Pressa e ansiedade para retornar ao apartamento onde nada possa acontecer – assim penso. Ninguém deve perguntar se tive um problema com uma grande criatura que tentou me comer porque tenho um sangue de algo que nunca ouvi falar. Mesmo se eles perguntarem, duvido que vão acreditar em uma história boba dessa. Só devem acreditar quando Tanuki se mostrar a eles e contar como me defendeu com seus movimentos mágicos. E falando nele, ele está me guiando dentro do meu bolso. Uma boa ideia que ele teve de encolher. Já a minha sujeira, as pessoas me olhavam com uma expressão estranha e já imagino o que devem pensar; sem-teto, entrei em briga, catando lixo. Esse seria só o menor dos problemas. Estava apressando para chegar no apartamento. A cabeça tá tão voada que não conseguia processar o caminho, salvo Tanuki que estava me guiando.
Não contei os minutos que andei até o beco, mas graças a Deus cheguei na rua do apartamento. Subindo as escadas na pressa, entro imediatamente na zona segura e tranco tentando respirar e suando muito. Tanuki saiu do bolso e cresceu ao seu tamanho, olhando preocupado com suas mãos fazendo um sinal de calma. Estou é precisando de uma anestesia ou algum soco na cara.
Melhor evitar o soco.
Minha vida ficou em risco juntamente com o sonho; o tanto que lutei para chegar aqui, estudar, conhecer novas pessoas, reencontrar Mika e Kona e agora tudo pode virar um colapso.
– Nada a se preocupar, Mestre. Estamos em seu lar – quem dera que tudo fosse melhor dentro de casa!
– Alguém suspeitou? Alguém nos viu? – nem tive ideia do que passava na mente. Só uma baderna de gaguejos. – Estou com medo.
Eu nem sinto meu corpo se mover direito. Tanuki me olhava preocupado ainda que o fez andar em círculos.
– Há ninguém aqui – ele retornou com seu típico sorriso.
– Eles me viram sujo, idiota! Meu corpo está friento, sujo e não sei o que vai acontecer.
Perdendo boa parte da paciência e emoções falando o que vem a tona, até para ofender. Ele se importa? Ele só segurou meus braços firme, olhou nos meus olhos e puxou para a sala.
– Deixa-me preparar o teu chá. Por favor, sente um pouco e tente relaxar.
Acho incrível como ele age calmo e sereno depois de uma luta que teve com uma criatura que esqueci o nome. Ele me puxava até o sofá e me convidou para sentar enquanto ele vai para a cozinha. Não importa o que aconteça com ele, vendo o Mestre dele vivo é um prazer.
Bom, ele é imortal, né? Isso pesa muito.
Minhas pernas ainda tremem depois de sentar com meu corpo imundo. Vejo se tenho machucado no corpo, mas só leves arranhões que passam em um dia. Tiro a camisa e encostava no sofá, respirando fundo e fechando os olhos, procurando pensar em algum cenário que possa me tranquilizar ou uma música que relaxe meus nervos.
Depois de uns minutos tentando descansar do caos, Tanuki retorna com uma xícara de chá verde. Eu conserto a coluna e pego o chá. Ele me olhava cautelosamente e presumo dois sentimentos: ele é muito preocupado ou feliz de me servir. Nenhumas das duas opções respondem.
Agora me bateu uma dúvida: se Tanuki se sente estranho com todos esses equipamentos e tecnologia, como ele prepara o chá sem saber como funciona um fogão? Não pensei que barganha ele faz.
Posso sentir a fragrância do chá inalando nas narinas e chegar ao cérebro com um sentimento relaxante que me conforta em tudo.
– Não demora se não quiser que esfrie, Mestre.
Ah! Obrigado, Tanuki! Você teve o prazer de quebrar minha concentração do chá que você preparou com amor!
Esquece! Deixe-me beber e relaxar. A temperatura está boa, a quantidade baixa de açúcar também e a erva em sachê dissolve, relaxando a alma e corpo. O gole me tirou um arfo de paz. Tanuki me olhava com sorriso no rosto que nunca morre. Natural dele.
– Está bom, Mestre?
– Sim, está bom – sentindo grato só essa vez. – Você sabe preparar chá muito bem.
– Meu antigo Mestre me ensinou. Ele sabia das melhores ervas para o chá.
– Acredito – digo olhando para o chá que reflete distorcidamente meu rosto e imaginar onde ele arrumou as ervas. – O chá está me ajudando um pouco a esquecer do que passei agora.
É loucura, eu sei. Nem deu uma hora que isso ocorreu na minha frente. A dor no corpo e o cansaço são imensos. Eu precisaria de um ortopedista urgente.
– Eu sei, Mestre – Tanuki adicionou. – Onis são criaturas selvagens e rudes.
– Onis? – ele tocou no ponto que esqueci. – O que é isso?
– Onis são Yokais.
Lá vem nomes japoneses que não sei o que são! Esses nomes nunca estiveram tão presentes na minha vida como antes. Pergunto à bola de pelo o que são Yokais encostando no sofá para tentar relaxar enquanto ele ficava em pé.
– Yokais são demônios e monstros que vivem no nosso mundo e no espiritual e Onis são um deles. Eles moram no Inferno para guiar e fazer o que bem entenderem com os condenados; alguns deles tentam escapar para a Terra e procurar por carne fresca para comer e parece que você foi o primeiro no caminho daquele monstro. Eles são enormes, usam claves como arma e têm um bafo horrível. Mesmo fortes, paciência não é o forte deles.
Posso provar essa última tese muito bem. Se só a pele dele cheirava a cachorro morto e molhado, sua boca deve ser um mar de cachorro morto e molhado. Eu vomitaria sem problema.
– Tanuki. Eu não sei – ele me olhou curioso. Ainda tenho dúvidas. – Você disse que eles procuram por carnes para comer, mas ele me caçou dizendo que tenho sangue de... não lembro do que. Não é estranho demais?
– Sangue dos Kitsunes – Tanuki ficava com a coluna ereta, pensativo com uma mão no queixo e a outra coçando o saco. – Ele não caçou por qualquer carne; foi logo você.
– Acha que mais deles podem aparecer?
– Calma, Mestre. Nenhum outro Oni aparecerá – ele disse com um alívio que fez minha alma respirar esperança. – Mas outros Yokais sim.
Que logo é quebrada com uma maravilhosa notícia que não apenas Onis me caçarão, mas também todo tipo de demônio pode beber meu sangue. Tive que beber mais um gole do chá para ver se recupero a consciência enquanto Tanuki não ficava incomodado de explicar seus mitos e histórias.
– Mas isso não justifica. Nem todos os Yokais caçam para comer. Alguns só punem, outros pregam pelas e há quem ajuda também. Mas se todos eles vierem atrás de você com desejo de te comer, pode ser que você possui uma linhagem dos Kitsunes e você deve saber que Kitsunes são Yokais místicos e poderosos.
– Fala sério? – o chá não vai me ajudar mais. Seus argumentos estão me deixando assustado. – Está dizendo que sou um Yokai?
– Não disse isso, mas seria divertido – ele soltou uma risada que só foi piorar meu humor. Quando ele viu meu rosto pasmado, mudou de expressão. – Mas precisamos saber. Se você tem mesmo esse sangue, isso explica o porquê ele te caçou.
– Mas eu não tenho essa linhagem.
– Eu não sei – ele deu uma piscadela para mim que só me deu vontade de esmurrar a cara dele. Depois, ele suspirou. – Talvez devemos procurar ajuda e sabedoria com Amaterasu. Ela pode te ajudar.
– Amaterasu é outra Yokai?
– Yokai? – ele franziu a testa como que ofendido com o que disse. – Ela é uma Deusa.
Era tudo que eu queria saber – sarcasmo. Eu já tenho que tolerar Onis e outros demônios que podem aparecer para desejar meu corpo como se fosse um Bubbaloo; agora ouço que existe uma deusa também? De todos os meus ancestrais, onde estou afinal? No Brasil onde o cristianismo é predominante e creem em Jesus? Catolicismo? Ou num universo paralelo de uma oculta cultura japonesa com demônios, espíritos e deuses? Não! Estou no Brasil estudando na universidade, conhecendo pessoas e muito mais.
O que está acontecendo nessa cidade? Será que há um culto secreto, uma religião que adora esses Yokais, pessoas mortas em amor e espírito amarrado em prazeres?
Eu ficarei confuso e maluco fazendo esses questionamentos sem respostas. Tudo é suspeito, uma mistura de contos folclóricos. Se eles existem, eles estão aqui? Viajam no tempo ou criam portais? Se Tanuki sabe tudo deles de cor, significa que eles estão espalhados?
Estou realmente afogado em perguntas que me deixam perturbados até Tanuki chamar minha atenção para o chá que preparou com carinho; a água ainda estava quente e despertava meus sentidos, o gosto ainda saboroso e me trazendo um tiquinho de tranquilidade. Recuperar total só se for um cochilo depois de esmagado. De todas as tempestades que fiz na cabeça, só um nome fica guardado: Amaterasu. Nunca ouvi falar dela nem em contos. Que tipo de deusa ela é? Espero que Tanuki me oriente nesses contos.
Também outro nome: Kitsune. Parece uma raça de raposa, mas talvez mais que uma raça. Eram bruxos ou um clã?
Não quero esse tempo para pensar mais. Estou cansado disso. Preciso limpar a mente depois do bom banho. O chá está no fim e Tanuki me olhava com um sorriso grato por ter me salvado do Oni – agora descobrindo que Oni é um tipo de Yokai, não seu real nome. Nunca pensei que transmitiria esse sentimento, mas estou contente com a bravura que ele teve para me salvar. Só preciso me segurar para não corar na sua frente.
– Não vai se limpar, Mestre?
Ah sim! Urgente! Pulo do sofá e entregando a ele a xícara vazia, vou direto ao banheiro agradecendo por lembrar da tarefa. Pelo menos não tenho aula pela tarde. Como explicaria a sujeira que estou? Que um monstro apareceu para me comer? Acho que estuprado é mais fácil deles aceitarem.
Deus, Vanz! Sério isso?
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