Vance queria ficar sozinho. Pelo menos para abrandar o desconforto que arranhava seu ego.
Saiu pelo acesso menos movimentado do salão, e logo os pingos da garoa molharam seu rosto, dando início a sensação apaziguadora. Atravessou o pátio cujo piso de pedras marfins desenhavam o símbolo de Valkor; os religiosos vestidos formalmente com túnicas azul-escuro o reverenciavam em sua passagem.
A ilha era isolada em uma aura de pacificidade. Merthrell parecia um grande jardim, cercada por uma natureza bem cuidada, onde os bosques transbordavam de um verde vivo e de uma fauna rica em pássaros e pequenos animais.
Contornando um dos jardins, adentrou o estábulo. O lugar era pequeno se comparado aos do palácio em Cérix, onde os cavalos dividiam-se entre os mais fortes e ágeis à disposição do exército.
Vance aproximou-se de um tordilho negro. O animal o encarou com os olhos escuros e não retroagiu quando Vance tocou-lhe a fronte com a mão coberta pela grossa luva preta.
— Corja pútrida de abutres! — Um rapaz irrompeu furiosamente pela porteira. — Mereciam nadar no ácido mais d…
O cavalo bufou e recuou em sua baia. O jovem estacou, enquanto Vance permaneceu estagnado, recuperando-se do susto.
— Majestade, aceite as minhas desculpas. — O reconhecimento levou o recém-chegado a se curvar e perder toda a raiva que antes expurgava em seu linguajar. — Não esperava que alguém já estivesse aqui. Posso servi-lo em algo?
Vance piscou.
A constrangedora inércia que prendera seu olhar ao do rapaz foi quebrada.
— Não se incomode. Estou admirando as montarias da Ilha, antes de partir.
O rapaz repetiu pedido de desculpa, curvou-se mais uma vez e passou por ele, dizendo que seria rápido para não o incomodar com sua presença.
Os trajes do jovem — uma calça e um corselete de cores escuras confeccionadas de couro com o brasão de Valkor e a insígnia dos vigilantes do exército de Dal-Lanier —, denunciavam que ele servia na Torre. Com um linguajar como o apresentado em sua chegada, Vance duvidava que ele fosse um religioso fervoroso.
Merthrell, além de ser um local de retiro e adoração, funcionava como posto vigilância. Em tempos remotos, a ilha destacou-se durante a guerra contra a Casta do Sul. Toda ameaça que surgia, os vigilantes alertavam aos exércitos para que enfrentassem os ataques ferozes dos dragões dourados. Era um lugar longe de ser seguro, mas, nos dias atuais, os únicos desordeiros temidos eram os piratas.
— É um vigia? — Vance reparou no serpentear da grossa trança castanha ao longo das costas do rapaz que subia em uma das muretas das baias, tateando em cima de uma das vigas do telhado.
— Era, Majestade — ele respondeu, a voz estrangulada em meio ao esticar do braço para alcançar seu intento.
— Não é muito novo para estar nessa função, …? — Vance alongou-se, reticente, indicando que desejaria saber o nome dele.
— Jorern, Majestade, me chamo Jorern. — Ele pulou da mureta com uma agilidade graciosa e um objeto nas mãos. Sorriu de um jeito divertido, fitando o rei através de grandes olhos de um azul-cobalto forte. — Garanto que tenho idade suficiente para estar nessa função. O trabalho aqui é fácil, não há um problema sequer no perímetro desde muito tempo. Acho que esse lugar é mantido apenas como uma boa intimidação, além de abrigar esse monte de gente que só sabe rezar e comer.
— Tem uma bela arma — interrompeu Vance, admirando os talhos esculpidos que enfeitavam a curvatura acentuada do armamento que Jorern tinha nas mãos. — É um arco bem raro.
— Sabe identificar um Arco de Phry’ra? — O jovem surpreendeu-se. — Comprei de um viajante que me jurou com os dois pés juntos que pertenceu a um elfo de Candara.
Vance não duvidava que houvesse pertencido. Aquele tipo de arma fora uma especialidade do povo de Candara, e os entalhes da curvatura eram precisos demais para uma imitação. Os elfos projetavam arcos de qualidade ímpar e especialidades diversas, e a peculiaridade dos Arcos de Phry’ra era a de oferecer ao arqueiro condições de realizar um disparo com uma tensão muito maior do que um arco convencional, além de precisão e alcance superiores. Em seu estilo único, o arqueiro podia controlar a aceleração da flecha, variando entre disparos suaves até os mais agressivos, sendo também mais silencioso quando a corda era liberada.
Vendo Jorern ajeitar o arco nas costas junto à aljava, Vance impediu que seus pensamentos recaíssem em lembranças desagradáveis que aquele tipo de arma evocava.
— Por que está indo embora?
— Incompatibilidade de pensamentos. — Jorern gesticulou de um lado para o outro com as mãos. — Eu não penso como eles, eles não pensam como eu. No final, acharam que eu deveria procurar outro rumo.
Um jeito enrolado de explicar que desacatou algum superior, intuiu Vance.
— Voltará para sua família?
— Que família, Majestade? — Jorern deu uma risada. — Vou viajar atrás de trabalho, de outros ares e, quem sabe, de uma aventura ou outra.
Vance se recordou da época em que suas preocupações se restringiam a não ser pego por seu pai ou pelo tutor. Época em que o clamor por liberdade vibrava em sua alma infantil e impulsionava-o a ignorar seu status em busca das aventuras que o aguardavam do outro lado das grandes muralhas do palácio onde residia.
***
Corria colina acima, escapando furtivamente no meio de uma conversa do pai com seu tutor. O sol fraco do final da tarde aquecia seu rosto risonho e o vento levava seus cabelos pretos para trás, bagunçando-os como se o congratulasse por sua astúcia. E como ria com vontade! Sawlnier nunca mais o colocaria sentado, estudando pela eternidade; não receberia mais os olhares reprovadores de seu pai e…
Estava livre!
Com os olhos fechados, a colisão tirou-lhe o ar e fez doer seu nariz, tão forte o impacto. Uma mão em seu pulso firmou seu equilíbrio e evitou a queda.
— Tome mais cuidado, menino! Caso contrário, pode ser pego — a voz risonha o repreendeu, e Vance ergueu o olhar para quem havia se interposto em seu caminho.
Bonito.
Foi o primeiro pensamento que surgiu ao ver aquele adolescente.
Ele era muito… bonito.
Mas não era uma menina. Poderia tê-lo confundido com uma, se não fosse pela voz grave e as vestimentas masculinas que usava.
Massageando o nariz dolorido, escondeu a vergonha que esquentou suas bochechas.
— Ninguém vai me pegar! Sou melhor que eles!
O jovem riu e assentiu, causando um desconforto. Vance assumiu que o outro garoto zombava de si. Sua fúria infantil se esvaiu assim que o desconhecido bagunçou seus cabelos escuros.
— Eu acredito em você.
Suas bochechas esquentaram mais.
Não estava acostumado a ter contato com estranhos, muito menos com um que fazia parte das classes mais baixas do povo de Cérix. Motivado pelo gesto do mais velho, Vance empertigou-se e citou seu título para mostrar o quão importante era, querendo ganhar o respeito do desconhecido.
— Sou o príncipe Vance Eliander Holtzer, herdeiro da rainha Verena de Cérix! Você deveria se curvar a mim!
Os olhos azuis, que mais pareciam duas safiras, cintilaram de surpresa. Vance sorriu orgulhoso ao ter o garoto reverenciando-o.
— Mil perdões, pequena Alteza — Ele se agachou para nivelar suas alturas. — Vou contar um segredo: se continuar por esse caminho, vai arrumar encrenca.
— Eu não temo nada.
— Nem mesmo alados ferozes que cospem fogo e que têm uma baba nojenta que derrete até o mais sólido dos metais?
Os olhos do pequeno se arregalaram.
Vance jamais vira um alado. As lendas sobre aquele povo traziam imagens de calamidades, pura agonia e destruição. Seu pai costumava dizer que seu tutor exagerava nos contos, mas nunca explicara o porquê ou se dispusera a lhe narrar tais eventos de forma diferente.
— Tem alados nesse caminho? — Espichou os olhos para a descida da colina que era margeada por uma densa floresta de eucaliptos.
— Enormes e perigosos — ressaltou o adolescente, enfatizando com os braços abertos.
Vance ponderou. Se o garoto tinha visto os alados e viera daquele caminho, significava que era muito corajoso. Não querendo ser taxado de covarde, bateu um dos pés na terra gramada e determinou:
— Vou enfrentar todos!
— Você deve voltar para o palácio e proteger os seus. Não acha que seria um feito notável se salvasse uma bela dama do perigo?
Mesmo com seus poucos sete anos, Vance percebeu lógica no que lhe era dito. Teria mais chance de ser reconhecido se protegesse alguém. As fábulas que sua mãe lia para ele, sempre exaltavam um bravo guerreiro que ajudava seu povo e defendia sua amada. A seu ver, não existia outra pessoa mais querida a qual gostaria de proteger.
— Eu vou defender a mamãe!
— Mas, para isso, Vossa Alteza tem de crescer e se tornar um homem forte e honrado — o garoto aconselhou, se erguendo.
— Eu serei! — Vance deu-lhe as costas e voltou correndo para o palácio enquanto bradava ao vento. — Vou ser o maior herói do mundo inteiro!
***
Seu entusiasmo infantil se perdera no cotidiano. Não concretizara o que prometera àquele garoto. A mãe havia sido assassinada bem diante de seus olhos, anos depois.
A lembrança que Jorern despertara se enlaçava com sua frustração atual. Irônico que seu sonho por ser reconhecido colidisse com sua falta de competência como rei.
O amargor se intensificou em sua boca e o desconforto somente pesou mais em seu âmago, fazendo com que aquele dissabor se tornasse mais desprezível do que jamais fora.
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