Houve uma época em que a casa dos mercenários de Má estava uma bagunça. Aquele encarregado de administrar a organização resolveu deixar o cargo, pois nunca havia sido de seu interesse cuidar dos mercenários, tudo que os envolvia era contra seus princípios morais. Ridem não era como seu pai, o fundador de Má, ou como o irmão gêmeo, e partiu daquela cidade, sem remorsos, ou dúvidas consumindo sua mente. Não olhou para trás, sua história iria se desenrolar longe dali.
Rid, o segundo filho de Nerlim, logo se tornou voluntário para o cargo deixado pelo irmão, e o conseguiu sem esforços. Não demorou muito tempo até o rapaz perceber que não era bom naquilo, mas a vergonha de parecer inferior aos olhos do pai o levou a se recusar a desistir, ignorando as consequências causadas pela sua má administração, uma delas refletidas nele. Todos ao seu redor notavam o mau humor o rondando a todo momento. Foi estranho, uma vez que antes, este parecia alheio às frustrações da vida.
Uma mulher, que trabalhava em uma das muitas tavernas de Má, mais uma vez cumpria seu serviço. Veio da cozinha, atrás do balcão, com uma bandeja cheia de bebidas e petiscos, caminhou de lado até a mesa do balcão e levou a mão livre para levantá-la, mas alguém já havia feito a gentileza de puxar e liberar sua passagem.
— Eu cuido disso — informou o homem, antes de pegar a bandeja da mão dela.
— Sabe de onde são os pedidos? — Ela perguntou.
Ele já estava saindo, quando respondeu que sim.
O homem entregou os pedidos nas outras mesas, até restar um. Ouviu velhos fregueses insistindo em lhe fazerem companhia, como de costume, os ignorou. Foi até a mesa onde estava apenas um rapaz de cabelo vermelho como vinho, notavelmente estressado, e ao ver quem havia trazido sua bebida, não o deixou mais contente.
— Esperava a garota de antes — disse, pegando um dos copos.
— Creio que também não esperava que as coisas na casa dos mercenários ficassem tão ruins.
Rid trincou os dentes na borda do copo, levantando o olhar para ver a cara descarada do atendente, seu humor ruim só tendia a piorar, e isso o frustrava cada vez mais.
— Devem ter mudado de administrador.
Rid viu o homem continuar, tinha uma voz firme e de autoridade, a pessoa a sua frente não parecia pertencer aquele lugar, talvez já tivesse trinta anos, era forte, tinha cabelos de um castanho muito alvo e opaco, olhos verdes acidentados, puxados como a de um gato, uma daquelas belezas peculiares. Essa beleza era a única coisa que conseguia responder o porquê dele estar ali.
— O que você quer? Se for um ninguém*, não estou interessado, tiozão.
— Não parece muito preocupado para alguém que só está fazendo merda. — Fez questão de erguer a cabeça e olhá-lo por cima, estava visivelmente ofendido, uma vez que chamar alguém de tiozão era extremamente pejorativo, visto seu significado naquele lugar. Só a ideia de alguém se atrair por outro muito mais jovem o enojava..
— O que disse? — Batera o copo na mesa, quase o quebrando. Viu o homem se sentar de frente para ele, não acreditou em tal ação insolência.
_ Olha, garoto, eu sei quem você é e o que faz, e você é bem ruim nisso, tenho que destacar. Eu posso fazer o que você não sabe, e ainda ser melhor que o administrador anterior.
— Você — aquilo parecia surreal e se enrolou. — Quem você pensa que é?
— Niu — respondeu tranquilo.
— Eu não me importo com quem você é, seu merda! Desaparece da minha frente, antes que eu quebre sua cara.
— Não aconselho.
— Rah, você não o quê? — O garoto estava atordoado com tamanho desaforo. — Tem ideia de com quem está caçando confusão?
— Eu também não me importo. — Respondeu, cruzando as pernas, o que deixou as botas finas de salto bem amostra, e mantendo uma expressão elevada no rosto. — E então, você pode ficar com todos os créditos, não me importo em ficar nas sombras, desde que o retorno seja bom, e você pode voltar a viver como se a vida fosse linda. — Zombou, erguendo as sobrancelhas que pareciam um triangulo puxado.
— Vai se fuder! — Gritou, empurrando a mesa.
Passou pela mente de Niu que o fundador de Má falhou miseravelmente em educar seus filhos. Por consideração, ainda tentou ser justo, e deu aquele filho mal criado mais uma chance:
— Você é mais inteligente que isso, tente de novo.
Rid respirou, ainda encarando aquela pessoa de postura tão elevada, como se fosse o rei de algum lugar. Sendo coragem ou estupidez, ainda chamava atenção.
— Você é muito engraçado, palhaço. Quer saber? Certo, vai lá então, faz melhor.
Ser bom não estava na sua alma, mas estava cheio disso. Aquela pessoa o irritava com sua confiança, também não suportava mais aquele trabalho e as preocupações e responsabilidades que lhe foram atribuídas. Na melhor das hipóteses, aquele homem não daria conta do recado, virando uma chacota depois de vir tão cheio de si. Se esse não fosse o caso, ainda seria uma boa, pois poderia voltar a viver a vida como acreditava que ela deveria ser vivida.
Graças ao homem, que se apresentou como Niu, a casa dos mercenários não só voltou aos trilhos como também parecia estar melhor do que nunca.
°°°°
Aqueles que se arriscavam no mundo dos faz tudo por dinheiro, logo compreendiam a importância de Má. As chances de alguém buscando vingança através de missões-armadilhas eram muito comuns, e um dos muitos deveres do administrador era cuidar que essas missões fossem "filtradas", a fim de garantir o mínimo de segurança possível.
Havia lugares certos, por todo o Segundo Mundo, onde alguém poderia ir para contratar um mercenário, intermediários entre o cliente os mercenários e o administrador, esses eram conhecidos como Moanjs. Não importava se o cliente já deixasse claro ter preferência por um mercenário ou poder ser qualquer um, era averiguado se este tinha alguma inimizade com alguém da casa dos mercenários. Só havia um tipo de missão que não era investigada, afinal, haviam clientes que não queriam que nem mesmo o administrador soubesse quem era ou o tipo de missão que queria que fosse feita, nesses casos ficava a mercê dos mercenários aceitar ou não, pois nessas situações costumava ser uma armadilha, ou a tarefa que deveria ser feita era algo que até mesmo o cliente tinha noção da barbaridade que seria, e não queria que ninguém, além dele e um mercenário ruim o suficiente para aceitar, soubesse do que se tratava.
Por trás das missões, haviam os mercenários. Era até fácil se tornar um, difícil era viver por muito tempo nesse mundo. Niu gostava de conhecer todos antes deles fazerem parte do negócio e, naquela época, um lhe chamou a atenção, por ser uma criança. Havia criado uma grande empatia pelo garoto tão indiferente, e ,de certa forma, o adotou como pupilo. Sempre o dizia o que falava no começo para todos os mercenários.
" Nem tudo são lutas de frente. Não existe honra neste trabalho, tudo que precisa fazer é cumprir seu objetivo da forma mais rápida e fria. Vai ser desleal, aproveitar momentos oportunos, vulnerabilidades, atacar pelas costas, por isso o mais importante pra se viver neste mundo é o cérebro. "
Também ensinou ao garoto a usar duas lâminas, que era a especialidade de Niu. Tal relação havia chamado a atenção do líder do pequeno país, pois o pequeno mercenário era alguém importante para seu amigo mais querido.
Nerlim não era idiota, não tinha passado muito tempo quando descobriu que o administador não era mais Rid, o filho não se esforçou muito para esconder a verdade. O fundador se perguntou onde tinha errado “ Em que momento me tornei tão distante ao ponto de meu filho não me confiar suas angústias? “ tal reflexão levava lágrimas aos seus olhos, mas elas logo foram enxugadas.
— Meu caro Nerlim, não seja tão injusto consigo mesmo. — Respondeu um homem que andava ao seu lado, depois de escutar toda sua lamúria. — Eu ouvi alguns rumores sobre esse novo administrador, — o homem de capa preta continuou, chegando ao ponto que queria. Apreciava a pura amizade de Nerlim, mas não ligava tanto para seus rotineiros problemas familiares. Se perguntava — Como era possível amar tanto alguém na mesma medida que o acha entediante?
Cairo só percebeu que tinha dito isso em voz alta quando viu os cabelos do outro balançando em suas costas. Seu corpo alto e magro seguindo em frente com elegância. Cairo pensou em chamá-lo, mas temia deixar o amigo ainda mais envergonhado e sem moral, ele era tão amável, culto e sensível.
“ Na próxima, enfia seus problemas no rabo e-” Nerlim pensou em um momento de raiva, pisando firme para ir embora. Para início de conversa, havia sido Cairo a chamá-lo ali, para cuidar de seus problemas, e ficar de olho no progresso daquele pequeno mercenário.
Nerlim também não tinha ouvido coisas boas em relação ao novo administrador. Se os rumores sobre Niu fossem reais, daria um jeito de afastá-lo de Má, como fizera com muitos outros. Refletindo sobre esses rumores, a preocupação de Cairo era verdadeira. Pensar que ele ainda podia se preocupar com alguém suavizou o coração de Nerlim, o fazendo se sentir mal pela sua maldição. Não podia esquecer a quem devia sua vida, e tudo nela.
— Sinto muito… — Se virou para Cairo, voltando todo o caminho até ele.
Cairo o respondeu com um sorriso satisfeito, no final, não precisou fazer nada.
Nerlim nunca o decepcionava.
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