Ao escutarem o aviso, o clima foi tomado por uma tensão implacável. Kenshin e Ishida olharam um para o outro, mantendo o silêncio. Ambos pensavam no que poderia acontecer com o vilarejo. O destino finalmente os alcançou, projetando em seus corações um terror implacável.
Eles precisavam entregar quase toda a colheita para sustentar uma guerra contra o império de Oyashima. Uma guerra contra Nobunaga Oda, o terrível e sanguinário daimiô que odiava os cristãos, os seguidores de Seto. Entregar os alimentos resultaria num destino de fome, e não entregá-los produziria um destino ainda pior: um massacre.
“E agora? Entregar o arroz ou matar os samurais?”, imaginava o garoto.
Sabiam muito bem que qualquer decisão tomada poderia levá-los a um rumo sombrio. Era como encarar a morte inevitável frente a frente. Não havia uma saída e nem mesmo um bom caminho, somente podiam rezar e torcer para um milagre acontecer.
— Kenshin! — gritou novamente o desconhecido.
— Apague a fogueira — ordenou para seu neto, levantando-se e abrindo a porta.
Era um simples camponês do vilarejo, cujo rosto demonstrava medo.
— Sim, eles estão aqui — disse ele, preocupado. — E acabaram de matar o senhor Gourou.
— O quê?! O que ele fez? — perguntou, indignado.
— Tentou confrontar um samurai, e você sabe… Insultá-los é pedir para morrer.
— Malditos…
— Diga-me senhor, você sabe o que fazer?
Kenshin respirou fundo.
— Apenas me siga — ordenou ele, fechando a porta e partindo para o centro do vilarejo.
Ishida permaneceu ali, reflexivo.
“Kenjiro… O que você vai fazer? Você já está sabendo?”
O garoto apagou o fogo com a água de uma vasilha e pensou no que faria a respeito da situação.
“Passar fome ou virar inimigos do rei? Qual é a melhor escolha?”, ponderava ele, observando uma faca improvisada em cima de uma prateleira.
— Ishida! — gritou Kotaro.
Ishida rapidamente pegou a faca e guardou-a por dentro de seu quimono. Logo após, buscou um cachecol cinza no armário para si e então seguiu até a porta, abrindo-a. Ele viu seu amigo assustado, suando e respirando fundo, denunciando que correra até ali. O frio que estava começando devido ao inverno fazia sua respiração exalar vapor pela boca.
— Cara, eles chegaram! — dizia ele. — Os coletores estão aqui e estão completamente armados.
— Calma, vamos dar um jeito. Tenho certeza que o Kenjiro não vai ficar apenas observando.
— Mas o que ele pode fazer?
— Não sei, realmente não sei — respondeu, desviando o olhar.
— Esse rei é um maldito, né? Eu sei que precisamos impedir o Oda, mas a única saída é deixar seu povo morrer de fome?
— Onde está Yumi?
— Cara, vim direto pra sua casa.
— Entendo, então vamos até os samurais, ela deve estar lá — sugeriu, fechando a porta de sua casa.
— Certo, vamos.
Os dois também seguiram até o centro do vilarejo e no caminho encontraram diversas pessoas completamente dominadas por sentimentos negativos. Raiva, medo e tristeza tomaram o ambiente. Naquela situação, pouquíssimos indivíduos conseguiam manter a sanidade.
Os garotos não trocaram uma palavra sequer, incapazes perante o humor exibido pelos habitantes da vila. O som das crianças chorando e suas mães as confortando com grandes mentiras como: “ficará tudo bem” ou “não se preocupe”, intensificava a raiva de Ishida contra os soldados que encontraria. Caminhou todo o trajeto com o punho direito apertado e com a expressão fechada, acumulando ódio.
“Esses malditos!”
Quando finalmente chegaram no centro, viram diversas pessoas assustadas perto de um corpo ensanguentado. Os menores choravam desesperados e seus pais bloqueavam seus olhos com as mãos para que não testemunhassem aquela cena cruel. Alguns até mesmo estavam se retirando do local.
— Santo Deus — exclamou Kotaro, observando o morto e sentindo um enjoo.
Em frente ao corpo encontrava-se um samurai de armadura utilizando um pano para limpar a lâmina de sua katana e no perímetro do lugar estavam diversos ashigarus, os guerreiros que utilizavam os famosos e letais rifles arcabuzes. Dentre eles, os mais perversos e impiedosos do grupo estavam se divertindo com a situação.
Na entrada do vilarejo situavam-se duas grandes carroças, puxadas por dois cavalos cada uma e conduzidas por mais dois samurais, os quais vestiam apenas o quimono e o hakama, sem armadura. Essas carroças seriam provavelmente usadas para levar o arroz.
Em cima de uma delas havia uma misteriosa pessoa encapuzada portando um cajado de madeira. Ela usava um manto azul em tom escuro e era relativamente baixa. Sua altura estava em torno de um metro e cinquenta centímetros.
“Meu avô está ali. O que ele pretende fazer?”, perguntava-se Ishida.
Kenshin dialogava com o soldado que limpava a espada, mas os garotos ainda não conseguiam escutar o que diziam.
— Ei, olha a Yumi ali. — Kotaro apontou o dedo para a garota no meio da multidão. — Vamos até lá?
Yumi observava o morto com uma expressão de medo e apertava as mãos contra seu peito.
— Certo, vamos.
“Quem é o senhor Gourou? Não me lembro dele.”, pensou Ishida.
Ao se aproximarem da garota, Kotaro a cumprimentou. Ela tomou um susto e olhou para os garotos, ainda com medo. — Ah, oi. — Por algum motivo aquela cena sangrenta a chocou mais que o normal, já que não foi a primeira vez que vira algo do tipo.
— Você está bem, Yumi? — perguntou Kotaro, preocupado.
— Sim, sim. — Olhou para Ishida, o qual observava o morto com espanto. — O que foi?
O garoto sentia-se completamente devastado. Suas mãos estavam tremendo
— Ishida? — Kotaro olhou para o corpo e o reconheceu. — Ah… Não pode ser.
Aquela pessoa que se encontrava morta em cima de seu próprio sangue era, infelizmente, o senhor que algum tempo atrás agradeceu Ishida por salvar o vilarejo. O mesmo que sempre carregava uma cesta cheia de verduras em suas costas e caminhava lento, inclinado para frente.
— Ele não merecia isso — afirmou Ishida, mudando sua expressão.
O jovem foi dominado pela raiva, apertando suas mãos e dentes e fechando seus punhos. Sua pele formigava e a força mental que o impedia de tomar alguma atitude violenta se enfraquecia rapidamente.
— Não, não merecia — confirmou Kotaro, assustado.
Ishida se lembrou da cena onde o senhor tocou seu ombro.
— Parabéns, garoto — dizia Gourou, na lembrança. — Fico feliz que temos alguém tão corajoso.
“Eles não têm esse direito! Nós não somos animais!”, pensava Ishida, revoltado.
De repente, o samurai embainhou sua espada e ordenou para seus homens:
— Limpem essa nojeira! Não quero ver este verme na minha frente.
Alguns soldados se aproximaram do defunto e o retiraram, levando-o para longe e criando um rastro de sangue.
“Quem esse merda pensa que é?!”, pensava Ishida.
O samurai prosseguiu:
— Odeio sujar minha lâmina com sangue de ratos. — Olhou para Kenshin. — Será que você me entende?
Kenshin se manteve em silêncio e o samurai continuou:
— Certo, vamos ao que interessa. É… onde está o nosso arroz? — dizia com arrogância. — Se não souber dizer, já aviso que esses meus homens extremamente armados irão matar cada um de vocês, sem dó ou piedade.
As pessoas ficaram aterrorizadas.
— Senhor, por favor, peço que repense sobre isso. — pediu Kenshin, com um olhar sério. — Nós precisamos dessa comida. Como já sabe, o inverno chegou, e como vamos sobreviver sem ela?
— Você está de brincadeira com a minha cara? Você sabe que estamos em guerra?
— Sim, eu sei, mas isso não muda o fato de que precisamos da comida.
O samurai retirou seu elmo e máscara, entregando para um vassalo e então se aproximou de Kenshin, até que ambos ficaram frente a frente, se encarando. O estranho guerreiro superava a altura do líder da vila em torno de trinta centímetros. Tinha um coque típico dos samurais com o centro raspado e sua armadura em tom marrom com detalhes dourados denunciava que ele era alguém importante na hierarquia dos soldados de Ezo, provavelmente um shinpan.
— Você está me pedindo para deixar meus homens sem comida para que vocês possam viver pacificamente? É isso que estou ouvindo?
— Senhor, por favor… — Foi interrompido com um forte tapa em seu rosto, aplicado pelo samurai.
— Onde está o arroz? — perguntou, estressado.
Kenshin respirou fundo e respondeu:
— Koda — ele olhou para o pai de Kotaro — Pode reunir o pessoal e dar o que ele pede?
— Tem certeza?
— Sim.
— Certo, certo — falou Koda, reunindo o pessoal para buscar o que pediam.
— Vão verificar e ajudar eles — ordenou o samurai para os que cuidavam da carroça.
As pessoas ficaram indignadas e sussurraram entre si. Algumas criticavam a escolha de Kenshin. O próprio Ishida, presenciando a terrível situação, se revoltava internamente.
Ao ouvir a decisão de seu avô, ele retrucou:
— É sério isso? Vai deixar esses homens levarem a comida?
— Não se meta, Ishida.
— Vai ser um covarde bem na minha frente?
— Ei! — interrompeu o samurai. — Quem você pensa que é, garoto? Eu estou mandando pegar o arroz e é assim que vai ser. Não tem conversa, e não tem outro caminho. Ele não tem escolha.
Ishida se manteve em silêncio. “Kenjiro, eu quero matar eles! Onde você está?”, pensava ele.
Um homem ao lado da sua família exclamou:
— Mas senhor, eu tenho uma filha pequena. Como pode fazer isso? Olhe bem pra ela — estendeu os braços na direção da filha, mostrando o rosto de tristeza que ela exibia. — Não tem misericórdia?
O samurai se aproximou dele.
— Sabe quantos homens já morreram na guerra contra o maldito do Oda? Tendo seus braços arrancados, pernas e qualquer outro tipo de atrocidade? Sangue pra todo lado, gritos de agonia, pedidos de ajuda. Sabe como é estar no inferno? — Deu um tapa no rosto do pobre homem.
— Papai! — gritou a filha dele, com medo. Logo em seguida, sua mãe a segurou com os braços, bloqueando-a.
— Você acha mesmo que sua filha vale mais para o rei? Seu rato imundo. — Cuspiu no rosto do camponês. — Saia da minha frente se não tiver utilidade.
Um dos samurais que verificou o arroz voltou e relatou a situação:
— Senhor, está tudo certo, vou levar as carroças até o local.
— Pegaram tudo?
— Deixamos uma quantia pequena para eles sobreviverem por alguns dias.
— Peguem tudo.
As pessoas entraram em pânico ao ouvirem tal ordem e Kenshin rapidamente questionou:
— O quê? Mas o trato era deixar um terço da colheita! Foram palavras do próprio rei!
— Você está vendo o rei por aqui? — lançou um leve sorriso. Em seguida, ordenou para seu vassalo: — Vá e mande retirar tudo!
— E a xamã, vamos usá-la agora?
— Não, vamos deixar para o final — respondeu, rindo.
— Certo! — confirmou, levando as carroças e voltando para o reservatório de arroz.
“Xamã? O que eles pensam em fazer?”, refletia Ishida.
— Papai — choramingou a garotinha — Eu não quero morrer de fome.
A mãe dela se ajoelhou e limpou as lágrimas que escorriam de seus olhos.
— Calma filha — pediu a moça — A mamãe e o papai nunca irão deixar isso acontecer. Nós vamos fazer de tudo para arrumar comida, não se preocupe.
— Tá bom — respondeu, abraçando sua mãe.
O samurai riu da situação e falou com desprezo:
— Ai, ai… Como esses ratos são burros.
O pai da menina, em surto com tudo o que acontecia, perdeu a cabeça e berrou como um louco.
— Seu maldito! — vociferou ele, retirando uma adaga de dentro de seu quimono. — Você irá pagar no inferno!
O camponês avançou contra o samurai, enquanto sua mulher gritava tentando impedi-lo.
— Verme insolente.
Quando o homem chegou perto de seu alvo, gritando e chorando desesperado, o samurai desembainhou rapidamente sua espada e decepou-o com um golpe rápido e mortal.
A cabeça da vítima rolou sobre o chão e o restante do corpo caiu duro, sem vida, levantando a poeira do solo. Seu pescoço jorrava uma abundante quantidade de sangue, formando uma poça carmesim ao redor.
— Papai! — A menina em prantos se soltou dos braços de sua mãe, a qual paralisou diante do acontecido. — Eu estou indo!
A pobre criança se ajoelhou diante do corpo de seu pai e implorou:
— Você, você não pode me deixar aqui sozinha! — Dizia ela, derramando lágrimas nas costas do falecido. — A mamãe e eu não podemos ficar sem você! Então por favor, vamos! Levante! Levante papai! Levante!
Alguns soldados riam da cena como se fosse uma piada, demonstrando o quão cruéis eram os homens do rei.
Todos os moradores que presenciaram a tirania do líder entraram em estado de choque. Muitos choraram, outros se sentiram revoltados e alguns até fugiram, mas ninguém ousou retrucar tal ação. Nem mesmo Kenshin, que se enfureceu mas manteve sua postura.
E Ishida já estava completamente perdido no ódio.
“Senhor Deus, me segure porque a minha vontade é de matar todos eles.”
De repente, Azaziel sussurrou em seu pensamento:
— O que está esperando, garoto? Irás fazer algo apenas quando todos estiverem mortos? Vamos! Pare de pensar e use minha ira! Mostre a eles a tua raiva.
Ishida entrou em choque ao escutar tal voz, mas ele respondeu:
— Eu quero matar eles, mas não sei a consequência que virá para nós. Pode ser bem pior que a fome. Se esses malditos fossem embora, seria o melhor.
— Tens medo de perder as pessoas? Elas são importantes para ti?
Ishida se manteve em silêncio e Azaziel riu de uma maneira sombria e lenta.
— Pois bem, farei o que desejas, mas quero que tu mesmo peça minha ajuda.
— Eu não preciso do seu poder, vá embora!
— Tens certeza no que dizes?
— Sim, eu não preciso de você.
— Pois assim será. Eu não te ajudarei e caso te arrependas, terás que implorar em dobro! — Riu diabolicamente. — Boa sorte, garoto.
O samurai, observando a garotinha chorando, zombou:
— Observem o que acontece quando se confronta o rei. Vale a pena morrer por rebeldia? Ele está assim porque quis, e agora sua filha não tem pai. Então, pensem bem antes de me enfrentar ou morrerão em vão.
A mãe da garota criou forças e foi até o falecido marido. Ela tocou em suas costas, chorando e clamou:
— Deus irá te vingar, eu sei, então… vá em paz. Eu cuidarei de nossa filha, nem que isso custe a minha vida. Amém.
— Isso não me assusta, tá bom? — o samurai escarneceu da viúva.
A mulher olhou em seus olhos com raiva e em seguida pegou à sua filha à força, enquanto a menina ainda berrava de tristeza. Elas se retiraram daquele local terrível.
Os homens que foram coletar a comida voltaram com as carroças lotadas de sacos de arroz. Um deles parou para relatar a situação.
— Senhor, está tudo certo. Podemos ir?
— Não, chegou o momento de ver se eles mentem. — Sorriu na direção de Kenshin.
As pessoas engoliram a saliva, temendo algo. As palavras do homem as deixaram mais angustiadas do que já se encontravam, aumentando as suspeitas dos invasores.
— Tragam a xamã aqui — ordenou para seu vassalo.
— Certo! — Fez um sinal para o outro samurai que estava na carroça que, ao avistar a sinalização, ajudou a pessoa encapuzada a descer do cavalo e a levou até seu líder.
“Quem é aquela mulher, e por que todos estão tão tensos?”, pensava Ishida, confuso.
Quando a misteriosa pessoa chegou, o líder a pediu:
— Senhora Mei, poderia verificar se esses ratos não esconderam nada?
As pessoas suaram frio ao escutar tal ordem. Uma pressão se espalhou por todos, tornando o clima pesado e preocupante.
“Ah… não me diga que eles…”
Pule para continuar o capítulo! Limite de palavras atingido!
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