Fim da aula, meio-dia e dez. Até que foi interessante. O conhecimento do professor é incrível, abrindo caixa dentro de caixa. Ele se formou em biologia e viajou para a África e outros países estudando fora, o que explica sua cabeça grande, mesmo sendo novo. Essa matéria está me trazendo curiosidades que quero me tornar, não viver na floresta como Tanuki disse.
Saindo do portão principal com Amorim e virando a esquina, lembro do resto da aula que ele voltou a ficar encapuzado, o que fez o professor de nome Carlos chamar a sua atenção. A turma estava extremamente curiosa a respeito dele, inclusive eu. Ele deve ser tímido e isso deve atrapalhar muito. Nem ouso perguntar da vida dele porque é cedo demais. Ao menos, ele parece se sentir bem ao meu lado. Mesmo assim, não justificava voltar o capuz.
– Hey, Vanz – ele chamou minha atenção. – Onde você mora? – eu calculava a rota pela minha cabeça.
– Eu ando vinte minutos para chegar aqui. Vim de outra cidade. Aluguei um apartamento e moro sozinho.
– Sério? – ele me olhou surpreso. Fiquei um pouco incomodado com o olhar. – E como é morar sozinho?
– Não acho ruim. O sentimento de estar só e ter um espaço só teu é pacífico, fora que zoologia aqui é o mais perto para estudar.
– Legal! Moro há anos aqui.
– Desde que nasceu? – ele confirma com a cabeça. – Parece conhecer a cidade por inteiro.
– É uma cidade boa. Você vai gostar, principalmente do mar.
– Eu acredito – dou uma leve pausa ainda andando para frente. – Sabe... Sinto falta do meu pai e avô. Eles que foram minha força em tudo.
– Você parece amar muito eles. Não sei se eu teria coragem de arriscar como você para conseguir uma graduação.
– Não não! É um sonho que eu sigo. Consegue me entender?
Ele me olhou por uns segundos em silêncio e sem entender. Ou estava inseguro de responder, julgando pelo seu olhar. Talvez ele não queira me machucar. Fiquei calado pensando se disse algo de errado.
Caminhamos um pouco até chegarmos numa bifurcação onde ele parou e apontou para uma direção.
– Minha casa está ali – dava para ver. Uma casa de grades brancas, paredes brancas e o teto cinza. Dava para ver também plantas e vasos à frente de casa. Parecia ser chique.
– Mora perto – e com dinheiro, pensei.
– Sim – ele virou para mim. – Eu preciso ir. Foi bom você ter conversado comigo. Estou surpreso que não me julgou.
Fiquei em silêncio perante um argumento enquanto seus olhos mudavam de direção timidamente. Claro que não irei dar um abraço ou coisa mais calorosa no momento. Não quero que ele pense que sou gay, e não sou. Mas esse “julgou” que me foi estranho. Também é pedir demais para quem entrou de capuz na sala.
–Te entendo – eu respondo. Ele me olhou novamente com olhos de quem almeja a resposta. – Foi um prazer te conhecer. Podemos estudar juntos, se preferir.
Ele ficou quieto com a resposta. Já estava com medo de pensar se invadi a privacidade íntima. Tentar disfarçar o olhar está complicado.
– Eu vou gostar muito de estar ao teu lado, Vanz – ele me sorria grato enfim. Até me deu um alívio. – Eu estou indo. Até amanhã?
– Até amanhã. Preciso pegar meu rumo – sorrio bestamente.
– Desculpa se tirei seu tempo.
Ele balançava a mão como que ansioso nos despedindo, cada um seguindo sua rua. Eu dava uma olhada para trás só para ver se ele faria o mesmo. Espero que esteja bem no resto do dia. Acho que consegui deixa-lo confortável e fazer sorrir. Dava para ver que era inocente e sincero. Também é lindo que esconde suas boas qualidades.
Lindo, Vanz? É a fome batendo.
Chegando na zona segura, na entrada há um quadro de mural que colocava panfletos e avisos de eventos que vão acontecer na cidade, vagas de emprego, marmitas e número da pizzaria. Lendo isso, só cresceu a fome. Isso que dá comer nada na hora do intervalo. Talvez não só eu: Tanuki deve estar faminto. Subindo a escada até ao apartamento 402, paro de frente à porta e respiro fundo me preparando para receber o súdito maluco. Coloco a chave e viro, abrindo devagar e vendo a sala limpa e organizada. Estou surpreso que tudo está no lugar. O ar estava bom, a harmonia sem sujeira, poeira, presença...
– Mestre?
Presença... Esquece!
Ele apareceu da cozinha com um pano de prato no braço com seu sorriso típico e contagiante. Talvez ele gostaria de abraçar para curar meu humor, mas não agora. Ele é gordo, mas mais rápido que eu por algumas razões que a física não explica.
– Você voltou rápido – ele parou na minha frente sorrindo.
– A aula termina geralmente meio dia e dez. Estou atrasado?
– Não. Imagino que tenha comido.
Essa era a questão: eu ainda não almocei e, para provar a tese, meu estômago ronca alto. Até acredito que ele fez nada para mim, o que não o culpo por ser novo em casa. Antes de comer fora e conhecer os restaurantes, hoje estou apto para cozinhar. Tanuki olhou impressionado com o ronco.
– Achei que você come na univerdade – ele colocou a mão na minha barriga, o que fez eu rapidamente retirar no tapa.
– Universidade – corrijo – e lá não tem. Vou preparar o almoço. Você poderia aprender a cozinhar.
– A seu dispor, Mestre – não estou confiante de sua disponibilidade, principalmente o sorriso que logo virou dúvida. – Mas o que vai preparar?
– Eu comprei carne de sol ontem e está na geladeira.
Bocejo um pouco com sono, mas a cara que o Tanuki fez quando abri a boca me incomodou. Seus olhos meio que brilhavam por um estranho motivo que desejo não saber.
– O que você costuma comer? – pergunto a ele que me volta com um sorriso.
– Isso é fácil, Mestre. Sushi, lamên, camarão, algas, pêssego e nozes – olhei desconfiado desses pedidos.
– Tanuki. Nós não comemos isso todos os dias.
– Todas as semanas? – me perguntou com uma cara triste.
– Não. São comidas caras. Estamos no Brasil.
– Barasil?
Eu esqueci de um detalhe: ele não está na sua terra natal. Aqui se come arroz e feijão, carne, salada, massa e uma enorme variedade de legumes preparadas a gosto de cada mão habilidosa. Resumindo, comemos tudo que vem. Para um japonês como ele, vindo de tantos anos atrás, o que será que encaixa com os gostos daqui? Sardinha?
Ele foi para a janela que dava a vista do parque. Tudo parecia exótico e futurista para ele: os móveis, os aparelhos, os prédios, as “árvores”, paredes de concreto resistente... será que ele conheceu nada desse mundo supostamente novo? Ficou aprisionado nesse vaso por milênios? Não é possível acreditar numa teoria dessa, apesar que nem quero acreditar que ele exista.
– Mestre! Esses cavalos são de metal, o ar daqui é ruim, as pessoas usando roupas estranhas... – ele virou o rosto para mim com um espanto estrangeiro.
– Nada é estranho, Tanuki – tentava acalmar ele só concordando que o ar é mesmo ruim comparado com o tempo dele. – O mundo só está diferente. Você ficou anos preso no vaso e não conhece o mundo afora.
– Mas e os Deuses? Yokais, Yureis, o torii, lendas...
Agora o confuso era eu. Ele me falava desses nomes japoneses que eu conhecia nada. Nem sei se falava de gente ou comida. Ele está falando de mitologia? Logo hoje, acreditar em mitologia e deuses folclóricos?
Bom, lembre-se Vanz que você está lidando com um jovem velho de dois mil anos atrás.
Sendo eu chinês, não bateu curiosidade de saber dessa cultura por causa do Tanuki e seus lamentos. Eu poderia causar problemas se eu ligasse para o meu pai e ele ouvir a voz de um desconhecido no meu apartamento, suspeitando que estou dividindo o lugar com alguém, o que seria nada agradável de se ouvir. Talvez eu estude sobre essas lendas na internet ou torcer para que a biblioteca tenha enquanto tenho que assistir o Tanuki mexendo os braços e ficando desconfiado desse mundo. Tive que pôr as mãos nos ombros dele no tapa, olhando na cara dele e soltar o papo.
– Calma lá, Tanuki! Não precisa apavorar. Vou te apresentar o mundo atual se ficar quieto, está bem? – ele só confirma de boca calada. – Agora sente no sofá e relaxa enquanto preparo o almoço. Está ansioso demais.
Seus ouvidos estavam atentos para mim e os olhos, fixados. O verde dos seus olhos era bonito mesmo.
Ele caminha em direção ao sofá que aponto e sentou afundando o traseiro nele. Enquanto ele fica ali, vou para a cozinha preparar o almoço retirando a carne e feijão da geladeira e fazer o arroz primeiro. Devo levar quarenta minutos para fazer tudo.
Lavando as mãos, já creio ter tudo para fazer. O negócio mesmo é o estômago que não deixava de parar de roncar, o que estava me incomodando e impossível de esconder.
– Posso preencher seu estômago, Mestre.
Eu virei devagar para ele com tremor na espinha. Ele ainda estava no sofá só me olhando, mas isso em que ajudaria? Eu estava faminto demais, mas o medo do que seria a ajuda era maior.
– Sério, Tanuki? – ele balançou a cabeça. – O que tem a oferecer?
Ele se levantou e foi até mim com gestos nas mãos que fazia no ar como que fosse explicar sua técnica. Curioso é que lembrei da noite que ele me salvou e se ofereceu para dormir dentro de mim, o que foi o motivo de ter me feito tremer.
– É um método que aprendi com meu antigo Mestre – ele move seus dedos na minha barriga em círculos. Nem sabia que tinha antigo mestre. – Eu posso relaxar os músculos do estômago com uma técnica que engana a fome por longo tempo. Isso era usado quando peregrinos viajavam em desertos calorosos e infinitos onde sabe-se que não há mantimento.
Olhando para sua explicação, é uma tese interessante, mas grotesca de se ouvir. Tirando a parte de engolir alguém vivo, enganar a fome com um relaxamento exótico pode ser uma artimanha fantástica; já a sede é impossível substituir.
Sei que terei que engolir ele, o que será um desprazer, só que eu precisava tirar essa fome que não parava de roncar.
– Tudo bem – suspirei rendido – Aceito sua ideia. Como que funciona?
– Simples: abra sua boca e fecha os olhos.
Esse “fecha os olhos” promete surpresas que detestarei; pior que obedeci como ele pediu com medo do que vai vir. Abri a boca que deve estar com um mau hálito e em uns segundos... dez, quinze, vinte... vinte e dois segundos e senti algo palpável e salgado quase entalar na boca, o que me fez abrir os olhos.
– Engula!
Eu queria mesmo era cuspir. Me esforcei e levantei a cabeça, engolindo um corpo gordo direto para a garganta me sentindo uma garça que come um sapo e torce para não engasgar. Aquilo eu admito que foi horrível de fazer. Tive o pressentimento que iria ficar sem ar.
Comer alguém vivo não é homicídio? Isso se não dizerem canibalismo.
Deus! Isso fará minha cabeça explodir! Já bastou eu sentir algum volume no gogó, agora é sentir alguém dentro do estômago.
– Tanuki? Está ai?
– Estou! – por um milagre, consigo ouvir sua voz e reconhecer. O som veio abafado... ou veio na mente? – Estou no estômago.
– Sério? – digo no susto. – Como conseguimos conversar?
– Você tem uma energia diferente que é possível trocar até pensamentos, Mestre. É uma forma espiritual que chamamos.
Ele não está me ajudando. Eu tinha levantado a pata para ver se pisei nele sem querer. Forma espiritual? O que seria isso? É como se eu fosse abençoado.
Está mais para amaldiçoado.
– Está tudo certo aí, Mestre? – ele questiona. Eu só suspiro de medo, obviamente.
– Faça seu trabalho que eu preparo o almoço.
– Como desejar, Mestre.
Mesmo com uma criatura falante dentro da barriga com um questionável pavor de que estou comendo alguém, melhor eu tentar me concentrar e preparar o almoço e esquecer esse caso senão eu ficarei mais louco do que já estou. Até queria esquecer ele para sempre nadando no suco gástrico.
Paz, Vanz! Se ele está fazendo o trabalho nojento, melhor você fazer o seu e torcer para que nada de bizarro e grotesco aconteça com ambos. A cozinha me espera e a fome também.
Como esquecer que comi alguém?
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