Finalmente cheguei à sala no final do corredor. Por que zoologia tinha que estar no fundão ao lado de biologia e botânica não sei. Ouvi dizer que há um jardim e horta na vista de uma das salas, mas esqueceram que nós estamos no segundo andar. Não vejo árvores olhando pela janela. Só queria saber quem teve a ideia de nos conectar com a natureza com vizinhos como alface.
Já na sala, vejo o povo sentado e um silêncio do primeiro dia com novos desconhecidos com alguns em seus celulares. Iniciando um “bom dia” para todos, procuro uma boa carteira, perto da janela, atrás da primeira linha. Coloco o caderno na carteira e sento. Caneta, lápis e borracha seguros no bolso. Checo o celular só para ver a hora. Sete e quarenta e nove e nada do professor. Vou dar uma olhada nas mensagens antes que apareça alguém e chame minha atenção. Não sou fã de redes sociais. Só tenho contatos com família, alguns poucos amigos que garanto em ter e algumas páginas. Acho entediante ver o que as pessoas estão postando e “pensando”. Por isso que prefiro seguir páginas de algum tema como zoologia e ioga. Minha família é a única que pratica, isso para uma cultura chinesa que tenho, o yin yang, preservação do bom e mau, equilíbrio.
Eu sei! Ioga não é de origem chinesa, mas todos acabaram adotando. Índia só conquistando sorrateira.
Só tem mensagem do meu pai hoje. Ele enviou bem cedo, o que me surpreende. Graças a Deus que não tem telefone no apartamento. Imagina ele ligar e ouvir uma voz de um estranho e, pior, dizendo que “o Mestre está na universidade”. Quando penso nessa palavra tenho duas coisas em mente: ou ele é pupilo ou gay.
Mantenho calmo e quieto para olhar para ninguém. Dou uma longa respirada para concentrar e esperar o professor que apareceu só de pensar nele com seus livros nos braços e uma mochila com notebook, imagino. Com um “bom dia” vindo dele e a sala respondendo de volta, o professor foi se sentar à sua mesa. Dá a impressão de ser jovem: uma lontra marrom de óculos, louro, usando um elegante casaco em pleno verão e um jeans; também usava um colar parecendo um dente de um predador, pulseiras de couro com o símbolo de âncora e um anel de ouro no anular esquerdo, dando a entender que ele é casado.
Logo após ele, apareceu outro estudante um tanto quanto discreto. Vestindo um casaco preto com capuz escondendo seu rosto, minha primeira impressão foi que ele é maconheiro. Esse tipo de gente nem ouso tentar aproximar. Ele caminhou ao final e cruzou por mim para sentar na última carteira, colocando sua mochila no chão e abaixando a cabeça. Seu comportamento chamava não apenas a mim atenção; a turma também deu uma olhada para trás.
Que sujeito mais caótico de se encontrar no primeiro dia! Sem contar o Kona, claro.
O professor se levantou nos chamando a atenção, prestes a iniciar a primeira aula. Para isso que estou aqui. Primeiro dia de aula na universidade, uma nova vida a viver.
Intervalo. Hora de sair um pouco e conhecer melhor a universidade, isso se eu conseguir conhecer tudo. Jardim, horta, corredores, cantina, biblioteca, quadra de esporte e por aí. Aqui é um imenso lugar para se perder, se eu queria morar na floresta como Tanuki disse. Eu também queria rever a Mika, mas eu devo saber onde é a sala dela para depois montar um mapa por onde andar, qual corredor cruzar. Seria uma aventura, mas melhor esquecer. Não quero imaginar como um príncipe atrás da princesa.
Eu queria conhecer a cantina onde eles oferecem ou vendem seus lanches. Era comum venderem salgadinhos, salgados, balas e chocolate, bem típico, mas acredito que oferecem lanches também. Lembro nas escolas de oferecerem cream cracker com suco, maçã, pães, fora os pratos como sopa de frango, arroz carreteiro, arroz e feijão e, o mais ambicioso, pão com carne. Se eu achar isso aqui eu vou gostar muito. Eu já tenho o hábito de trazer lanche. Não é lá grande coisa, mas é bom.
Só que hoje trouxe nada.
Multidão é o que não falta. Eu podia ver todo tipo de espécie, coloridos, cabeludos, escamosos, grandes, pequenos, feios... aqui é um tipo de vila onde há de tudo. Chegando onde acredito ser um minijardim de uma árvore no meio de uma clareira de concreto, cadeiras ao redor virados para trás e o refeitório logo à direita sob um teto. As paredes eram interessantes tijolos vermelho de gesso branco, o rodapé juntando com a cerâmica branca, a moldura do teto tão modelo romano e algumas janelas grandes onde deve ser a sala dos professores. O refeitório é um local diferente de testemunhar. Dependendo de quanto eu tiver, dá para comprar algo e comer se não existisse fila e essa fila estava enorme de encarar.
Eu consigo sobreviver comendo só o grátis daqui, acho.
No centro há uma árvore com boa sombra para sentar, mas a curiosidade bateu vendo uma pessoa sentada sozinha e era o encapuzado da turma. O casaco preto e capuz cobrindo até os olhos, curvado na árvore com algum livro na mão, parecendo que sua única forma de distração é ler. Minha cabeça estava enchendo de curiosidade sobre ele do por que prefere ficar sozinho, ao contrário de muitos que estão tentando conhecer seus colegas. Agora imagino se é uma boa ideia eu ir falar com ele. Olho ao redor e não vejo quem me olhe para futuras frustrações.
Não sei. Talvez coisa da minha cabeça.
Respiro fundo e tento ter coragem para ir conversar com ele. Enquanto eu caminho até lá, parece que minhas pernas estão trêmulas e tortas, mancando. Só não tenho o que puxar de assunto e já estou próximo dele. Seria ruim perturbar ele agora, mas seria pior eu chegar perto e de repente se afastar sem razão.
Mesmo tímido, eu puxei um “oi” que o fez olhar para cima e fechar o livro rapidamente com o susto. Eu ainda não vi perfeitamente seu rosto, mas notava que era de pelagem escura como sua mão, mas o nariz e orelhas eram claras num estranho verde neon. Ele se recolheu com minha presença.
– Desculpa se te incomodei. Sou seu colega de classe. Não sei se me notou, mas eu...
– Por que está aqui?
Sua pergunta foi direta e fria, mas o tom de timidez. O capuz cobria seus olhos, o que complicava julgar sua expressão. Fiquei um pouco sem graça, mas chateado com a pergunta. Só queria uma conversa. Todo estudante que vejo está acompanhado ou tentando se intimar no primeiro dia.
E olhe lá! Nem todos.
– Eu queria fazer companhia com você. Você está sozinho e parece decepcionado.
– Como você sabe disso?
– Porque você está andando como um estranho.
Boa palavra, Vanz! Estranho. Um bom tapa na cara para quem lhe fez perguntas carrascas. Sei que ficamos segundos em silêncio, vendo um ao outro e predominando apenas o burburinho das pessoas. Até acho que só de eu estar ali estou o incomodando.
– Olha... melhor eu te deixar só. – Eu estava dando a meia volta e procurar algum canto a me enfiar.
– Não! Você pode ficar – ele chamou minha atenção em querer minha companhia. Virei para ele em dúvida. – Não vou se incomodar.
– Certeza?
Ao término da pergunta, ele tirou o capuz, mexendo as orelhas desconfortavelmente e olhando para mim como que desejando mesmo com os olhos que brilham. Seu pelo era escuro, uma mistura de preto e azul no rosto e na orelha esquerda; a orelha direita, nariz e olho esquerdo têm um forte verde neon, e azul no olho direito. Seu pelo é uma interessante mistura, coisa que nunca vi na vida. Pelas feições, ele é um lobo. Se estou errado, que ele me corrija.
– Eu gostaria de conhecer alguém nessa universidade. Então acho que seria um prazer te conhecer.
E é bom para nós. Eu fiquei mais aliviado que ele aceitou a recepção – ou invasão. Era engraçado que queria conhecer pessoas novas se portando como maconheiro, estranho, um sad man – não sei como pronuncia isso.
Em passos lentos, me sento ao lado dele enquanto ele abre espaço. Além do mais, a próxima aula não inicia.
– Estou feliz que me recebeu para conversar com você – eu tentava sorrir para incrementar os nossos ânimos, o que o fez portar como um tímido.
– Estou mais surpreso que você não me ache estranho.
Bom, estranho eu já achava desde que ele entrou na sala. Era impossível não notar os seus curiosos pelos. Se ele diz ser estranho por conta disso, é uma justificativa até plausível. Imagino se seu corpo também é uma mistura de aquarela, mas precisava cobrir com um casaco preto? Preto faz muito calor, fora a analogia da cor. Não gosto nem um pouco.
Mesmo assim, tentei continuar puxando assuntos que achei que ajudariam a abrir melhor seu comportamento.
– Não sei por que se diz ser estranho. Você parecia triste se isolando.
– Eu sei – ele deu de ombros com os olhos não surpresos com o comentário, mas ria um pouco para responder. Parecia ter noção dos fatos. – Desculpa, mas é porque não me vejo uma boa pessoa.
– Por que diz isso? – estranhava mais ainda.
– Não sei direito – ele deu uma olhada para baixo, logo retornando com um riso. – Sou estranho para você.
– Mas há algo de errado em ser estranho? – a pergunta que nos fez ficar calados por um tempo. Novamente olhando para baixo como que desapontado.
– Eu gostaria de saber.
A resposta dele me cutucou com um palito de dente enquanto nem sei como reagir ao seu profundo argumento. Ele olhava para mim como se visse um fantasma e botou de volta o capuz. Eu pensei em interromper a mão dele e confortar com algumas palavras do tipo “não precisa se esconder”, mas poderia deixar ele mais constrangido e atrair os maus olhares.
Olhei para a grama verde, observava nossos sapatos quase perto do outro enquanto as pessoas da universidade conversando até que num barulho alto. Não é possível que já se conheceram. Preferi ficar com ele por algumas razões: não sei onde Mika está e conhecer o primeiro colega pode ajudar a... passar o tempo? Geralmente, estudar e fazer trabalhos juntos são a principal razão que todos fazem quando começam a escola. Ninguém gosta de trabalhar sozinho.
Ficamos lá por uns segundos quietos, eu olhando para frente e ele, para baixo.
– Por que você não fica com eles? – ele pergunta baixo. – Eles parecem felizes conversando.
Não dava para responder no seco. Também eu seria um impostor entre nós. Vejo as pessoas conversando, realmente parecendo felizes, mas eu tenho uma suposta razão para sua pergunta:
– Não tenho amigos também. Sou novo aqui.
“Não tenho” entre aspas. Ele reagiu com nada. Fiquei em silêncio com ele por uns segundos até que ele tira o capuz de novo e me olha. Seus olhos tinham um charme diferente, cada um numa cor e também era puxado como os meus. Suponho ser descendente da mesma região que eu.
– Acho que estou sendo um pouco seco com você – e é verdade. Ele me responde dando um sorriso. – Eu sou Amorim.
– Prazer, Amorim – respondi voltando com um sorriso, agora mais confiante. – Me chamo Vanderlei, mas me chama de Vanz, por favor.
– Vanderlei – ele riu. – Nunca ouvi nome assim. É do Nordeste?
– Não. Só é... estranho mesmo – rindo da minha própria miséria, deixando a doce sinfonia soar. – Minha mãe que me deu esse nome.
– E você é japonês?
– Não não. Sou chinês.
– Ah sim. Eu sou japonês. Eu achei que seria difícil achar alguém descendente da Terra do Sol Nascente.
Eu ri com ele. Terra do Sol Nascente... Japão. Parece um maravilhoso país com paisagens de tirar o fôlego, a cultura, música, arte, as pessoas...
Tanuki...
Sim... Lembrei que Tanuki é de lá. Devo mesmo pensar em coisas boas vindo do Japão?
O alarme toca. Hora de retornar para a sala. Agora que eu estava conhecendo Amorim. Pelo menos, nós podemos ir juntos e conversar um pouco. Ele se levantou primeiro e estendendo a mão para mim.
– Obrigado – seguro e ele me puxa. – Se sente melhor?
– Um pouco – ele olhou para o lado meio tímido e colocando uma mão no bolso do casaco enquanto a outra carrega o livro. – É bom conhecer alguém que estuda zoologia.
– Ah é! Difícil mesmo achar quem estude.
E, pelo visto, gostarei de estudar com uma nova amizade. Olha para o lado bom, Vanz: talvez esse primeiro dia está sendo bom.
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