As paredes em vitrais refletiam com suavidade suas cores pelo salão da Torre. A cúpula cristalina cedia passagem para a claridade opaca da manhã nublada.
Na Torre da Ilha de Merthrell — lar dos clérigos de Valkor em Dal-Lanier, um retiro espiritual para aqueles que dedicavam suas vidas a cultuar o Deus Soberano dos Caminhos — Vance disfarçava o quão deslocado se sentia na assembleia, sentado à longa mesa, com os demais monarcas.
Após décadas, desde que a mais extremista guerra fora vencida, eles continuavam tentando propiciar um maior controle às ameaças ao continente. Temiam que a barbárie se erguesse e que abrisse as portas para o pesadelo regado a sangue, como nos Anos da Fúria.
Os protestos cresciam por todos os reinos de Renlohk, acalorados por manifestações da classe de Revolucionários. Por mais que os insurgentes se mostrassem contidos e que a devida punição recaísse sobre os que ousavam contrariar a ordem, uma futura revolta emergia entre as preocupações dos governantes.
— Abriremos precedentes para que a magia ganhe status desenfreados — Rammir, com seus olhos pequenos e apertados e a pele rosada, debruçava-se sobre a mesa. Um pouco de suor cobria sua cabeça lustrosa, sem um fio de cabelos sequer. — Essa concessão foge a tudo que construímos durante anos.
Desde o final da guerra contra os Dragões Dourados, uma medida ditou que livros, pergaminhos, objetos e poções — tudo que equivalesse ao místico —, fossem mantidos sob a proteção dos Sacerdotes dos Deuses. Os estudos da magia ficaram, assim, restringidos àqueles com aptidão dentro das famílias reais e seus descendentes. Não houve comoção do povo que, oprimido pelos Anos da Fúria, empenhou seus esforços na reconstrução dos reinos.
Em meio à nova estabilidade do mundo reconstruído, os questionamentos que outrora não despertaram interesse, brotavam e se espalhavam tal como ervas-daninhas.
— Seremos ignorantes se nos julgarmos seguros por existir uma lei que restringe o aprendizado da magia em Renlohk. — O homem de cabelos brancos olhou com firmeza para cada um dos outros líderes. — Estabelecer uma nova lei nos fortalecerá e nos manterá no controle. Por que não pensamos em recrutamentos para um novo legado da magia? Isso apaziguaria os ânimos e daria foco aos que fossem escolhidos pelos Sacerdotes.
Helvek, rei de Nohragoh, era incapaz de conter a eloquência em seus discursos. Acreditava piamente neles. Para um líder, Vance o considerava um exemplo, ao contrário de alguns homens e mulheres reunidos ali, cujas posturas perante o comando desafiavam sua tolerância.
O desgosto partia de ambos os lados.
— Holtzer? — a rainha de Dal-Lanier chamou, tirando-o de seus pensamentos.
— Ele sequer está prestando atenção — Senon, o homem de pele escura que reinava Arnsthern, apontou, impaciente.
— Eu estou atento ao que falam, só acho que é inútil uma decisão contra essa questão. — Vance estreitou os olhos verdes na direção de Senon. — Sem o aval dos Sete, o descontentamento vai gerar desforras, e isso é justamente o que não queremos.
Um breve silêncio instaurou-se à mesa e o peso dos olhares dos outros líderes recaiu sobre Vance.
— Está sugerindo que é a favor de que a restrição seja abolida? — Rammir inquiriu.
Os olhos esmeralda enfrentaram os escuros e de cantos enrugados do rei de Kiros.
— Estou dizendo que tem de ser. — Vozes ameaçaram se exaltar, e Vance manteve seu argumento. — O problema já está tomando proporções negativas. Ou se esqueceram do fanatismo que chegou a Qhesz’ra? Existe um acordo de décadas com os faes. Se esse acordo for rompido, então podemos nos preparar para o pior.
As sete grandes nações de Renlohk — outrora oito — dividiam-se em territórios distintos. Qhesz’ra, reino dos faes, localizava-se nas terras de Hammiah e não tinha voz ativa na liderança do Reinado. Os faes, desgarrados de seus irmãos elfos, abandonaram a veneração à deusa Phry’ra e escolheram uma das partes mais isoladas do reino do rei Ragor como nova morada.
Mas como um grande povo Inato, era visto como privilegiado pelos que não exerciam a influência mágica. Os faes detinham magia desde o nascimento e a eles era permitido o desenvolvimento de suas aptidões.
Foi o poder dos faes que determinou o destino do semideus do Norte, durante um ardil que ajudou os humanos a destruir os elfos de Candara. Tudo em troca de permitirem que Qhesz’ra fosse deixada fora da lei do Legado da Magia de Renlohk.
— Os homens que lideraram o ataque a Qhesz’ra foram presos — Ragor informou. — Alegaram que, por serem Inatos, os faes devem se submeter ao selamento da magia ou banidos para outro continente.
— Isso é insensatez — Yensa discordou.
— Qhesz’ra mandou um alerta declarando que, se não contivermos os ataques, o trato estará quebrado — Vance lembrou da ameaça que todos os líderes sopesavam com receio.
— Vamos manter a nossa parte do acordo — Ragor assegurou, sendo ele o responsável pelo território onde Qhesz’ra se estabelecia. — Impedir que os faes sejam hostilizados é a nossa única garantia.
— Pode garantir que ninguém afrontará mais os faes, Ragor? — questionou Helvek.
— Posso estabelecer segurança em todo perímetro de Qhesz’ra. Ninguém vai se aproximar do reino.
— Até quando acham que essa medida será eficaz? — Vance indagou, perplexo perante a insensatez.
— Até que seja preciso usar outra medida — Senon finalizou.
Vance balançou a cabeça negativamente, coçando o cavanhaque no queixo e se calando.
Sua opinião continuava sem muita valia.
Questionava-se se um dia chegaria a ter alguma.
***
— Holtzer?
Ele se virou ao chamado da rainha de Talon.
Os outros líderes conversavam em frente as portas do salão. A mulher, em seus mais de sessenta anos, esbanjava simpatia com seu sorriso maternal. Dona de cabelos curtos e envelhecidos que se encontravam enfeitados por uma discreta tiara de ouro, Soriander ia em sua direção com um longo vestido azul com detalhes dourados, que fluía ao redor dos passos elegantes.
Soriander emanava uma tranquilidade que confundiria a quem pouco a conhecesse. A fala mansa, a ternura que nunca abandonava os olhos castanhos, a delicadeza que remetia a uma fragilidade exterior incompatível com a força que ela detinha como uma líder do Reinado.
Ela era quem mais tentava se aproximar de Vance em meio às assembleias e festividades. Oferecia conversas além dos tópicos políticos, intercalando histórias peculiares de seu cotidiano em Talon, em busca de tirar de Vance mais do que uma conversa sucinta. E ele permitira-se interagir mais do que o trivial com Soriander, principalmente por ela prender sua atenção contando sobre a amizade com sua mãe, Verena, revelando mais da personalidade, da inteligência e do convívio com a mulher que ele tanto admirara.
— Soriander — cumprimentou.
A rainha ofereceu um sorriso mais aberto, meneando com a mão para que continuassem a caminhar pelo corredor.
— Esses velhos tolos não sabem o que podem gerar com essa decisão.
Revogar a lei provou-se impossível. Os Sete se restringiam às resoluções em comum, gerindo governos em separado, mas em consonância, evitando que guerras entre os reinos surgissem.
Soriander votou contra a vigência da lei, junto a Helvek e ele. Vance queria acreditar que ela estava tão frustrada quanto ele por ter de continuar negando o direito à magia livre aos que a desejavam de volta. Entretanto, a serenidade dela, mesmo com palavras de contrariedade, não o convenciam.
— Penso que minha opinião não valha muito, neste momento — Vance expôs, observando a luz morta que adentrava pelas paredes de vitrais que se enfileiravam.
— Você é um líder jovem, Vance, e vem cuidando de seu povo admiravelmente — atestou Soriander. — Acredite, os outros soberanos o subestimam.
— Acatarei a ordem, se é isso o que a preocupa — Vance sorriu, sarcástico.
— Como eu atestei, é um soberano inteligente. Sua mãe se orgulharia de sua postura. Já tivemos uma perda enorme com a quebra do Código no passado.
Vance distinguiu o arrependimento de Soriander beirando a melancolia. Vance estudara muito os conceitos adotados pelos Sete, assim como conhecia a história do oitavo líder que se rebelara, logo após a guerra. Ele pagou pela quebra do Código, assim como todo seu povo.
— Foi necessário, não deveria se ressentir — consolou, vendo que se aproximavam da escadaria.
— Sim, mas vidas são vidas, e muitos inocentes pereceram por culpa de decisões erradas.
A ameaça estava embutida nas entrelinhas daquelas palavras.
O futuro dele e de Cérix, acaso ousasse contradizer as decisões da maioria, seria o mesmo que o do oitavo líder.
— Esse não será o caso do meu reino. — Forçou para que o sorriso continuasse ameno.
— Tranquiliza-me ouvir isso, Holtzer. — Soriander tocou o queixo do soberano, motivando-o a abaixar a cabeça, e beijou-lhe a testa, olhando dentro daqueles olhos verdes. — Tenha um retorno seguro a Cérix.
Seus conselheiros diriam que sua atitude fora impecável. No entanto, persistia com a amarga impressão de que sequer se aproximara de ser suficiente. Agira comedido demais para sua própria aprovação, mas diplomacia era a chave para levar adiante a sua tarefa sem prejudicar a imagem do governo de Cérix.
***
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