canto dela estava me enfeitiçando.
— Sim, a voz dela é boa de se escutar.
— Pena que ela tem dezenove anos — disse, colocando as mãos na nuca.
— Pare de pensar bobagens.
— Tá bom, tá bom. Foi mal.
— A Yumi é um ano mais velha que você, né?
— Sim, e por que a pergunta?
Kotaro riu.
— O que acha dela?
— É estranha. Sinto que ela guarda algum segredo.
— Não estou falando disso, caramba! Quero saber se acha ela bonita.
— Sim, acho. Deve ser normal isso.
— Realmente. Aqueles olhos dela são bonitos demais pra falar que é apenas um olho azul. Eu diria que são divinos.
Ishida se lembrou dos olhos de Nimrod.
— Já vi um olho mais bizarro que o dela.
— Onde?!
— Ah… longa história amigo.
Eles chegaram no fim da trilha de terra. A partir dali só havia mato no caminho até a casa de Kenjiro.
— Precisamos ir com cuidado. Fiquei sabendo que tem armadilhas pros animais — avisou Kotaro.
— Kenjiro nem me avisou sobre isso.
— Vai ver ele já tá te testando.
— Provável.
Eles seguiram na mata. Andavam com cuidado e observando bem por onde pisavam.
— Será que já estamos chegando?
— Shh… — sussurrou Ishida e com seu braço esquerdo bloqueou Kotaro de prosseguir. — Agache-se.
— O que foi?
— Olha, ali. — Apontou o dedo para uma árvore um pouco distante.
Em um dos galhos dela havia um saco pendurado por um fio extremamente fino que era preso em algum sistema escondido entre as folhagens no chão.
— É uma armadilha de peso, né?
— Sim, e olha. — Apontou o dedo para um animal que parecia um cão-guaxinim. — Tem um Tanuki passando perto do gatilho.
— Acha que ele vai cair?
— Provavelmente. Deve ter algum alimento entre as folhas.
— Verdade.
O animal se aproximou do gatilho e pisou sobre ele.
— Já era — afirmou Ishida.
O som de algo metálico se soltando se fez ouvir e uma das pernas do animal foi enlaçada por uma corda. Em seguida, o contra-peso caiu, levantando o animal..
— Agora entendo porque todos têm medo do Kenjiro.
— Vamos, precisamos seguir.
— Sinto que vamos morrer se continuarmos.
— Vamos logo.
— Então tá bom.
Eles continuaram andando pela mata, até que em um certo momento Ishida novamente impediu Kotaro:
— Cuidado.
Ishida se agachou e mostrou para seu amigo que havia fios ligados entre as árvores. Eles estavam em torno de 15 centímetros acima do chão.
— Mas pra que serve isso?
— Vamos testar — disse, pegando uma folha do chão e aproximando-a do fio. Assim que ambos entraram em contato, Ishida descobriu que o fio era bastante afiado pois a folha foi cortada.
— Caramba, mais um segundo e eu estaria aleijado.
— Pois é.
Depois de alguns segundos, Ishida falou:
— Vamos continuar.
— Você é tão louco quanto o Kenjiro, sabia?
Os garotos seguiram na mata.
— Olha, chegamos! Ali está a casa do Kenjiro — informou Kotaro, apontando o dedo para uma casa velha exalando fumaça de seu telhado, indicando que alguém mexia com alguma fogueira ou forno a lenha.
— Estou vendo.
Eles se agacharam e observaram o local por entre os arbustos
A casa de Kenjiro ficava no meio da floresta, rodeada por diversas árvores. Era simples, construída em madeira, exceto pelo telhado que era de palha. Uma casa típica de quem morava na mata.
— Quem é aquela? — indagou Kotaro.
Havia em frente a casa uma jovem de cabelos pretos, levemente ondulados e cortados um pouco acima de seu queixo. Ela usava um laço verde de nó borboleta em sua cabeça, sugerindo ser uma pessoa doce e gentil. Seus olhos eram castanhos e vestia um quimono rosa, de tom claro e com detalhes verdes.
— Não sei, mas ela é corajosa por tá perto dos lobos. Ninguém se aproxima desse lugar por causa deles.
A jovem estava dando comida para dois lobos, um branco e outro negro. A bela pelagem deles era bastante lisa e esvoaçava no vento. Além disso, tinham patas e dentes enormes e intimidadores. Ishida calculou que caso estivessem apoiados sobre as patas traseiras, poderiam facilmente ultrapassar a altura de qualquer homem. Eram predadores letais. Apesar de tudo isso, a mocinha não demonstrava nenhum tipo de embaraço ou receio perto dos animais, como se estivesse lidando com um gatinho ou pônei inofensivo.
— Ela parece ser muito bonita.
— Estamos na frente da casa mais perigosa da região e você me diz isso?
— Estou com medo, mas olha aquela menina.
— Por que você veio comigo, Kotaro?
— Também quero falar com o Kenjiro.
Kotaro olhou para seu lado esquerdo e disse:
— Ishida… olha aqui. Tem uma armadilha do meu lado.
Era uma armadilha de urso. Pisar naquilo seria o fim de sua perna.
— Caramba, por pouco você não iria precisar de uma muleta.
Kotaro suou frio.
— Vamos seguir? — perguntou Ishida.
— Sabe que se aqueles lobos atacarem estaremos mortos, né?
— Claro, mas fazer o que.
— Certo. Vamos com cuidado então.
Quando os dois se aproximaram, os lobos perceberam e latiram, assumindo uma postura de prontidão, com o pelo arrepiado. Daquela distância, os olhos amarelos e ferozes de ambos ficavam em evidência. Compreendendo a situação, a garota rapidamente entrou na casa e, logo após, voltou acompanhada de outra jovem bem esquisita, que se posicionou com as mãos na cintura.
— Nossa, nunca tinha visto uma moça assim. — afirmou Kotaro.
Ela tinha o corpo todo definido, algo difícil de se ver em uma mulher daquela região. Seus cabelos eram vermelhos e seus olhos, verdes em tom escuro.
A parte de cima de seu corpo era quase totalmente exposta, apresentando todo o seu físico, sendo seus seios a única parte coberta. Já em baixo, usava um hakama escuro e calçava chinelos de palha.
— O que vocês querem aqui? — perguntou ela, em tom alto e forte.
— Preciso falar com o Kenjiro — respondeu Ishida. — Ele irá me treinar.
— Então você é o idiota que ele vai treinar?
— É… sou eu.
Os lobos latiam continuamente para Ishida, como se ele fosse alguma ameaça.
— O Kenji… — A moça olhou para os lobos, com uma expressão raivosa — Calem a boca, caramba! Não tão vendo que tô tentando falar aqui?
Os lobos se calaram e sentaram-se.
— O que tem de errado com eles? — perguntou Ishida.
— Por algum motivo eles não gostam de você — respondeu Kotaro.
— Deve ser por esse seu cabelo branco esquisito. Se eu fosse um cachorro, te acharia estranho também. Talvez até te morderia.
“Essa não bate bem da cabeça”, pensou Ishida.
De repente, Kenjiro apareceu, com uma expressão séria, saindo da mata e carregando em suas costas uma rede com peixes.
— Ah… lá vem o homi — disse a desconhecida.
“Está com a espada na cintura como se fosse normal. Ele é maluco.”
Ao se aproximar, Kenjiro disse:
— Então teve coragem de vir, moleque?
— E por que não viria?
Kenjiro riu e então observou Kotaro olhando para os lobos com uma expressão de bobo.
— E quem é esse tonto? — perguntou ele.
— Um amigo meu, Kotaro.
— Isso senhor. Sou filho do Koda.
— Ah… do Koda. E por que está aqui, idiota?
— É… então, eu queria ser seu aluno também.
— E eu tenho cara de professor?
— Isso é um não?
— Claro que sim. Só vou treinar o outro aí porque o poder dele é perigoso.
— Entendo, tudo bem então. — Kotaro olhou para baixo, um pouco triste. — Mas posso assistir o treino?
— Faça o que quiser, eu não ligo.
— Então vou assistir.
— Comeu direito hoje, cabeça de palmito? — Perguntou Kenjiro, indo em direção a porta de sua casa.
“Cabeça de palmito? Só por que meu cabelo é branco?”
— Não ligue, o mestre não é muito bom em apelidos — informou a doce menina.
— Eu percebi, mas respondendo à pergunta. Comi sim. Por quê?
— Porque você vai treinar com a Akane, essa bombada aí. E ela pega pesado.
Kenjiro entrou em sua casa.
“Irei treinar com ela?”
— Não estou com fome.
Kenjiro respondeu de dentro da casa:
— Sorte sua. Eu não te daria comida mesmo.
“Não lembrava que o Kenjiro era desse jeito. Por fora ele parece ser mais sério, mas quando fala é arrogante e selvagem.”, pensou Ishida.
— Está pronto, garoto? — perguntou Akane, exibindo um sorriso. — Hehe.
— Sim.
— Então pegue aquele machado ali e vamos cortar uma árvore.
— Cortar árvores? E isso é treino?
— Claro, achou que poderia trocar golpes com Kenjiro sendo que seu braço é tão fino quanto a empunhadura da espada? Se pensou isso, você é um idiota.
“Pior que faz sentido. Preciso treinar meus músculos, mas mesmo assim, cortar árvores? Eu faço isso direto e não vejo evolução nenhuma.”
— Skoll, Hati. Vamos! — ordenou Akane, chamando os lobos. — Já volto, Harumi.
— Certo — confirmou a doce jovem.
Ishida, Kotaro e Akane seguiram para floresta.
Notas:
Ronin (浪人; 浪 = Onda, 人 = Homem), no Japão feudal foi um samurai que não seguia a um daimyo, ou seja, que não possuía um mestre - princípio básico do bushido de lealdade ao daimyo.
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