— Muito prazer, feiticeira. A partir de hoje, partilharemos o mesmo corpo. Espero que não se incomode.
— Perdão? — indagou Diana, atônita por ouvir sua própria voz saindo de seu próprio corpo, mas não ser ela a proferir as palavras. E que história era aquela de dividir o corpo?
— O que foi?
— O que... Quem é você?
— Eu sou você, a partir de agora. Quer dizer, uma parte. — O tom com que a pessoa no corpo da bruxa falava a assustava. Agia como se não houvesse nada de errado.
— Como assim? Você...
— Eu vim da caverna, já se esqueceu? Acho que você é jovem demais para ter problemas de memória.
Diana processava as informações enquanto tentava não parecer incomodada pelo deboche da outra, que aparentava se divertir com a situação.
— Então, você que veio nos pergaminhos?
— Eu não sou exatamente um brinde para “vir” nos pergaminhos, mas sim, eu estava selada neles, até você me libertar. Agora, habitamos o mesmo corpo. — A bruxa tentava juntar as peças em sua cabeça. Não sabia se podia confiar naquela coisa, seja lá o que fosse, mas pelo menos ela estava disposta a responder suas perguntas. Por mais estranha que a situação se mostrasse, uma parte de Diana estava intrigada, mesmo que não admitisse. E se realmente dividiriam o corpo, também não tinha muita escolha naquele momento. Deveria aprender o máximo que pudesse e, talvez assim, descobrir um modo de se livrar dela.
— Eu tenho algumas perguntas. Muitas, na verdade — declarou depois de alguns instantes, concluindo seus pensamentos e se acalmando um pouco.
— Fique à vontade, acredito que temos tempo. — A mulher ainda aparentava bastante calma. Pelo menos, era como soava para Diana, mas era confuso observar suas próprias expressões.
— Eu achava que os manuscritos tinham magia. Poder. O que é você? Um espírito?
— Você não estava errada. Não sou um espírito, sou um conglomerado mágico.
— Pera, você é um conglomerado? — indagou a bruxa, em choque por um instante. A outra em seu corpo assentiu, e ela se pôs a pensar. Na verdade, não havia uma descrição muito precisa do que os conglomerados eram, além de poder herdado por um feiticeiro. Tecnicamente, nada as impedia de ter uma personalidade. — Então, você é...
— Uma enorme quantidade de magia oriunda de uma feiticeira, selada por eras naquela caverna, sim. — Naquele momento, Diana sorria de orelha a orelha, de uma forma que não costumava fazer, ao constatar que sua teoria sobre absorver conglomerados estava certa. Porém, um detalhe chamou sua atenção.
— Você disse feiticeirA? Uma mulher?
— Sim, uma feiticeirA — respondeu o conglomerado, imitando de forma irônica o tom que a bruxa havia usado para reforçar o gênero na frase.
— Mas isso não faz sentido. Os manuscritos eram de Merlin, afinal. E, até onde se sabe, ele era um homem — declarou, tentando avaliar se tinha visto algo errado. — De que feiticeira estamos falando? De quem você veio?
— Eu... não sei exatamente — começou a mulher em seu corpo, pela primeira vez parecendo hesitante desde que a conversa começara. — Eu só sinto. Conglomerados não são seres, tecnicamente, apesar de termos consciência. Nós apenas herdamos a personalidade da pessoa de origem. E da mesma forma que tenho a personalidade dela, sei que era uma mulher. Uma bem bonita, provavelmente — acrescentou, voltando a sorrir com confiança. Diana não conseguia entender como poder mágico puro poderia ter personalidade. Ainda, não se considerava um ser, mas tinha gênero?
Decidiu que não iria a fundo no assunto se nem mesmo a outra sabia de onde vinha. Tinha outras questões em mente naquele momento.
— Quando eu saí da caverna, senti meu fluxo de poder mágico, mas não havia nenhuma diferença. Por quê?
— Você provavelmente checou o seu poder mágico, não o novo que entrou em seu corpo. Por isso não conseguiu me sentir, apesar de eu já estar com você naquele momento. — O conglomerado em seu corpo se virou, indo em direção à cama e se sentando nela, sem deixar de encará-la.
— Isso não faz sentido — concluiu, depois de pensar na fala por um momento.
— Não faz?
— Quer dizer, tudo bem, você tem consciência e tal, mas magia é magia. Se eu realmente te absorvi, você deveria só se somar ao que eu já tenho.
— É realmente nisso que acredita?
— Bom, sim?
— É mais complexo do que isso, meu bem, e eu sou a prova. Assim como cada pessoa é única, sua magia também o é. Por isso, não tem como fundir duas fontes mágicas de pessoas diferentes. O mundo seria bem chato se as pessoas só reproduzissem uma única coisa, aprendessem a desenvolver as mesmas magias e usassem as mesmas regras.
— Mas o mundo é assim — respondeu a bruxa, quase achando graça da discussão. Mesmo a Escola de Magia do Conselho Mágico sempre ensinara a magia de forma unitária, uma habilidade cuja diferença, de uma pessoa para outra, era basicamente o nível de domínio, às vezes a quantidade de poder. Insinuar que cada um tinha seu próprio potencial mágico era ridículo. Ela própria havia se formado como a melhor da turma, sabia muito bem como aquilo ia contra tudo que era convencional.
Ainda assim, uma suposta essência de magia pura questionava seus conhecimentos, e isso a fazia hesitar. Seria mesmo possível?
— Pense por um momento — continuou o conglomerado, aproveitando a brecha. — Você não conhece nenhum feiticeiro que pareça subverter a lógica da magia que aprendeu? Alguém fora da caixa, talvez especializado em magias de forma que ninguém mais seja.
— Na verdade, sim, todos os que pertencem à alta hierarquia se encaixam nisso. Mas eles são exceção, é justamente por isso — a voz da bruxa começava a perder confiança conforme os pensamentos vinham à mente — que eles estão no poder.
Se pensasse a fundo sobre aquilo, faria muito mais sentido se cada um tivesse o próprio potencial, em vez de apenas um grupo seleto de famílias, definidas por algo tão arbitrário como sangue e sorte. De repente, uma teoria de conspiração e controle se formava em sua cabeça, algo que ressignificava toda a sua luta até ali.
Percebeu que a outra em seu corpo a encarava, sem dizer nada, como se de alguma forma entendesse o que estava em sua mente naquele momento. Ainda era uma visão estranha para Diana assistir a si própria com uma aparência recém-modificada.
A mente dela estava a mil. Mesmo àquela altura, não fazia ideia de como se livrar do conglomerado, e naquele momento nem tinha certeza se queria. Começou a reunir coragem para perguntar mais.
Porém, antes que dissesse qualquer coisa, um som as interrompeu.
Hadria mordia a ponta do lábio inferior, ansiosa com a reunião de emergência do Conselho. Como o nome sugeria, havia sido marcada de última hora, e todos estavam muito curiosos para saber o que havia acontecido para tamanha urgência. A ansiedade da garota, porém, era exatamente por saber do que se tratava, e não ter certeza de como os outros reagiriam: afinal, depois de oito anos na alta hierarquia das Terras Mágicas, era a primeira vez que convocava uma reunião tão importante por si própria. Mas, devido à gravidade das coisas, não havia tempo a perder. Se o que tinha visto era real, então deveria agir o mais rápido possível.
Sentiu um calafrio quando percebeu que todos os representantes das oito famílias do Conselho Mágico já haviam chegado: Domini, da família Vocatio; Helena, da família Héleman; os irmãos Ária e Cello, da família Sonus; Donn, da família Acqua. Sua própria mãe adotiva, Edna Mazza, e até mesmo Alma e Aurora estavam lá, o que era extremamente raro — apesar de, no caso de Alma, a menina apostar ser apenas uma coincidência.
E ela mesma, claro, representando a família Merlin.
— Já estão todos aqui? — indagou Edna, para ninguém em especial. Mesmo que o Conselho não tivesse um líder propriamente dito, era ela quem costumava guiar as reuniões, até porque a relevância da família Mazza era bem grande. Não à toa, ninguém questionara quando ela decidiu acolher Hadria, herdeira direta do maior mago que já existiu. — Então, acredito que possamos começar. Hadria, por favor, peço que vá direto ao ponto. Uma reunião de emergência não deve ser marcada por conta de assuntos triviais, sei que você sabe disso.
O coração da garota acelerou sob o olhar incisivo da mãe. Forçou-se a inspirar fundo e pensar com cuidado em como apresentaria os acontecimentos.
— Está certa, não deve ser algo requisitado de forma leviana, e garanto que não é esse o caso hoje. — A maga virou seu olhar para os demais, encarando um por um. Quando passou por Alma, a figura rabugenta e de chapéu engraçado a fez relaxar um pouco. Era sempre divertido conversar com o avô de Lilitu, mesmo que fossem raras as ocasiões. — Por oito anos, fui acolhida por esse Conselho e fiz parte como representante da casa Merlin, cuja especialidade sempre foram os dons proféticos. — Os outros feiticeiros permaneceram indiferentes à sua fala, mas ela já esperava por isso. Afinal, mesmo com o título, nunca conseguira, de fato, exercer os poderes supostamente adormecidos dentro de si, mesmo que tenha seguido diversas vezes todas as dicas que os magos da alta hierarquia lhe deram.
Mas isso havia mudado.
— Hoje, tenho orgulho e pesar ao dizer que finalmente esses dons se manifestaram. — Murmúrios começaram a surgir no grande salão, e enfim havia conseguido a atenção curiosa dos demais, inclusive de Edna. Os olhos dela expressavam surpresa, curiosidade e até desconfiança, como se mesmo ela houvesse desistido dos poderes de Hadria.
O burburinho foi diminuindo aos poucos e Helena foi a primeira a se dirigir diretamente à garota.
— Fico feliz por finalmente começar a manifestar verdadeira magia, Hadria. Entretanto, receio perguntar o porquê disso ser da nossa conta. Não quero acreditar que você convocou as pessoas mais importantes das Terras Mágicas de maneira tão alarmante apenas para comemorar seu pequeno feito como uma usuária de magia. — As palavras atingiram a menina como uma flecha, e ela precisou de alguns segundos para que pudesse se recompor antes de responder. Era a primeira vez em anos que falava tanto em uma reunião do Conselho, e sabia que nunca havia sido levada muito a sério, justamente por não conseguir usar sua magia plenamente. Porém, agora, ela tinha um objetivo maior, e não deveria perder o foco.
— Certamente, senhora Héleman, não convocaria vocês aqui se a situação fosse tão simples. Mas é o que apareceu em minha primeira visão que me preocupa. — Hadria encarou a mulher, determinada, e esta lhe respondeu erguendo uma sobrancelha, em tom de desafio.
— O que você viu?
— O fim da magia — respondeu a mais nova, e um tumulto se instaurou no salão.
Autoria: Pedro Peixoto
Revisão e preparação: Luisa Peixoto
Título tipografado: Pedro Peixoto
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