No dia seguinte, ao amanhecer, Ishida acordou e percebeu que estava sendo abraçado por Skoll. Ele babava em seu cabelo com a língua para fora e uma de suas patas se encontrava em cima das costelas do garoto.
O ronco de Akane era o único barulho na casa e pela claridade do cômodo adjacente, deveriam ser aproximadamente sete horas da manhã. O fato das janelas estarem abertas indicava que alguém já havia acordado. Ishida não podia confirmar, pois o lobo o impedia com seu peso.
“A batalha… Pensei que Kenjiro fosse me matar.”
Todo o corpo do garoto estava com roupas novas e coberto de bandagens devido aos ferimentos causados na luta, até mesmo em seu rosto.
Ele ficou pensando no porquê de ainda estar vivo e como a maldição havia alterado seus pensamentos. Queria saber o motivo pelo qual seu mestre não o matou ou abandonou.
“Que bicho folgado”, pensou ao abandonar seus devaneios e tentar se levantar.
Com seu cotovelo, Ishida tentou empurrar Skoll duas vezes, mas ele nem sequer demonstrou reação.
“Droga, o que faço agora?”
— Ei, acorda aí, vai. — Ele cutucou o animal sem receber nenhuma resposta.
“Tem um sono profundo. Que estranho.”
Após um tempo, Skoll finalmente despertou. Mas o lobo não se levantou imediatamente, apenas se virou para o lado oposto, deixando um rastro de saliva que ia desde o cabelo do garoto até sua boca no processo.
Ishida se sentou sobre a esteira e tocou seu cabelo, percebendo bandagens presas em algumas mechas.
— Ah… que merda. Agora preciso de um banho. — Enojado, ele contemplava a baba do lobo em sua mão, escorrendo e pingando devagar.
Ishida observou Akane dormindo enquanto tentava limpar a saliva em sua roupa.
“Ela é mesmo uma mulher?”
A moça dormia em uma posição esquisita. Estava virada para cima, com um braço e uma perna por cima de Hati, como se o animal fosse um grande travesseiro. Depois que seu olhar percorreu todo seu campo de visão, concluiu que Kenjiro e Harumi não estavam no aposento.
“Nem o Kenjiro tá aqui.”
O garoto se levantou e sentiu muita dor por todo seu corpo.
“Aquele golpe foi muito poderoso”, pensava, ao lembrar da técnica de Kenjiro.
Ignorando a dor, seguiu até o cômodo onde aconteciam as refeições. Nenhum sinal dos outros habitantes da casa, mas alegrou-se ao perceber que Harumi deixou alguns bolinhos de arroz em cima da mesa.
Ishida se sentou e pegou um. Enquanto se alimentava, Akane parecia estar despertando.
“Finalmente.”
A moça se espreguiçou e sentou sobre a esteira.
— Que horas é agora? — perguntou ela, esfregando os olhos.
— Não sei.
— Já deve ser hora do seu treino. — Colocou a mão na cabeça, demonstrando estar com dor. Era provavelmente consequência de uma bebedeira na noite passada.
— Aham.
— Que dor desgraçada. — reclamou, fechando um dos olhos.
Ishida continuou comendo seu bolinho, sem dizer nada.
— Certo, vamos lá. — Deu um tapa nos lobos preguiçosos. — Isso é hora de dormir, seus folgados?
“Mas você também tava dormindo.”
Skoll e Hati se levantaram e se espreguiçaram.
— Onde a Harumi está? — perguntou Akane, levantando-se.
— Não sei. Acordei agora pouco.
Ela observou bem o garoto e perguntou:
— Credo, por que tá desse jeito? Todo melado. Que nojeira.
— Seu amigo aí tava babando enquanto eu dormia. — disse, fazendo um gesto com a cabeça na direção de Skoll.
Akane riu e se sentou na mesa em seguida.
— Por que não foi tomar um banho primeiro? — Pegou um bolinho.
— Tava com fome.
— Você é bem estranho, hein.
— Olha quem fala.
Harumi entrou na casa.
— Bom dia! — disse ela, alegre.
Ishida e Akane responderam a jovem.
— Meu Deus — prosseguiu. — O que aconteceu com o seu cabelo?
Ishida olhou para Skoll, que estava se coçando e fingindo que nada tinha a ver com o assunto.
— Esse Skoll. — Riu docemente.
— Onde estava? — perguntou Akane, mastigando seu bolinho.
— Lavando roupa no rio. — Seguiu em direção a mesa.
— Cadê o Kenjiro? — A ruiva indagou novamente.
— Foi caçar — respondeu, sentando-se ao lado do garoto e pegando um bolinho de arroz. — Como está se sentindo? — Olhou para Ishida.
— Bem.
— Está sentindo dor?
— Nada de mais. E bom, obrigado por me curar.
— Akane também me ajudou na hora. Foi complicado fechar suas feridas. Mesmo Kenjiro pegando leve, aquela técnica é muito poderosa.
— É… — disse Akane, enquanto mastigava — O chefe mandou logo uma técnica fantasma.
“Técnica fantasma. Como será que funciona isso?”
Após se alimentarem, Ishida e Akane foram para fora da casa. O clima estava mudado. Mais úmido, sombrio e um pouco mais frio.
— Quanto tempo apaguei?
— Uma semana inteira, que nem um bostão.
“Foi a mesma coisa contra a youkai.”
— Primeiro a gente vai dar uma passadinha lá no rio pra você tomar um banho. Você tá fedido e todo cagado. Precisa lavar essa carcaça.
— Certo.
— Está pronto?
— Sim.
— Então vamos para o lago dourado.
Eles começaram a caminhar em direção ao lugar que havia na região de Fukumai, onde se encontrava a vila. Era um lago extremamente grande e conhecido devido à lenda da carpa dourada.
Ishida caminhava quieto, observando as árvores em seu lado esquerdo para evitar os olhares de sua mestra.
— O que foi garoto? Você não é de falar, mas me parece estranho hoje. Desembucha.
— Por que Kenjiro não me matou? — perguntou ele após alguns segundos, agora olhando para frente.
— Kenjiro tem uma longa história… — informou ela, aliviando a maneira de falar, mostrando que o assunto era muito importante. — O que posso te contar agora é que ele já passou por algo parecido com o que aconteceu com você. Quando criança ele perdeu seus pais devido ao estado corrupto do reino. Cresceu ao lado de seu irmão mais velho. Tinha que roubar e fazer trabalhos sujos para poder sobreviver. Ele não gostava disso, mas temia a morte. Um certo dia quando ele e seu irmão faziam um grande trabalho para uma trupe de ladrões, eles foram pegos pelo fantasma de Ezo, na época em que ele se tornou rei. Eles batalharam, mas o homem era muito poderoso. Mesmo sendo fortes, Kenjiro e seu irmão não chegaram aos pés dele, sendo derrotados em pouco tempo.
— Mas por que essa história se parece com a minha?
— Ao serem derrotados, o rei poderia ter matado eles, pois era um justiceiro. Mas por algum motivo ele viu bondade naqueles moleques. Viu que eles ainda tinham esperança. Ele até convidou os dois para fazerem parte da guarda de Ezo. Kenjiro aceitou, mas seu irmão não. Seu irmão já tinha muita raiva de todos na capital, pois seus pais foram mortos por soldados. Ele dizia para Kenjiro que ele nunca deveria acreditar em ninguém além do próprio irmão.
— O que aconteceu com ele? — perguntou, olhando para sua mestra.
— Eles se separaram. Kenjiro nunca mais ouviu falar dele.
— Entendo.
— Kenjiro ganhou uma nova chance na vida. — Olhou nos olhos do garoto. — E agora ele também te deu uma. Espero que honre seu mestre e nunca mais utilize aquele poder. Entendeu, idiota?
— Sim. — Ergueu a cabeça e fixou seu olhar no horizonte. — Pode deixar.
Os dois continuaram caminhando até chegarem em uma das beiradas do lago, que era tão grande que não dava pra ver o outro lado. Uma imensidão de água cuja fonte era uma imensa cachoeira a quilômetros de distância ligada ao famoso rio de Ezo, o rio Mizukane.
Havia uma pequena ilha em meio ao lago que continha uma casa antiga de madeira, toda consumida pelo musgo e desgastada pela chuva. Ao redor, algumas poucas árvores e arbustos cresciam. Difícil imaginar alguém morando ali.
Eles se aproximaram da água e Ishida se agachou, colocando uma das mãos na água para verificar a temperatura.
“Fria, mas não congelada.”
— Ué, tava com medo da água estar muito fria? — perguntou Akane, tirando sarro do garoto.
— Apenas verificando.
Ishida retirou os braços do quimono e revelou a parte superior de seu corpo cheia de bandagens e começou a removê-las. Enquanto isso, Akane começava a tirar seu chapéu e também a espada em suas costas.
“Ela também irá se banhar?”
Quando Akane finalmente começou a tirar o hakama, Ishida pôde ver gradualmente o belo corpo que ela tinha. Sua pele era lisa e levemente mais escura que o tom de pele claro encontrado em Ezo. O corpo era imaculado, sem marcas ou cicatrizes, algo incrível para uma guerreira como ela. Os músculos dos braços e ombros eram bem definidos e compactos, frutos de seu treinamento e capacidade como lutadora. As mãos provavelmente eram seu aspecto menos feminino, calejadas por brandir uma espada tão pesada por tanto tempo.
Depois que ela retirou as bandagens que cobriam seu torso, o garoto visualizou seus seios redondos e firmes. A barriga era como uma chapa, revelando um pouco das costelas. Sua cintura era bem fina, em contraste com os quadris bem largos e as coxas grandes e musculosas, dando-lhe uma silhueta com formato de ampulheta. Era uma mulher muito sensual e sua expressão brincalhona, despreocupada e ameaçadora amplificava seu magnetismo.
“Como seu corpo é lindo.”
Os cabelos balançando contra o vento tornavam a visão do jovem algo magnífico. Ishida não costumava deixar seus instintos masculinos tomarem conta de seu comportamento em relação a outras mulheres, mas mesmo assim estava numa situação inédita em sua vida. Não sabia muito bem o que dizer.
— Você não se sente estranha ficando nua na minha frente?
— Por acaso tem medo de mulheres? — respondeu ela, sorrindo e entrando na água.
— …Não. — Ele também removeu as faixas de seu corpo e notou novas cicatrizes, resultantes da batalha com Kenjiro.
“Pensei que teria mais. A cura da Harumi é bem eficiente.”
O jovem soltou a faixa de seu quimono e o retirou, ficando completamente nu e entrando na água. Enquanto se limpava, Akane sumia por alguns minutos nas profundidades do lago e depois voltava balançando seu cabelo para tirar o excesso de água. Com o sol iluminando a cena, sua beleza era ainda mais exaltada, pois seus cabelos vermelhos e olhos verdes brilhavam com a luz matinal. Realmente era uma mulher espetacular.
— Qual será o meu treino hoje? — Ishida perguntou enquanto lavava sua roupa.
— Isso que estou fazendo. Você deve aprender a nadar e prender a respiração.
— Apenas isso?
— Tenho mais alguns para fazer enquanto tá treinando isso.
— Entendi.
Ishida saiu da água e pendurou sua roupa na árvore, então voltou para iniciar seu treino.
— Sabe nadar?
— Um pouco.
— Certo. Primeiro veremos quanto tempo aguenta em baixo da água.
— Tá bom.
Ishida mergulhou, mas não durou um minuto, voltando para superfície com a respiração ofegante.
— Caramba — gargalhou Akane — Você tá uma merda guri.
— É.
— Vamos ter que melhorar isso aí.
— Quanto tempo você aguenta?
— Já fiquei quase dez minutos. Mas vou exigir de você apenas três.
— Entendi… Bom, e quando você treinou com o Kenjiro?
— Ah… faz tempo. Eu tinha uns dezesseis anos.
— Tá com quantos?
— Acho que vinte.
— Quatro anos que se conheceram.
— É, deve ser por aí.
— Por que o segue?
— Kenjiro me tirou de uma situação ruim. Me deu um lar e comida. Me mostrou um caminho digno de seguir. No começo estive apenas o servindo para pagar minha dívida, mas depois de um tempo virou algo natural. É como se nós fossemos uma família.
— Você não tem pais?
— Eles morreram na guerra civil. Meu vilarejo foi massacrado por ladrões.
— Entendo… Você nasceu na era de sangue.
— Sim. Foi uma época macabra. Você teve sorte de nascer depois que o fantasma pacificou Ezo.
— Não sei se tive sorte, pois tempos sombrios nos aguardam.
— É melhor nem pensar muito nisso, garoto. Vai te deixar louco. Foque no seu treino, apenas isso.
— Certo.
Ishida continuou seu treino com Akane por mais um mês. Nesse tempo, treinou natação e fez alguns exercícios diferentes que sua mestra havia separado. Consistiam em aplicar golpes com as pontas dos dedos na areia e esvaziar barris desferindo tapas na água que havia neles. Com o passar dos dias a neve começou a cair, espalhando-se lentamente por toda a Ezo e dificultando o treino, obrigando-o a se esforçar para completar o teste antes que o inverno realmente chegasse em seu auge.
Algo a se destacar é que o corpo do garoto se desenvolveu bastante. Ishida apresentava músculos mais definidos e já não era aquele garoto magro de antes. Seu cabelo estava maior e sua franja partida no meio estava passando dos olhos, com mais volume, definição e até mesmo apresentando uma ligeira ondulação nos fios. O rapaz estava mais bonito.
Eventualmente, Ishida conseguiu cumprir a meta estipulada por sua mestra. No dia em que foi bem-sucedido, ele se retirou do lago. Colocou sua roupa para ir até à casa de Kenjiro e avisar Akane que havia conseguido.
Enquanto enfaixava seu braço esquerdo, ouviu de repente um sino tocando bem próximo e, ao olhar ao redor, não viu nada que podesse gerar aquele som. Não tinha mais ninguém ali. Ao observar a casa localizada no meio do lago, pensou que poderia ser daquele lugar, mas era muito longe para o som de um sino tão comum chegar ali, na beirada do lago.
“O que está acontecendo?”
Após algum tempo, Ishida teve a impressão de estar sendo observado. Olhou para a mata que cercava o caminho de volta para a casa de Kenjiro e não distinguiu nada de incomum. O som do sino ainda ecoava, embora a intensidade tivesse diminuído.
— Akane? — perguntou, tentando descobrir quem era.
Como ninguém respondeu, fechou seus punhos e se preparou para algo ruim.
“Por que estou com uma sensação ruim?”
Pela sua surpresa, quem saiu da floresta foi Yumi. Simultaneamente, o barulho estranho sumiu.
— Finalmente te encontrei — disse a garota.
— Yumi? — Ishida se desarmou completamente. Não esperava ver Yumi naquele local. Não sabia nem se ela ainda o considerava como amigo depois do que aconteceu. — O… o que faz aqui?
— Queria conversar com você. Faz tempo que não nos vemos.
— É, faz mesmo…
Quando Yumi se deu conta de que Ishida ainda não havia colocado os braços no quimono, mostrando todo seu abdômen, ela sentiu um pouco de vergonha pois se sentia atraída por ele e agora o rapaz estava mais belo. Ficou sem graça e com a bochecha um pouco avermelhada.
— É… o treino tá indo muito bem, aparentemente.
— Ah… — Olhou para si. — Me desculpe.
O garoto colocou os braços no quimono e o apertou com a faixa. Tinha várias coisas para perguntar e ao mesmo tempo não conseguia pensar em nada.
— Podemos conversar? — A moça quebrou seus devaneios.
— Sim… Mas como você tá?
— Bom, estou bem.
— E Kotaro?
— O Kotaro… Não falei mais com ele depois daquilo. Ele nem sequer me atende quando vou na casa dele.
— Entendo — disse o garoto, desviando o olhar.
— O vilarejo também está bem quieto. Não se vê um rosto com ânimo. Está complicado de ficar lá.
— E o meu avô? É… sabe algo dele?
— Ele não tá saindo muito de casa.
— Entendi.
— Vamos conversar lá na beira? — apontou para o lago.
— Vamos.
Eles então começaram a caminhar até o lago.
“Estranho, o barulho do sino sumiu.”
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