“Caro Ezra,
Sentimos informar que devido a interferência não autorizada, causada às 22:34 do dia 23 de Setembro, sua licença como Anjo da Guarda está sendo revogada por tempo indeterminado.
Uma audiência será promovida a fim de determinar o destino de sua carreira e do mortal cuja interferência se dirige. Data ainda a definir. Aguarde notícias.
Atenciosamente,
O Conselho.”
‘Eu fiz besteira.’ Era a única coisa que Ezra conseguia pensar.
Interferir na vida dos mortais era uma das maiores idiotices que ele poderia fazer e mesmo assim ele foi lá e fez.
Em sua defesa — ou não — não era a primeira vez que acontecia. Seria estranho se fosse, ainda mais andando com um demônio. Em toda a sua vida ele com certeza já havia interferido uma vez ou outra na vida de um mortal, mas nada que o gerasse uma suspensão e de brinde uma audiência com o Conselho.
Se sua opinião ainda valesse de alguma coisa, ele diria que a atitude deles foi um pouco exagerada. Na verdade ele achava toda essa coisa de “Conselho” exagerada. Eram um bando de anjos egocêntricos querendo decidir o que os outros deveriam ou não fazer. E acima de tudo eram os únicos que agiam assim. Demônios, vampiros, lobisomens… nenhum deles tinham um ‘Conselho’ para fingir que mandam em alguma coisa. E eles também não se isolaram do resto do mundo dizendo que eram seres superiores como a maioria dos anjos fizeram.
Ezra não conseguia imaginar quanta papelada ele teria causado para conseguir chamar a atenção deles assim. Ele não sabia o que deveria fazer e Kai o estava vigiando de perto como se ele fosse ter um treco a qualquer momento.
“Eu vou com você,” ele disse quando Ezra o avisou que ia ver como o rapaz estava. “Você não parece estar em condições de ficar sozinho agora.”
‘Que engraçado, Kai! Porque você não pensou nisso quando me deixou sozinho por anos, não é?’ Foi o que Ezra teve vontade de dizer, mas ele só revirou os olhos e soltou um “Tá!”
Então Kai seguiu Ezra até onde o rapaz morava e os dois estavam o observando de um telhado do outro lado da rua. Eles ficaram em silêncio o tempo todo, isso até Kai decidir que já tinha passado tempo demais sem dizer algo estúpido.
“Okay,” o demônio disse se levantando de onde estava e indo na direção do outro. “Já sei o que vai te animar.”
“Não.” Ezra disse e voltou a atenção para o rapaz do outro lado da rua, mas Kai continuou.
“Vamos fazer uma aposta.” Ele estava com aquele sorriso travesso novamente.
“Não vou apostar com você Kai.” Ezra disse, tentando manter a calma. O que era um pouco difícil perto do demônio. “Você sabe o que aconteceu da última vez que você sugeriu isso.”
“Claro que sim. Isso foi tipo, duas horas atrás.” Ele riu. “Por que não aproveita que já está aqui? Você foi expulso mesmo.”
“Suspenso,” o anjo corrigiu. “Eu fui suspenso até eles organizarem uma audiência.”
“Então quando você voltar eu posso ficar com o garoto?” Kai se inclinou para mais perto. “Sabe que não vão deixar você ficar com ele, né?”
“É claro que não pode ficar com ele!” Ezra deu um leve empurrão em Kai e deu alguns passos para o lado a fim de se afastar dele.
O pior de tudo era que Kai estava certo, o Conselho não deixaria Ezra voltar para o rapaz se ele voltasse para seu emprego. E o anjo nem sabia ainda o que sentia por ele. Apesar do que o demônio havia dito, ainda era estranho para ele ‘estar apaixonado’.
Ezra nem gostava tanto assim do emprego dele também. Ele queria ser um Arcanjo — quando era criança achava eles descolados — mas os anjos mais novos dificilmente chegam a esse posto. E com os últimos acontecimentos ele poderia, com certeza, dizer que era impossível que algum dia ainda se tornasse um. E também não é como se ele ainda quisesse. Depois que seu irmão, Samuel, se tornou um Arcanjo, Ezra começou a ver eles de uma forma diferente. Resumindo: Eram um bando de babacas.
Naquele momento, a única opção de Ezra era esperar seu julgamento para saber se iriam o expulsar, perdoar ou o jogar em uma cela — e saber o que iriam fazer com o rapaz.
“Então,” Kai se aproximou mais uma vez. Se descobrissem que ele ainda era amigo de um demônio provavelmente iriam querer queimá-lo no fogo do Inferno. “Já que você não vai estar por perto—”
“Já chega!” O anjo ainda tentava manter a calma, inutilmente.
“Vamos apostar!” o demônio insistiu. “Quem conquistar o garoto primeiro, ganha.”
Ezra tentou interromper, mas Kai continuou a falar enquanto passava o braço ao redor dos ombros do anjo. “Se você ganhar, te deixo em paz por um ano inteiro.”
“O amor é um jogo para você?” Ezra se livra do braço do outro com um tapa.
“Sim,” ele deu de ombros. “Você não tem nada a perder. Quer dizer, se você voltar você vai perder ele de qualquer forma. E se ficar… bem, por que estamos aqui vigiando ele mesmo?”
Ezra revirou os olhos. “Eu estou vigiando ele. Você só está aqui para me tirar do sério.” E então disse mais baixo, “não quero que o Céu faça nada com ele.”
“Mais um motivo para aceitar minha proposta!” Kai o cutucou. “E você vai poder vigiar ele de perto.”
“Por que está fazendo isso?” Ezra se virou para encarar Kai.
“Porque eu estava entediado.” Ele passou o braço sobre os ombros do anjo novamente. “E você sabe que te tirar do sério é meu hobby favorito.”
Diferente de Kai, Ezra não estava entediado. Ele estava ansioso. Seu julgamento poderia ser daqui a um minuto ou um século. Não importava quanto tempo ele tinha, ele não acreditava que seria suficiente para conseguir uma boa defesa. Talvez o melhor que ele pudesse fazer era aproveitar o tempo que ele tinha, já que estava condenado de qualquer forma.
Kai ainda estava o encarando, à espera de uma resposta. Ele sabia que não precisaria de muito para convencer Ezra. Nunca precisou.
“Uma década,” foi o que Ezra disse. Kai o olhou confuso. “Um ano é muito pouco,” ele esclareceu. “Você vai me deixar em paz por uma década.
“Não posso ficar tanto tempo longe do meu melhor amigo!” Kai riu e apertou mais o braço em volta de Ezra.
Ezra pensou que ele não queria realmente dizer aquilo, que era o melhor amigo de Kai. Kai tinha sua própria galera e sumiu por décadas sem dizer nada. Que tipo de ‘melhor amigo’ fazia isso?
“Que tal um ano e meio?” Kai disse.
Ezra permaneceu em silêncio e virou o rosto para o outro lado.
“Dois?”
Silêncio. Ezra olhou para o outro sem virar o rosto e Kai revirou os olhos.
“Que tal a gente fechar em um meio termo? Cinco.” Ele estendeu a mão livre e deu um meio sorriso. “Pegar ou largar.”
“E o que acontece se você ganhar?” Ezra olhou para a mão estendida de Kai e depois em seus olhos.
“Deixo você saber depois.” Ele deu de ombros.
“Suspeito, já que você costuma trapacear.” Mas apertou a mão dele assim mesmo. “Vamos colocar algumas regras nessa aposta, então.”
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