A casa de Kenjiro era separada em três cômodos quadrados. O primeiro era a cozinha, que tinha um piso cimentado e abrigava o forno a lenha. A ventilação era providenciada por uma janela de madeira, posicionada na parede contrária à porta. Havia também uma prateleira de bambu onde eram guardados os itens de pesca, uma vela para iluminação e um arredondado chapéu de palha negro.
O segundo cômodo era de madeira e situava-se à esquerda da cozinha. Ele continha uma mesa chabudai no centro e mais prateleiras para armazenar tigelas e os ingredientes das refeições. Uma lamparina pendurada no teto, logo acima da mesa, iluminava o ambiente. Por fim, o último cômodo era onde Kenjiro e as garotas dormiam, valendo-se de três futons que estavam dispostos no chão de madeira. Além disso, três pequenos armários estavam colocados em um canto, nos quais os habitantes da casa guardavam seus objetos pessoais. Havia castiçais nas paredes para iluminar a sala.
Em destaque, a bela katana de Kenjiro estava exposta em um suporte de madeira, ao lado de uma afiadíssima nodachi, a qual só poderia pertencer a Akane. A espada era muito grande e apresentava uma lâmina muito mais grossa que o normal, denunciando a força da garota.
Ao entrar na casa com os lobos, Ishida se sentou ao lado de Akane, cruzando as pernas. Enquanto isso, Skoll e Hati deitaram sobre as esteiras.
— O que tem de errado com ela? — Perguntou Ishida ao observar a bêbada roncando sobre a mesa.
— Bebeu mais que o normal — respondeu Harumi. — Não liga pra ela não.
— Pode me dar um pouco de água, por favor?
— Sim, claro — A moça se retirou para atender o pedido do jovem, que dirigiu sua atenção para Kenjiro, o cozinheiro da vez. Ele estava preparando peixes no forno.
— Como derrubou a árvore? — perguntou o anfitrião, virando um peixe no fogo.
— Por um momento as chamas apareceram e quase fui tomado por elas, mas consegui controlar e derrubei a árvore sozinho.
— Como controlou?
— Tive uma memória, e lembrei de uma pessoa.
— Uma pessoa? — Olhou para o garoto. — Conhece?
— Mais ou menos. Ela salvou minha vida quando era mais novo.
— Então essa é uma memória boa, certo?
— Sim.
— Seu poder está ligado com suas emoções. — Virou outro peixe no fogo. — Quando as chamas apareceram, o que estava pensando?
“Não vou falar sobre Nimrod. Não agora.”
— Lembrei de algumas falas que me irritaram.
— Certo, estão ligadas com seu estado mental. Você vai ter que aprender a controlar sua raiva.
— Entendo.
Harumi entrou na casa com uma tigela cheia de água e se sentou ao lado de Ishida. Ela colocou um pouco do líquido em um copo e disse:
— Espere, deixa eu curar suas feridas.
— Certo… Obrigado — Ishida respondeu sem entender muito bem o que ela queria dizer, já que não haviam ervas nem outros produtos medicinais por perto.
A jovem posicionou sua mão um pouco acima da tigela e, de repente, um pouco de água saiu da vasilha e tomou uma forma redonda, flutuando um pouco abaixo da sua palma.
“O que ela vai fazer com isso? Ela tem afinidade com o elemento água, mas como isso vai me curar?”
— Me dê sua mão — pediu a moça.
Ishida fez o que foi pedido, então Harumi colocou a água na ferida e prensou-a com sua própria mão. Ao retirá-la, a ferida do garoto havia sumido. Logo após, a moça conduziu o excesso de água de volta para a tigela.
Ela sorriu e disse:
— Já não está doendo mais, né?
— Sim, mas como fez isso?
— Sabe o que é chi?
— Chi? Não.
— É uma energia que está em tudo que contém vida. — Colocou o dedo no peito do garoto. — Ela flui por todo o seu corpo e você não vive sem ela.
— Hum…
— Através da água que passei em sua mão, eu absorvi o chi em seus canais de energia e direcionei para a ferida — explicou ela deslizando dois dedos no braço do garoto, parando na palma de sua mão.
— Curando ela — prosseguiu. — Ou seja, foi uma autocura.
— Então a água não me curou?
— Isso, ela apenas deu um empurrãozinho, digamos assim. — explicou Harumi, sorrindo docemente.
— Entendi — Olhou no fundo dos olhos da garota.
Eles se encararam por alguns segundos, até que ela olhou para o lado e percebeu Akane com um sorriso estampado na cara, ainda deitada sobre a mesa.
— Hum… safada você. — Riu intensamente.
Do ponto de vista de Akane, não era possível enxergar a localização exata das mãos de sua amiga. Ela só notou a garota tocando Ishida nas regiões baixas, distorcendo completamente a verdadeira situação.
— O quê? Como assim? — Harumi desviou seu olhar e corou ao entender o que acontecia. — Não! Não é isso que você está pensando!
— Não vai tirar a mão daí não? — Riu novamente. — É bom pegar no “machado” dele, né?
Harumi se virou, completamente vermelha devido à má interpretação da amiga e disse apontando o dedo para ela:
— Você sabe muito bem de quem eu gosto! Sua bêbada maldita.
Ishida pegou o copo de água e bebeu tranquilamente, como se não estivesse entendendo nada.
— Que que tá acontecendo aí, caramba? — perguntou Kenjiro, retirando os peixes do forno.
— A Harumi tava fazendo umas brincadeiras suspeitas com o garoto aqui.
— É mentira senhor Kenjiro! Eu não fiz nada!
— Eu nem ligo pra isso e vamos comer logo que eu tô com fome. — Se aproximou da mesa com a comida. — Saia de cima sua folgada.
Kenjiro distribuiu os peixes e sentou-se, de frente para Ishida.
“Que fome”, pensava o garoto, olhando fixamente para o alimento.
Akane se espreguiçou e disse:
— Hum, parece delicioso.
— Ajudar nada, né, mas comer todo mundo quer. — Deu uma mordida em seu peixe. — Bando de folgado.
— Está muito bom, mestre Kenjiro — elogiou Harumi.
— É, eu sei.
— Realmente bom — afirmou Ishida.
— Tá bom, tá bom. Vamo come caramba!
— Tá estressadinho, chefe? — perguntou Akane, rindo.
Kenjiro respondeu enquanto mordia o peixe:
— Como vocês são chatos hein.
“Esse cara é muito diferente do que eu pensava.”
Ishida observou os lobos dormindo e perguntou:
— De onde tiraram o nome deles?
— Por que te interessa? — respondeu Kenjiro, grosseiramente.
— Para de ser tão grosso com o menino. Ele só quer saber o porquê — pediu Harumi.
— E quando que virei contador de histórias?
— Bom, deixa pra lá. Isso não importa mesmo.
— Não ligue, o mestre é assim mesmo. Uma hora te conta. Ele é uma pedra chata por fora, mas por dentro ele é uma pessoa boa.
— Que papo é esse muié? Desde quando sou uma pessoa boa, an?
Harumi riu e deu uma mordida em seu peixe.
— Vocês são estranhos. Como se conheceram? — perguntou o garoto, olhando para Harumi.
— Ah… Longa história. Outro dia te conto. É melhor descansar para o treino de amanhã.
— Certo.
— Amanhã vai ser osso em guri — afirmou Akane, dando tapas nas costas de Ishida.
“Que gente maluca. Só a Harumi que parece ser menos pior.”
Após terminarem de comer, Akane foi dormir em sua esteira, abraçada com Hati. Ishida ficou sentado vendo Harumi e Kenjiro arrumarem o lugar.
— Já vai voltar para sua casa, né? — perguntou Kenjiro.
— É…
— Você pode dormir aqui, se quiser — informou Harumi.
— O quê? — Questionou Kenjiro.
— Obrigado.
— Ei! Que merda é essa?
— Para de ser maldoso. Ele nem vai aguentar voltar.
— Tá, tá, tá bom — falou Kenjiro, se retirando da casa.
— O que vai fazer? — perguntou Harumi.
— Dar uma fumada. — Fechou a porta.
— Onde posso dormir?
— Pode deitar ali mesmo, onde Akane está. Só não use a do meio, é do Kenjiro.
— Mas e você?
— Tem uma esteira reserva. Depois eu me viro.
— Tem certeza?
— Claro, pode ir descansar. Boa noite.
— Boa noite.
Akane encontrava-se roncando e abraçada com Hati, com sua perna por cima da barriga do lobo.
“Que cena esquisita.”
Ishida deitou-se na esteira e Skoll estava ao seu lado, deitado como um humano, da mesma maneira que Hati.
“Até os lobos são estranhos.”
O garoto ficou observando o teto enquanto pensava, quase dormindo:
“São estranhos, mas até que eu gostei deles.” Fechou os olhos e caiu em sono profundo.
Kenjiro ficou um tempo em frente a casa, sentado em um banco de madeira e fumando seu cachimbo enquanto observava o céu dominado por estrelas.
Harumi abriu a porta e também observou a noite.
— O céu está bonito hoje.
— Sim.
Depois de alguns segundos em silêncio, a garota perguntou:
— Por que decidiu ajudar ele? Realmente é pelo que disse?
Kenjiro fumou e exalou fumaça.
— Ele me lembra um amigo. Um velho amigo que se perdeu na escuridão. Não quero que o garoto siga nesse caminho.
Harumi deu uma leve risada.
— Eu disse que você era bom.
— An? — Olhou para garota, levemente irritado.
Harumi entrou na casa, rindo e Kenjiro continuou olhando para o céu.
— Esse garoto também me lembra você. — Fumou e soltou a fumaça pelo nariz. — Fantasma de Ezo.
Após isso, Kenjiro entrou em sua casa para dormir, mas ao chegar no último cômodo, viu Harumi deitada em sua esteira.
— Essa menina... Aproveitou o garoto pra tentar dormir comigo.
Ele pegou uma esteira reserva no armário e colocou-a no chão, deitando-se.
“Espero que ele consiga controlar aquele poder”, pensou, virando-se para o lado e dormindo.
No dia seguinte, Ishida acordou e encontrou apenas Akane na casa. Kenjiro foi caçar e Harumi estava lavando roupas no rio ali próximo.
— Venha comer guri, seu treino já vai começar. — ordenou Akane, enquanto comia um peixe assado.
— Tá bom. — disse, sentando-se na esteira de palha.
Após se alimentarem, saíram e pararam em frente à casa. Akane colocou seu chapéu de palha negro, pegou um rolo de corda e ordenou para o garoto:
— Abaixe seu quimono.
— An?
— Abaixa logo idiota.
Ishida retirou seus braços do quimono e exibiu toda a parte superior de seu corpo.
— Nossa, como você é fraco doido. Olha esse abdômen ridículo.
— Eu treino, mas parece que meu corpo não muda.
— Vou fazer mudar. Esse corpo fraco e magro vai ganhar muito músculo.
— O que você tem em mente?
— Sem perguntas, apenas me siga.
Eles seguiram em uma direção diferente dessa vez. No caminho, Akane perguntou:
— Por que você treina?
Ishida se manteve em silêncio.
— Hein? Por que você treina guri? Por que deseja ser forte?
— Pessoas morreram por minha fraqueza. Não quero que isso aconteça de novo.
— O que fará sobre o rei, sobre o arroz?
— Ainda não sei, mas o que Kenjiro fizer, eu vou apoiar.
— Entendo.
Eles caminharam por um tempo e chegaram na parte superior de uma grande pedreira. Então, posicionaram-se na beirada e observaram o lugar, o qual apresentava pedras de diversos tamanhos. A aparência do local sugeria que no passado era usado para algum tipo de treinamento ou que foi campo de alguma batalha intensa.
— Aqui estamos. Dê “olá” para o inferno de Ishida — informou Akane, estendendo uma das mãos na direção do local.
“Inferno de Ishida?”
— O que viemos fazer aqui?
— Você vai limpar toda aquela parte do meio ali. — Apontou o dedo para o centro do local. — Vai retirar todas aquelas pedras e colocar em outro lugar.
— Mas tem uma enorme ali.
— O treino é seu, não meu. Se vire.
“Como esse lugar ficou assim?”
Os dois deram a volta e adentraram a pedreira, decorada com uma imensa pedra no centro. Ishida perdeu a confiança só de olhá-la.
— O que foi? Já tá querendo ir embora, fracote?
— Não — respondeu ele, mesmo sabendo que estava mentindo.
— Toma, pega isso. — Entregou o rolo de corda para o garoto. — Vai precisar.
— Valeu.
— Bom, vou me sentar ali — Apontou o dedo para um canto cheio de pequenas pedras. — E assistir você sofrer.
Ishida se manteve em silêncio.
“Vou retirar primeiro essas pequenas e depois partir para as maiores. No final eu tento puxar essa grandona.”
E assim fez o garoto. Ele começou pelas pequenas pedras. Às vezes parava o treino para fazer suas necessidades e também ia até o rio para beber água.
“Esse sol está me matando.”
A cada hora que passava, Ishida se sentia mais fraco e parecia que nada estava mudando, pois havia muitas pedras naquele lugar. O pior de tudo é que Akane diversas vezes o insultava, às vezes dizendo que ele era um fracote e que daquele jeito ele nunca iria salvar ninguém.
Ao por do sol, ela disse para o garoto, o qual ainda estava retirando as pedras:
— Ei, idiota, chega por hoje.
— Eu consigo ficar mais um pouco — afirmou ele, quase desmaiando.
— Não, você não consegue. Vamos logo sua anta.
Eles voltaram para casa e no caminho Ishida não trocou uma palavra sequer com sua mestra.
“Espero que esse treino realmente ajude em algo.”
Ishida e Akane retornaram para aquele mesmo lugar por cerca de três meses. No primeiro, ele não só tirou as pedras menores, como também praticou outros diversos exercícios intercalados. Ele fez vários tipos de flexões, como o de punho fechado, com as costas da mão, com apenas um dedo, dois dedos e até mesmo com Akane sentada em suas costas.
— Ih… tá muito fraco guri. — Deu um gole em seu saquê, enquanto descansava nas costas do garoto. — Vamos, mais força!
Agachamento também fazia parte do treino, mas para complicar, sua mestra colocava tigelas com areia em cima de suas coxas que não deveriam ser derrubadas.
— Se você derrubar alguma, vai ficar sem comida hoje.
Quando o garoto terminou de retirar as pedras menores do local, Akane adicionou mais treinos. Agora tinha que fazer abdominais, porém, de uma maneira diferente. Ele deveria ficar suspenso de ponta-cabeça com os pés amarrados em um grosso galho de uma árvore, o qual teria uma tigela em cima. Basicamente Ishida tinha que transportar a água de uma jarra que ficava no chão com um copo minúsculo e encher a tigela com ele. Como adendo, Akane desferia diversos golpes em seu abdômen sempre que ele parava para tentar descansar. Às vezes ela até mesmo utilizava uma espada de madeira.
— Vamos, pare de moleza! — Espancou o garoto com a espada.
Akane fazia ele levar seu corpo ao limite. Cada treino ele tinha que fazer até não aguentar mais.
— Ei, eu, eu não aguento mais. — disse Ishida, ofegante, após soltar uma pedra.
— E quem disse que isso é problema meu? Pare de reclamar e vamos! Continue até não aguentar mais! Até cair duro no chão!
Algumas pedras eram muito pesadas e faziam suas mãos sangrarem. Harumi tinha sempre que curar suas feridas quando ele voltava e Akane o insultava a cada dia, se tornando realmente um inferno.
No segundo mês, Ishida se tornou capaz de arrastar pedras um pouco maiores e pesadas. Akane notou seu progresso e também adicionou mais treinos para complicar a vida do garoto. Ela fazia ele correr pelos arrozais todos os dias de manhã. Após isso, eles partiam para a pedreira.
— Vamos, guri, não pare de correr! — gritava ela, com os braços cruzados, enquanto os trabalhadores riam ao observar o treino.
— Coitado dele. — disse Yumi, observando o amigo correndo.
— Acho que estão pegando pesado demais — opinou Kotaro.
Akane também fez ele treinar saltos em solos enlameados e com poças d’água.
“Finalmente, está chovendo!” — falou Ishida, observando o céu enquanto seus pés estavam presos na lama.
— Ei! Quem mandou você parar idiota? Vamos, continue! — ordenou sua mestra, encostada em uma árvore.
Pule para o próximo capitulo e continue lendo. Limite de palavras da plataforma atingido!
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