“Por que isso está acontecendo comigo? Aqueles olhos… eles… eles me olharam com medo”, refletia Ishida, seguindo a trilha de terra enquanto a chuva caia fortemente. Caminhava desorientado, afundando seus pés no barro. Sentia raiva e tristeza, enquanto o sangue que escorria de suas mãos se diluía aos poucos na água da chuva.
O garoto não se conformava com o que o destino reservou para o vilarejo. Ao mesmo tempo, se perguntava o porquê de seu mestre não ter aparecido.
“Kenjiro! O que aconteceu com você?”
Tentava ao máximo pensar que existia um bom motivo, mas, no fundo, sua mente sabia que Kenjiro permaneceu na casa, apenas esperando o desenrolar do tormento.
“Não, certamente aconteceu alguma coisa.”
A dúvida era enorme e tão revoltante que seu poder oculto oscilava. Seus olhos escarlates apareciam de repente quando a raiva sobrepujava a tristeza. Pequenas faíscas deixavam sua pele e logo se perdiam em meio à chuva. Sua personalidade mudava conforme seus sentimentos. Com certeza a maldição tinha controle sobre suas ações.
“Aqueles malditos samurais! Eles mataram o Koda! Eles mataram pessoas inocentes como se fossem nada!”
Ele chegou no fim da trilha e adentrou a mata, caminhando sem prestar atenção nas armadilhas. Não demorou muito e foi pego por uma, pisando em um gatilho escondido nas folhagens, ativando o sistema de contra-peso e sendo puxado pela corda.
“Mas que droga!”
Lembrando-se da faca que pegara em sua casa e utilizando a força de seu abdômen, cortou facilmente a corda, libertando-se e caindo entre as folhas em meio ao barro. O treino de Akane foi bem aproveitado.
Coberto de lama, continuou seu caminho até a casa de seu mestre, o qual afiava sua bela espada, sentado no banco de madeira em frente à residência. O som agudo e metálico decorrente da ação da pedra de amolar se destacava em meio à intensa chuva.
“Garoto…”
Ele sabia da terrível situação e também que Ishida viria furioso. Sabia que alguém teria que parar aquela ira descontrolada.
“Se eu tiver que matá-lo, que assim seja.”
Na casa, Akane encontrava-se sentada perto da mesa, encostada em uma das paredes. Ela estava pensativa enquanto segurava uma garrafa de saquê em uma das mãos. Gostava do garoto, mas Kenjiro sempre esteve acima de tudo em suas prioridades. Se Ishida tivesse que morrer ali, ela não faria nada para impedir.
Harumi permanecia sentada e rezando com os cotovelos apoiados sobre a mesa. Pedia desesperada para o grande senhor dos céus impedir a possível batalha e implorava que sangue não fosse derramado por nenhuma lâmina. Era uma garota muito bondosa e gentil. Não conseguiria presenciar a morte de seu novo amigo pelas mãos da pessoa que mais admirava e permanecer em paz. Se a situação chegasse a um nível crítico, ela certamente não iria apenas assistir.
— Desista, infelizmente o garoto já está morto. — Afirmou Akane, dando um gole em seu saquê. — O chefe é muito forte para alguém como ele.
A jovem continuou orando, mas de repente percebeu o cessar do som metálico e rapidamente foi até a porta para observar o que acontecia.
Ishida encontrava-se relativamente distante da casa, parado na chuva e com a cabeça baixa. As faíscas ainda deixavam seu corpo, mas em pouca quantidade, denunciando que a maioria de seu ódio estava contido. Ele ainda segurava a faca em uma das mãos. Não era possível ver com clareza sua expressão devido à franja do cabelo encharcado que balançava em um ritmo intenso, consequência da forte ventania.
Kenjiro se levantou e guardou a espada na bainha presa em sua cintura. Ele observava o menino com seriedade e seus olhos demonstravam determinação para fazer o que fosse necessário.
— Não saia daqui — ordenou ele, sem ao menos desviar o olhar.
— Por que vocês precisam fazer isso? Não faz sentido! — perguntava Harumi, preocupada com o desfecho da luta.
— Não precisa haver um bom motivo para homens lutarem. — Deixou a varanda da casa, adentrando a forte chuva. — Ele tem suas ideias e eu tenho as minhas.
Kenjiro caminhou e se posicionou, afastado por alguns metros do garoto.
— Tem algo a dizer, fracote?
O vento soprava terrivelmente naquele momento devido à tempestade, fazendo as roupas se debaterem em um ritmo agressivo. Alguns raios eram lançados do céu e fortes trovões ecoavam, causando uma sensação de que até mesmo os deuses assistiam à batalha.
— Diga, qual é o motivo de estar aqui? — perguntou Ishida, calmamente. — O motivo de não ter feito nada. Você é forte, poderia ter salvado todos eles.
— Por que eu deveria ajudar quem um dia recusou minha ajuda?
As palavras de Kenjiro lembraram as mesmas de Azaziel e Ishida apertou seu punho esquerdo, sentindo raiva delas.
— Até você foi um covarde? — Levantou a cabeça, exibindo seus olhos vermelhos como sangue.
— No meu entendimento, covardes são fracassados que culpam os outros por suas falhas. — Apertou a boca da bainha e com a outra mão segurou a empunhadura da espada. — Como você está fazendo agora... Espero que eu não tenha que te enterrar hoje.
— Eu te admirava, Kenjiro. Pensei que fosse um homem de atitude.
— As pessoas que devo proteger já estão aqui comigo. Não sou protetor de mais ninguém.
— Kenjiro… — disse Harumi, surpresa com as afirmações do homem.
Ishida sorriu, debochando de seu adversário. Em seguida, revelou seu braço direito, fazendo as chamas consumirem o membro e a arma, que se tornou completamente negra, exalando faíscas escuras.
O garoto estava sendo influenciado pela maldição, esquecendo os sentimentos pelas pessoas. A raiva que o consumiu apenas queria destruir tudo e derramar o sangue daqueles que julgava serem covardes.
De repente, Ishida disparou em alta velocidade na direção de seu adversário, que instintivamente desembainhou a espada. Os dois então se atacaram, aparando as lâminas um do outro. O som de metal se chocando se espalhou por todos os lados e Harumi se assustou com o grande impacto.
Durante a colisão, a faca do garoto percorreu todo o metal da espada de Kenjiro, sendo repelida na ponta. A postura de Ishida então foi quebrada, suas mãos jogadas para o alto e seu corpo arremessado, saindo até mesmo alguns centímetros do chão. Ele passou sua perna direita para trás e quando seus pés tocaram a superfície, deslizou por mais de um metro, deixando um rastro na terra molhada.
“A faca dele tá mais poderosa. Deveria ter quebrado.”
Kenjiro não perdeu tempo e logo partiu na direção do garoto desferindo golpes rápidos e precisos com apenas uma mão, mas todos foram bloqueados e alguns desviados.
“Onde ele aprendeu a lutar?”
Como Ishida portava uma arma tão curta, com lâmina em torno de vinte centímetros, ele buscava sempre desviar e bloquear os ataques adversários, apenas desferindo golpes rápidos e esperando uma brecha para um corte crítico. O que mais impressionava era a velocidade de seus reflexos e flexibilidade nos movimentos. Se possuísse duas armas, daria mais trabalho para o homem.
Após diversos golpes malsucedidos, Kenjiro tentou um poderoso ataque frontal, o qual Ishida bloqueou, segurando o dorso da faca com a outra mão para dar conta do ataque e não ser desarmado.
O garoto não tinha capacidade para sustentar a força de seu adversário. Quando suas pernas começaram a ceder, ele foi obrigado a flexionar os joelhos e perder altura. Percebendo que seria esmagado, o jovem usou todo seu ódio para alimentar as chamas negras, gritando ferozmente e se fortalecendo. Seu corpo treinado já conseguia sustentar por mais tempo a pressão causada pela maldição.
Com seu poder momentaneamente amplificado, Ishida repeliu a lâmina de Kenjiro, surpreendendo-o. Em seguida, o garoto aproveitou a brecha para saltar e desferiu um forte chute giratório no flanco direito de seu agressor, empurrando-o para longe com a potência do golpe. O ronin precisou cravar sua katana no solo para estabilizar sua postura.
Enquanto tirava a espada do chão e se restabelecia, Kenjiro notou Ishida se aproximando em alta velocidade. O jovem percebeu que a iniciativa agora era sua e posicionou a lâmina para matar, impedindo que seu oponente conseguisse uma pausa suficiente para dominar o combate de novo.
O mestre rapidamente retirou sua espada do solo e defendeu o primeiro ataque que visava seu pescoço. Ishida continuava a cortar de diversos ângulos com intenção homicida, sempre intencionando atingir os órgãos vitais de Kenjiro. Experiente, seu professor defendeu todos os ataques e contra-atacou com um corte na altura das pernas do jovem, que sorriu diabolicamente ao encontrar a abertura que tanto procurava. Ele saltou como um tigre com o intuito de perfurar o rosto do professor, projetando todo o corpo para que sua massa inteira contribuísse com a força do ataque, confiante de que terminaria tudo naquele momento.
Kenjiro, porém, conseguiu desviar a cabeça no último segundo com um movimento lateral. Sua bochecha foi cortada, mas Ishida estava completamente exposto. O ronin pegou o pulso do garoto em pleno ar e arremessou-o contra o chão. Com a queda, o jovem soltou a faca, mas conseguiu reagir a tempo de rolar para o lado, evitando um novo ataque perfurante do mestre contra seu peito. Enquanto seu agressor retirava novamente a espada do solo devido ao golpe frustrado, o jovem se levantou acrobaticamente e recuperou a arma perdida.
“Pensei que ele não sabia lutar”, pensava Kenjiro.
Infelizmente para Ishida, a oportunidade de iniciativa se esgotara. Eles começaram novamente uma sequência de ataques leves, bloqueios e desvios. O jovem era flexível e atacava em uma variedade de direções, mas Kenjiro se aproveitava de sua experiência e do alcance de sua katana para manter uma defesa implacável.
“Você se importa com ele. Até agora não deu tudo de si”, pensava Harumi, assistindo a luta atentamente.
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