Niu estava novamente a caminho do local ao qual lhe dera uma má reputação. Nerlim acreditava saber o que o futuro guardava para aquele homem, ao vê-lo chegar no recinto. Era uma taberna antiga, perdida entre as rochas pontiagudas da grande caverna onde ficava Má. A luz das brechas entre as rochas não chegava até lá, provavelmente o lugar mais repugnante, encoberto pelo que alguns consideravam impróprio, mas aceitável.
Havia muitas pessoas ali, jovens, adultos, velhos, homens, mulheres, e alguns que eram jovens demais para estarem lá. Estes estavam atrás do balcão do bar, ou em outros lugares que poucos pudessem ver.
Muitos nunca haviam visto o senhor de Má, mesmo para aqueles que o tinham visto, não iriam conseguir o reconhecer naquela forma de criança. Nerlim não tirou os olhos de Niu quando este entrou, ele parecia procurar por algo, no entanto, tinha estampado no rosto a impaciência de alguém que não encontrou o que queria, ao menos era o que Nerlim pensava, fazendo com que sua expressão esfriasse, e sombras se formassem em seu olhar.
Nerlim cuidou para que o novo administrador o visse, finalmente seus olhos se cruzaram. Niu pareceu um pouco espantado e olhou ao redor, Nerlim fez o mesmo, só então notou quantos olhos caíram sobre ele. Monstros sedentos começariam a competir, cujo prêmio, eles não sabiam, era um lar a sete palmos da terra — se tivessem sorte.
Já haviam passado muitos minutos desde que Nerlim entrou em um quarto com quem ele queria, até o momento tudo havia saído como pensou, mas não esperava que Niu não fizesse nada. Ele entrou e se deitou e estava até agora assim. Aquela atitude estranha não o desmotivou, tirou a lâmina escondida na faixa de sua roupa enquanto se aproximava.
" E se os rumores estiverem errados?" Tal dúvida o assolou, mas não era o bastante para não continuar, qualquer pessoa que estivesse nesse lugar não tinha boas intenções, isso incluía o próprio Nerlim, mas a luz da curiosidade tocou sua mente "Por quê? " Quais eram suas intenções com isso? Se perguntava diante da atitude estranha, o que havia por trás disso, uma armadilha?
Guardou a lâmina e se aproximou, agachou-se perto da cama de frente para ele, Niu já havia sentido a respiração do garoto próxima.
— O que está fazendo?— Os dois perguntaram praticamente juntos.
— O que tenho que fazer. — O garoto, Nerlim, respondeu.
— Não, só — suspirou — deite do outro lado e fique quieta.
Nerlim não obedeceu, e não achou que fosse importante dizer que era um garoto. Esperou alguns segundos, nada.
— Se não vai fazer nada, porque está aqui? — Ouviu ele se mover, como quem estava incomodado.
— Era o que esperava que alguém um dia fizesse por mim.
Nerlim foi pego de surpresa. Sentou de costas para a cama. Sentiu um aperto no coração e sua visão embaraçar, abriu a boca levemente enquanto levava a mão até o rosto. As palavras martelavam em sua mente, a culpa e a vergonha o apunhalaram desprevenido, o humilhando, lhe diziam que era um lixo por quase ter deixado-se levar por rumores, por como fundador de Má, ter sempre deixado as coisas correrem sem freio naquele lugar, por ter tirado aquele momento de alguém que realmente merecia ali. Apertou a mão no rosto impedindo que algum som saísse sem querer, enquanto lágrimas percorriam seu rosto
No fundo sabia que só se movia quando estava entediado e quando queria alimentar seu ego. E, no meio disso tudo, algo puro, doce e suave lhe confortava, era o que alguém que precisasse de verdade daquela gentileza sentiria.
°°°°
Seu coração talvez estivesse sensível na noite anterior, depois que o administrador foi embora e o dia raiou, pôde pensar com mais clareza. Nerlim ainda se sentia envergonhado, o administrador claramente o ouviu chorar. Pelo menos estava na forma de uma criança, esqueceria esse evento no fundo de seu coração. Vergonhoso. E ainda poderia ser uma armadilha, não seria a primeira vez no mundo que alguém demonstrava simpatia esperando algo em troca.
Perguntou a alguns ninguéns* que trabalhavam no local, como Nerlim parecia um deles, não esconderam o fato de Niu ser um amigo, os mais velhos confirmaram que ele já havia sido um deles. Não conseguiu nenhum sobrenome, tudo em relação a família do homem era um mistério. A pior coisa que escutou relacionado a Niu, foi que ele frequentemente se metia em brigas sérias. Realmente não sabia se ainda deveria considerá-lo uma ameaça, então continuaria de olho.
Naquele dia, quando Niu chegou em sua sala na casa dos mercenários, encontrou alguém o esperando. Estava sentado de costas para ele, perto de sua mesa. Seu cabelo cobria toda suas costas, e estava delicadamente enfeitado com presilhas douradas. A cor do cabelo, vermelho escuro, entregou rapidamente quem poderia ser. Caminhou, calmo, até sua mesa, e sentou-se de frente para o desconhecido de olhar sereno.
— Imagino quem seja, mas não o que faz aqui. — Niu não lhe deu muita atenção, enfiando o rosto nos papéis em sua mesa.
— O que será que entregou, a grande semelhança entre minha personalidade e a de Rid? — Brincou, sem rir. O humor de Niu também não mudou. — Tem feito um ótimo trabalho, Niu... Posso chamá-lo só de Niu?
— Já está chamando.
— As coisas nas mãos de Rid não estavam indo bem, você fez, está fazendo, um ótimo trabalho. Pensei em fazer algo para recompensá-lo, mas nada me veio à mente, que tal um abraço?
O administrador o encarou rapidamente, desconfiado, e sem gaguejar respondeu friamente:
— Não.
— Tem razão, seria estranho, pensarei em algo melhor.
— Veio aqui só para isso?
— Não. Soube que estava precisando de ajuda.
— Não estaria se seu filho fizesse a, pouca, parte dele.
— Tenha paciência com ele, e não se preocupe, a partir de hoje eu o ajudarei.
— Se for um inútil, o chutarei daqui. — Niu finalmente tirou o rosto dos papéis e olhou com atenção para a pessoa a sua frente. O fundador de Má era diferente do que imaginava, mesmo com um olhar de peixe morto, o penteado com uma trança mal feita, os piercings de cada lado abaixo da boca, e o delineado vermelho nos olhos o dava um ar de quem não pertencia àquele mundo. E talvez realmente não pertencesse, já havia mais de dez anos que Niu estava em Má, e aquela era a primeira vez que via Nerlim, nunca sequer tinha ouvido de qualquer coisa que ele tenha feito na vida, a pessoa à frente de todos os assuntos de Má era o governador Malri. Já acreditava que Nerlim era uma lenda, ou um vagabundo rico.
— Justo. — Levantou, suas longas vestes acompanhando seu movimento. Estendeu a mão para cumprimentar Niu, mas ficou no vazio. O outro apenas fez um leve movimento com a cabeça, negando que iria apertar sua mão. Não ficou irritado, era compreensível.
Houve uma batida na porta, o som leve de alguém que não parecia ter muita força de vontade. Nerlim ouviu um suspiro, parece que Niu conhecia aquela batida. Viu o administrador se levantar e caminhar até a porta. Com toda a questão dos rumores resolvidos, Nerlim pôde olhar sem essa neblina que impedia de notar qualquer coisa boa em relação ao administrador. Niu tinha uma presença muito forte, suas feições marcantes e olhos afiados o tornavam ainda mais superior. Ele se vestia de forma muito elegante, com blusas e calças formais de cores pastéis e um colete quase dourado. Todo o conjunto do seu ser era monocromático em tons de marrom. E ainda que Niu tivesse uma estatura baixa, Nerlim pensou que muitos não estavam à altura do novo administrador de Má. Um sorriso de satisfação escapou sem querer de seus lábios.
Um garoto mascarado entrou pela porta e parou. Quando Niu se virou, viu aquele homem sorrindo. Nerlim percebeu a frieza no olhar do outro, fechou os olhos e deixou a cabeça pender para o lado, tentando disfarçar que havia se perdido em pensamentos.
— Yuri, não pensei que o encontraria por aqui. — Nerlim conversou com o garoto que chegou.
— O conhece? — Niu perguntou ao garoto.
— Sim.
— Ele é protegido de um grande amigo meu. — Nerlim explicou, sabendo que Yuri não falaria mais do que foi perguntado. — O que faz aqui, Yuri?
— Trabalho.
— Para quê?
— Ganhar dinheiro.
— Vejo... E o que vai fazer com isso?
Yuri olhou de relance para Niu, antes de responder.
— Pagar a taxa para entrar na casa dos mercenários.
Sem nepotismo, então. Nerlim pensou que deveria aprender alguma coisa ali. Ele também não deixou de lamentar internamente, e não conseguiu encarar o rosto de Niu, quando este olhou para ele. Cairo realmente era um caso perdido, Nerlim não imaginava que o pobre Yuri era tão jogado às traças pelo amigo. Vendo que a imagem de Cairo precisava ser mantida, rapidamente tentou o defender.
— Yuri, chegou a falar com Cairo sobre isso?
— Não.
Niu não deixou de notar que Nerlim também sabia lidar com a personalidade dessa criança.
— Vejo…
— Se são tão bons amigos, e ele enfiou esse garoto aqui, como não poderia saber que existe uma taxa? — Niu observou, impedindo Nerlim de continuar a falar. — No final, você não é o fundador de Má, não criou a casa dos mercenários, como poderia seu grande amigo não saber?
Nerlim ficou sem reação diante da interrogação tão agressiva. Nerlim colocou as mãos atrás das costas, havia muita insatisfação naquelas palavras, Nerlim entendia. Era sua culpa e de sua passividade. Por mais que ficasse anos pensando, sobre tudo que viveu até esse momento, não poderia achar desculpas para se defender. O pequeno país Má era um caos. Nerlim levantou o rosto, sério. Talvez estivesse na hora das coisas mudarem um pouco.
— Erro meu, tenha um pouco de paciência comigo.
°°°°
Sempre parecia noite em Má, mas naquele momento estava tão escuro que ninguém teria dúvidas que de fato não estava de dia. Uma silhueta esbelta estava em pé frente as sombras trêmulas nos destroços de uma construção entre as rochas. Sangue fresco escorria no chão gelado da velha casa de prostituição.
Uma figura de preto se aproximou da pessoa em pé, a admirou por alguns segundos, sorrindo de lado.
— O que essas pobres almas fizeram, para conseguir a ira do nosso gentil Nerlim?
— Eu fiz mal, Cairo. Pensei… não, fechei os olhos para não ter que lidar com coisas difíceis. Dei minha responsabilidade a Malri e as pessoas de Má, no final a culpa é minha. O que eu poderia fazer para me redimir por todas essas pessoas?
— Não coloque tanto peso em suas costas, você não é responsável por Má, as pessoas só vieram. Não é sua responsabilidade o que os outros deixam ou não de fazer.
— Se eu tenho o poder para agir, fui condizente.
— Como alguém pode ser culpado por algo que não sabe?
— Ignorância pode não ser um pecado, mas ter ciência de seu estado e querer se manter nela, é.
Cairo colocou uma mão sobre o ombro do amigo, e o apertou, o virando para ele.
— Se quer assumir essa responsabilidade, então qualquer coisa a partir de hoje é culpa sua. — Cairo colocou a outra mão no ombro de Nerlim. — Quanto a antes de hoje, cuidarei para que Malri aprenda uma lição, em seu nome. — O homem soltou seu aperto, seus olhos de um azul sinistro pareciam excitados. —Você tem muita sorte, Nerlim, da próxima vez não seja tão passivo com as pessoas que mantém do seu lado.
Nerlim concordou.
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*No mundo onde se passa essa história, pessoas que vendem o corpo são chamados de “ninguém”
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