Não tinha mais de três dias que Niu esteve naquele estabelecimento ilegal, agora a imagem dos destroços queimados formando quase um monte de poeira enchia sua visão. Sua primeira e única preocupação foi saber onde estavam as crianças. Não havia sinal de ninguém, e nem um ser vivo em Má soube falar o que aconteceu ali. Niu não queria perguntar muito para não se comprometer. O administrador até tinha pensado em um primeiro momento que aquilo tinha sido feito por alguma pessoa com síndrome de herói, mas se era isso, onde estavam os que deveriam ser salvos?
Apertou suas mãos juntas, trincando os dentes. Depois de tudo que já viu e viveu, era impossível não pensar que abaixo daqueles escombros queimados, era onde estavam aqueles com quem seu coração se preocupava. Ele demorou demais para agir desta vez, agora, não tinha mais nada para ser feito.
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Na manhã seguinte, aquele homem realmente veio. Dez minutos adiantado, com dois copos de café na mão, um estava vazio e o outro frio.
A cara de choque de Niu ainda estava ali, pelo fato da porta de seu escritório estar aberta. Erroneamente, Nerlim interpretou que o espanto era por vê-lo, ficando decepcionado em seu coração, pensando:
"Será que pareço tanto assim alguém sem confiança?"
Bem, um de seus filhos tinha ido para longe, o outro achava que era melhor esconder seus problemas, e seu único amigo o achava entediante. Seu rosto se abateu em depressão.
O escritório da casa dos mercenários ficava no segundo andar, havia uma mesa de madeira escura de frente para a porta, uma janela ampla dava lugar a parede que ficaria atrás da mesa. Algumas estantes estavam dispostas do lado esquerdo da entrada, onde também tinha uma porta escura. No lado direito, onde antes tinha outros objetos e estantes, agora tinha uma mesa pequena e, em sua humildade, o fundador de Má estava sentado lá. Niu não era decoroso, nem sequer passou pela sua cabeça mandar aquele homem tomar seu lugar na mesa principal. Não é que Niu não respeitasse "autoridades"( bom, ele não respeitava mesmo) o fato era que ele era a maior autoridade na casa dos mercenários. Humildade não fazia parte de sua personalidade, não seria agora que faria.
Pensando ter entendido alguma coisa, Nerlim falou:
— Não se preocupe com a mesa, não me importo em ficar aqui.
— Não estou preocupado.
Niu ainda estava tomando uma decisão, poderia montar um plano para fazer aquele homem sair por pura pressão, ou o levar a sério. Resolveu dar a ele um pouco de trabalho, toda a parte que Niu odiava e lhe dava sono, não porque o administrador planejava ser ruim, o fato era que ele não tinha tempo para perder com isso.
O dia passou rapidamente, Niu não ficou tanto tempo no escritório. Nas muitas vezes que teve de sair, deixou seu mais novo colega para trás. No final da tarde, quando voltou, Nerlim já havia ido embora. Os documentos de missões que tinham sido passados para ele organizar, estavam corretamente arrumados na mesa de Niu.
Pensou que talvez o fundador de Má não seria problemático. No entanto, no segundo dia, já haviam passado duas horas, e nem um fio de cabelo daquele homem foi visto na casa dos mercenários.
Enquanto Niu verificava alguns papéis, Yuri empacotava documentos que estavam na estante. Havia caixas pretas em um canto. Quando a estante ficou vazia, Niu se aproximou. Ele ajudou Yuri a colocar as caixas de documento para o lado, e trouxe as pretas para perto. Quando estava abrindo a caixa preta, alguém bateu na porta e entrou.
— Eu lamento muito por hoje. — Nerlim estranhou não ver o homem na mesa, olhou para o lado e viu ele agachado. Não esperava ver Yuri ali também.
Niu apenas voltou sua atenção para o que estava fazendo, como se nada tivesse acontecido.
Aquele homem era realmente difícil, Nerlim não ganhou nem a chance de explicar. Mas mesmo que Niu não quisesse ouvir, falaria mesmo assim. Nerlim se voltou para Yuri:
— Cairo me pediu para ir vê-lo, parece que alguém tem uma missão para você. — Nerlim estendeu a mão com uma ata na direção do garoto, vendo que ele não se moveu, foi mais claro. — Pegue o papel, Yuri.
— Não chame ele pelo nome aqui. — Niu pegou o papel e se levantou.
— O som dessa sala não pode ser escutado lá fora, ninguém vai ouvir. — Nerlim se defendeu, achando a repreensão injusta.
— Não o chame pelo nome aqui.
Tão difícil, Nerlim pensou.
Niu foi até a mesa, e sentou para verificar sobre o que se tratava a missão: assasinato. Como era esperado, aquele que mandou a missão não se identificou. Tudo que deveria ser feito, o momento que deveria ser feito, até mesmo a forma que tudo deveria ficar, estava especificado, como um roteiro de uma peça a ser seguido. Aquela missão era algo pessoal, mas para quem?
O administrador olhou de relance para Yuri, desde o momento que Gane, uma deumiana* que trabalhava para o governador Malri, o trouxe até ali, Niu cuidou dele como se fosse um protegido. No entanto, sabia muito pouco sobre a condição desse garoto (ele também não falava muito), talvez sua situação fosse mais complicada do que poderia imaginar. E ainda por cima, Yuri era alguém que estava com o fundador de Má e esse tal de Cairo.
Niu não era alguém sem estudos, antes de ser um ninguém, vivia enfurnado nos livros. O nome Cairo não era estranho para ele.
— Seu amigo tem um nome peculiar — Niu levantou os olhos na direção de Nerlim. — Dúvido muito que não conheça, Cairo Omagaro, uma figura histórica do Segundo Mundo, o primeiro mago, que foi dado a missão de livrar o mundo da perdição, mas que foi consumido pela mesma, e depois de matar todos os monges Omagaros, foi punido pelos deuses. Uma história que buscava explicar porque coisas ruins acontecem, ouvi muito quando criança, e sempre pensei que essa era só mais uma forma das pessoas tirarem delas as responsabilidades por suas ações.
— Sim, é um nome marcante. Sobre essa missão — Nerlim desconversou — não precisa ser analisada. Mesmo que, como administrador, não concorde, Cairo ainda passará essa tarefa para Yuri. A única diferença é que por aqui ele receberá pela missão.
Niu cruzou os braços, jogando o corpo para trás na cadeira. Cada músculo de seu rosto contorcido em irritação, ele respirou profundamente. Nerlim quase quis recuar e falar "Faça como quiser", mas se fizesse isso teria que lidar com Cairo, honestamente, não sabia o que era pior.
O administrador controlou seu temperamento, isso já o havia colocado em muitos problemas, e não precisava de mais disso agora. Ele pegou uma caneta e um formulário. Passou segundos escrevendo algumas coisas, quando chegou no valor da missão parou por um momento, Yuri era um novato, mas essa missão não era fácil, Niu também não estava nem aí para ser justo, meteu a caneta sem piedade.
Nerlim havia se aproximado, observando o trabalho do outro. Deu de ombros quando viu o valor, não era justo, mas Nerlim sabia todas as coisas pelas quais a pessoa que mandou a missão fez Yuri passar, então, no final, era pouco.
Os dois perceberam algo juntos:
— Ele ainda não tem um pseudónimo…
Eles se olharam brevemente, desviando rapidamente.
— Você já pensou em um nome? — Niu perguntou na direção do garoto.
O jovem mercenário balançou, negando.
— Não precisa ser criativo. — Nerlim tentou instigá-lo.
— Como se ele pudesse ser criativo. — Niu comentou, em seguida abaixou a cabeça para escrever algo.
Nerlim se aproximou mais uma vez, quando viu o que estava escrito, deixou uma risada escapar.
— Imagino que é impossível para você também, quase como se fossem pai e filho.
O administrador puxou a folha, escondendo dos olhos do outro.
— Qualquer coisa serve.
Diferente do que Nerlim imaginou, Niu não parecia bravo de verdade. Isso o deixou tranquilo para agir como quisesse, e não como se tivesse a todo momento pisando em espinhos.
— E se colocarmos um "sobrenome"?
Nerlim esticou a mão para pegar a folha, Niu não foi relutante e deixou. Ele apoiou o papel na mesa, Niu observou ele escrevendo ao lado de "O mercenário" a palavra " morte".
O mercenário morte, foi assim que ficou, sem graça e sem significado por trás. A criatividade nem sequer arriscou tentar bater na porta.
Yuri só observava no chão, de fato, para ele, qualquer coisa serviria. No entanto, era estranho ver duas pessoas conversando sobre ele, decidindo para ele, sem estarem com uma expressão ruim no rosto.
— Leia aqui — Nerlim levantou a folha para mostrar para o garoto. Ele se aproximou para ver as letras, quase tocando o rosto na folha. — E então, Yuri?
Qualquer coisa serviria, mas naquele momento, não era isso que ele queria responder.
— Está bom. — Foi o que acabou saindo da boca do menino.
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