No caminho, em meio à floresta, Kotaro e Akane conversavam.
— Ei, o que vocês são do Kenjiro? — perguntou o garoto, olhando para a jovem.
— É uma situação complicada, garoto, mas… digamos que a gente esteja em dívida.
— Então basicamente vocês servem o Kenjiro pra pagar essa dívida?
— Bom, não é bem assim. Não é o tipo de dívida que você paga porque tem que pagar, mas sim porque você quer pagar.
— Entendo.
— É complicado.
— Você é irmã da tal da Harumi?
— Não, não. Ela tá na mesma situação que eu e com todo o tempo que passamo juntas, viramos amigas. Por assim dizer.
— Entendo. E como você se tornou tão forte?
— Caramba, garoto! Você fala demais. Por que não faz igual o teu amigo e segue em silêncio?
— Me desculpa. Eu sempre fui mais elétrico que o Ishida. Ele nunca foi de falar muito.
Após andarem por um tempo em silêncio, eles se depararam com uma árvore colossal. Nem na imaginação dos garotos poderia haver um tronco tão grosso quanto aquele. Sua altura se destacava entre todas as outras e sua madeira estava intacta, bela e alisada. Cortá-la seria extremamente árduo. Pelos cálculos de Ishida, talvez cinco pessoas levassem horas para realizar a tarefa.
— Chegamos — afirmou Akane. — Hehe.
— O Ishida não vai cortar essa daí, né?
— Ô se vai — confirmou a mulher, colocando as mãos na cintura e soltando uma risada em tom alto. — Digam: “olá” para o gigante de madeira.
“Ela só pode tá de brincadeira. Vou levar o dia inteiro para cortar.”
— Até você derrubar essa árvore, você não poderá voltar para casa e muito menos comer. Entendeu?
Ishida não respondeu.
— Entendeu, moleque?!
— Sim, eu entendi.
“Já estou ficando cansado desse treino.”
Ele passou o dedo na lâmina do machado e observou a ponta da árvore.
“Certo, vamos lá.”
O garoto ficou defronte ao gigante de madeira e deu o primeiro golpe.
“Que resistente!”
— Skoll, Hati. Não deixem que ele saia daqui. Se ele pegar algo para comer, podem atacar sem dó.
Os lobos latiram, aceitando o pedido. Então Akane começou a caminhar de volta para casa.
— Se você não tiver força e resistência para cortar essa grandona — dizia a fortona, deixando o local — é melhor desistir de ser um espadachim. O certo é você plantar e colher arroz.
“Essa esquisita me tira do sério”, pensou ele, descontando a raiva que sentiu em um ataque mais poderoso.
Ishida continuou cortando enquanto conversava com Kotaro.
— Ei, Ishida... Por que você tá tão focado nesse treino?
— Eu... — Apertou o machado. — Eu não quero deixar mais ninguém morrer.
— O que aconteceu lá no templo não foi fácil, né? Você está diferente.
— Sim, não foi... — respondeu, aplicando mais força no golpe. — E nem quero entrar nesse assunto.
— Tá bom, me desculpe.
— E o treino com seu pai? — perguntou Ishida, dando uma pausa.
— Bom… Você sabe, ele não é tão forte, então meu treino não está dando resultados.
— Então foi por isso que perguntou pro Kenjiro.
— Sim. Eu achei que tivesse alguma chance dele me aceitar.
— Você tá triste pela resposta que ele deu? — Voltou a cortar a árvore.
— Mais ou menos. Sabe… Eu sinto um pouco de inveja de você.
— Como assim?
— Ah… Você sempre foi mais forte do que eu. Você tem a Yumi. Agora tem o Kenjiro te treinando. E você ainda é considerado um herói no vilarejo. Eu não sou nada, sabe?
Ishida se manteve em silêncio por alguns segundos.
“Mais forte? Herói?”
— Eu não sou melhor que você.
— Mas… mas você lutou com uma youkai de sangue! Você é apenas um garoto como eu e já tem um feito desses. Yumi e a criança só estão vivas por causa de você.
Ishida parou de cortar e respirou profundamente. Ele observou seu braço enfaixado e disse para seu amigo:
— Kotaro, esse poder não é meu e não me pergunte o que é, pois não sei a resposta. Eu não sou forte e muito menos um herói. — Voltou a cortar a árvore. — Eu não sou melhor do que você.
— Mas…
— Chega desse assunto.
— Certo. — Kotaro observou o céu alaranjado. — Bom, daqui a pouco já vai anoitecer. Vou voltar para o vilarejo.
— Pode avisar meu vô?
— Claro. — Levantou-se do tronco em que estava encostado. — Boa sorte.
— Valeu.
— E… se estiver escondendo algo, por favor, me conte. Somos amigos, né?
— Não se preocupe com isso.
Kotaro voltou para casa e Ishida continuou cortando a árvore.
“Já fazem umas dez horas que estou aqui e essa porcaria ainda não caiu.” pensava ele, se apoiando em seus joelhos e suando intensamente.
“Estou com fome. Mais um pouco e meu corpo chega no limite.”
Ele voltou a cortar, mas seu ritmo estava lento e sua força diminuía a cada golpe.
“Preciso comer algo ou vou desmaiar.” Percebeu após parar novamente. “O problema é aqueles lobos.”
Skoll e Hati estavam deitados, dormindo.
Ishida deu um passo para longe da árvore, mas ao pisar nas folhas espalhadas pelo chão, os lobos perceberam sua presença e rosnaram.
“É… parece que não tem jeito.”
Ele voltou a cortar a árvore, mas em um ritmo extremamente lento. O sol já estava se escondendo e sua luz não penetrava com eficiência no local onde o garoto estava.
Após diversas machadadas e com a noite quase tomando a tarde, Ishida estava prestes a cortar a árvore, mas seu corpo já não tinha forças para continuar. Sua visão começou a ficar embaçada e suas pernas, cada vez mais fracas. Não sentia mais seus braços e suas mãos sangravam de tanto apertar aquele machado de madeira.
Com a respiração ofegante tomando conta de sua audição, ele se lembrou das falas de Akane: "É melhor desistir de ser um espadachim. O certo é você plantar e colher arroz".
— Você não sabe nada! — gritou Ishida, descontando sua raiva na árvore.
Logo, ele se lembrou das palavras de Nimrod: "Eu consigo perceber a sua farsa. Você não é nada, garoto".
— Cala a boca! — Desferiu outro golpe.
Inesperadamente as chamas negras apareceram em seu braço, mas em pouca quantidade. Em seguida, Ishida teve um flashback onde novamente viu Arthur, o misterioso homem de olhos esverdeados que antes enfrentava um ogro feroz. Nessa memória eles já estavam em outro local, indicando que o ogro já havia sido morto. Arthur estava de costas, caminhando em direção a um campo de íris.
Ishida encontrava-se encostado em algo, provavelmente uma árvore. Seus olhos abriam e fechavam devagar, demonstrando que o garoto ainda se sentia fraco naquele momento. Pelo que dava para visualizar, ele estava nos limites de uma floresta, adentrando o longo e belo campo, o qual era dominado pelas flores, tornando aquele lugar completamente branco, havendo apenas um estreito caminho de terra para que as pessoas pudessem atravessá-lo.
Era uma visão incrível, pois o vento agitava as plantas, deixando tudo muito bonito.
Arthur não parecia ser de Hinode, provavelmente era das terras do sul, dominadas pelo império da luz. Usava botas de couro marrom, junto de uma calça escura. Não dava para visualizar por completo suas vestes superiores, pois usava um manto preto. Seu cabelo era um pouco ondulado e repicado, cortado até um pouco acima de seu maxilar. Já o seu rosto era belo e jovem, de pele clara. Deveria estar por volta dos vinte anos.
Ele tinha uma estatura em torno de um metro e oitenta, considerada alta para as terras do leste. Era um homem forte e demonstrava isso com seu olhar fechado. Não precisava sacar sua espada para vencer certos inimigos. Poderia facilmente derrotá-los com sua aura forte e ameaçadora.
Seu manto e cabelos negros balançavam por consequência da forte ventania que, junto dos campos, exaltavam sua beleza.
— Ei… qual é o seu nome? — perguntou Ishida, quase fechando os olhos.
O homem parou de caminhar e olhou para o lado direito. Um vento forte fez com que seu manto se deslocasse, revelando sua camisa marrom de manga longa e uma cruz negra nas costas.
— Arthur, e o seu?
— Ishida… Sasaki Ishida.
— Sasaki? — Deu um leve sorriso. — Espero te encontrar novamente, garoto.
Arthur voltou a caminhar e o garoto fechou seus olhos. Finalizando a memória.
— Eu quero te alcançar — disse ele, em tom baixo e quase desmaiando. — Não quero ver mais nenhuma pessoa morrendo.
Ishida só escutava sua respiração ofegante, enquanto seu machado estava se fundindo com as chamas. Em seguida, ele lembrou do que Kenjiro lhe disse: "Você não deve depender desse poder. Tem que usar a sua própria força". E também se lembrou do que disse para Toki: "Mas te prometo que irei te proteger até o fim".
Seu machado começou a voltar ao normal e então se lembrou do momento em que passou as mãos no cabelo de Toki.
— Você… será feliz. — Seus sentidos voltaram.
Ele apertou fortemente sua arma e as chamas se dissiparam por completo. Então, berrou em tom alto e forte, olhando para cima e fazendo sua voz ecoar por toda a floresta. Logo em seguida, arrumou sua postura e preparou sua perna esquerda para desferir seu último ataque.
Vendo tudo isso, os lobos se assustaram com a cena e se levantaram, observando o garoto.
“Eu preciso cumprir a minha promessa.”
Ishida ergueu seu machado e se posicionou para utilizar tudo que restava de sua energia.
“E pra isso, eu tenho que ser mais forte.”
Ele atacou a árvore com toda a força que restou em seus braços. O golpe foi perfeito, cravando toda a lâmina na madeira e prendendo a arma.
— Vamos, só mais um pouco! — Disse ele, tentando retirar o machado.
Ishida colocou sua perna esquerda na árvore, aplicando força para ajudar seus braços. Gritou até que o machado finalmente se desprendeu, saindo junto de diversos pedaços de madeira.
Ele caiu de bunda no chão, respirando fundo e observando se seu esforço foi útil.
— É, parece que falhei.
A árvore não caiu. Então Ishida se levantou com muita dificuldade, se apoiando com o machado. De repente, ele escutou o som de madeira trincando. Ao observar o gigante de madeira, viu que ele estava se partindo, prestes a ser derrubado.
Ishida sorriu.
Quando a colossal árvore começou a cair, tudo ao seu redor balançou. Até mesmo a casa de Kenjiro sofreu o efeito.
Akane disse, enquanto bebia saquê:
— Eita! Que tá contecendo meu senhor? — Riu em tom alto.
— Espero que ele não tenha usado aquela merda.
— Quer que eu vá buscar o garoto? — perguntou Harumi.
— Não! Deixa ele vir sozinho — respondeu Kenjiro.
— Frio como sempre — disse a fortona, rindo novamente.
Enquanto isso, Ishida observava a incrível queda daquele monstro de madeira. Ela derrubava todas as outras árvores em seu caminho e quando finalmente se chocou com o chão, causou um impacto extremamente poderoso, sentido até mesmo pelo pessoal do vilarejo.
Muita poeira se levantou com a queda e os ventos se agitaram, balançando agressivamente os cabelos de Ishida e os pelos de Skoll e Hati. Foi tão forte que o garoto teve que tapar seus olhos com o braço.
Após estar tudo calmo, ele seguiu até a casa de Kenjiro, mas no caminho seu corpo entrou em colapso. Quando estava prestes a cair, Hati, o lobo negro, parou ao seu lado e deixou-o cair em suas costas.
— Obrigado… — falou Ishida, se ajeitando em cima do animal.
Ao mesmo tempo, Akane conversava com Harumi. Ela estava completamente bêbada.
— Mar num é que o idiota do palmito conseguiu mesmo, an? — Riu alegremente.
— Me da isso aqui Akane. Você já bebeu demais — pediu Harumi, tentando pegar a garrafa de saquê.
— Tá tentando roubá meu saquê, é? Ah… Eu num vo deixar não. — Virou a garrafa, bebendo tudo em uma velocidade surpreendente. — Hah! Muito bão!
— Akane! — gritou Harumi. — Agora chega.
— Tá bão, tá bão. Ocê que manda. — Desmaiou sobre a mesa e começou a roncar.
— Ô mulher complicada. — Observou Kenjiro pensativo, mexendo no forno a lenha. — Tá pensando no garoto?
— An? Claro que não. — Fincou um peixe em um graveto afiado. — Estou nem aí.
Harumi deu um sorriso.
— Então por que está colocando mais peixes para assar? — perguntou com uma expressão de desconfiança.
— Ah… É pro Skoll e pro Hati.
— Hum… sei.
Os dois escutaram o som dos lobos chegando.
— Olha quem já apareceu — disse Harumi, brincando com Kenjiro.
Os dois esperavam que o garoto pedisse para entrar, mas não foi isso que aconteceu. Ishida apenas deixou o machado encostado ao lado da porta e nem sequer chamou por eles.
— Ele só deixou o machado? — perguntou Harumi.
Kenjiro se levantou e abriu a porta. Ele viu Skoll e Hati sentados em frente a casa, observando o garoto ir embora sozinho, quase caindo de cansaço.
Harumi foi até a porta e quando viu o que acontecia, disse:
— Coitado. Vai chamá-lo, né?
Kenjiro se manteve em silêncio, até que os lobos olharam em sua direção e Skoll latiu, como se estivesse pedindo para ajudar.
— Ei, garoto! — gritou Kenjiro.
Ishida parou de caminhar e Kenjiro continuou dizendo:
— Para com essa frescura e entre aqui logo. — Olhou para os lobos. — Vão ajudá-lo.
Skoll e Hati latiram e seguiram até Ishida para conduzi-lo até a casa.
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