Nova manhã e outro dia na universidade. Ontem pela tarde passei um tempo no parque conversando com Tanuki, me contando dos tempos feudais que eles viviam, samurais e um pouco dos Yokais; hoje, acordei com o café da manhã e uma curta conversa com ele. Enquanto eu estudo, ele deve ficar em casa. Claro que ele queria ir comigo encolhido, perfeito sonho dele, e pesadelo para mim. Num lugar cheio de gente, a aula sendo dada e se tenho um azar de conhecer Mika e Tanuki desejar intrometer, como seria minha vida com esses incidentes?
Melhor esquecer isso. Concentração!
Chegando na sala de aula, sento no mesmo lugar e tento recuperar a paz respirando fundo. Segundos depois, Amorim aparece da mesma forma de antes: encapuzado e maconheiro. Não é surpresa que ele chama atenção. Quando cruzava por mim, puxei o seu braço juntamente com seus olhos.
– Você gosta de casacos – comentei cumprimentando com a mão.
– Só para esconder meu pelo – ele disse corado.
– Eu sei – eu acho. Imagino se ele sofreu com isso, o que é loucura. – Vai sentar no mesmo lugar?
– Eu gosto do fundo – olhamos para trás.
– Bem longe. Com, espero que esteja bem.
– Eu também.
Dou um sorriso de passaporte enquanto o vejo indo no fim do mundo com uma resposta estranha. A maneira que ele esconde seu rosto e todos o vendo me preocupa que ele será o centro da atenção e pede para ser. Ele tem família japonesa enquanto comigo é chinesa, algo que chama atenção de todos e ainda confundem um país com o outro só porque os olhos são iguais. Lembro quando estudava na escola que todos tinham curiosidade da minha família, gostos e se falo japonês, fora os que zoavam e diziam sermos alienígenas – isso é mais pela inteligência. Asiático, no geral, tem a fama de serem inteligentes.
Estranho que Kona não entra na lista dessas pessoas. Ele só não gosta de mim.
O professor entrou na aula cumprimentando a todos. Tive que parar de pensar no Amorim e botar minha mente para a aula. Desligo o celular e fico na expectativa da aula. Pelo menos não ensinei ao Tanuki a como usar um celular. Ele seria um crush ligando para mim sem parar.
Depois da longa aula, o intervalo veio e hoje vim preparado com pão e queijo, além de um pacote de biscoitos. Tanuki tinha dado a ideia de levar chá. Eu até queria, mas não tenho onde esquentar. Aí poderiam me chamar de gaúcho carregando chimarrão no chifre de boi. Não estou louco; já vi um senhor do Sul levando consigo uma garrafa de água quente, o copo e a erva do chimarrão na praia. Só derramar no copo e beber no canudo. Não sei se chamo de gênio ou doido, mas chá é melhor que cerveja.
Procuro a mesma árvore de ontem para sentar e me conectar com a pouca natureza que há nesse mundo de concreto. Espero que ninguém tenha sentado lá já que o intervalo é curto. Já escuto melhor os sons misturados de colegas conversando entre eles. Estão se conhecendo logo de cara enquanto eu só achei uma pessoa.
Se dói ser raposa para ouvir agudamente esses barulhos, pobre dos cães!
Encontrei a árvore no meio do lugar e ninguém está ocupando o espaço, exceto um que estava sentado lendo um livro com a cabeça baixa. Suspiro vendo que perdi meu lugar. Só vou lá dar uma passada e ver quem estava ocupando o lugar. Casaco preto com capuz, mãos azuis...
É o Amorim de novo! Só encontro o mesmo lobo no mesmo lugar e lendo. A leitura é sua válvula de escape, creio. Dou uns passos para lá. Ansioso de o ver? Estranho responder. Tento chamar seu nome no meio do barulho no nosso círculo e ele levanta sua cabeça rapidamente assustado que alguém estava o vendo. É chato intrometer alguém no meio da leitura, mas vai saber se ele queria alguém.
– Você veio por causa de mim? – ele fez a pergunta como se eu fosse um stalker.
– Você senta na árvore que é boa – talvez a única. – O que está lendo?
Ele olhou para a capa e depois para mim. Achei estranho esse gesto; parecia não saber o que está lendo.
– A Arte da Guerra – ele disse mostrando-me a capa.
– Já ouvi falar. É bom?
– Comecei ontem – ele recolheu para os seus braços. – Eu queria aprender um pouco de disciplina para poder lidar com certos assuntos, fora que eu gosto de guerra.
Tento adivinhar onde ele aplicaria esses métodos na vida. Já ouvi sobre o famoso Sun Tzu, o período das dinastias, o conflito entre eles onde posso falar que China é um país que amava colocar espada e arco para cantar. Japão não está longe disso.
Me ajeito para sentar ao lado dele tentando não deixá-lo desconfortável. Ainda tento adivinhar as lições que o livro ensina para a humanidade e não vou perguntar a alguém que começou a ler, mesmo a curiosidade me cutucando. É bom que ele tem o prazer de ler porque eu sou uma vergonha nesse quesito.
– Você gosta muito de ler? – pergunto a ele.
– Sim principalmente folclore e fantasia – o que a Arte da Guerra tem a ver com fantasia não sei. – Minha mãe que me encorajava a ler.
– Parece bom porque sou preguiçoso para ler. Meu pai me incentivou na jardinagem – eu abria a sacola para pegar o pão e os biscoitos. Amorim não tinha o que comer. – Não trouxe lanche?
– Estou sem fome.
Quando escuto alguém dizer isso, sempre duvido. Ofereci a ele biscoitos, mas ele não quis.
– Quem dera eu tivesse esse bom hábito de leitura! – eu comento dando a primeira mordida no pão.
– Todos dizem isso – ele suspira. – A maioria que eu conheci preferem ver séries, filmes e jogar. Difícil achar alguém que goste de ler – não sei se era um desabafo ou indireta.
– Não gosta de jogar?
– Às vezes – ele alisava o dedo na capa do livro. – Sou ruim com jogos. Todos que tentei online eu falhei.
– Também evito de jogar online. Eu acho difícil – para não dizer que sou horrível. – Eu prefiro meditar e praticar ioga.
– Ioga? Nunca vi quem faça. Não sou chegado a esportes.
Dou outra mordida quando ele respondeu. Tive que esperar mastigar e engolir enquanto penso o que dizer dos nossos hobbies até que recebi um estalo na mente: Yokais. Ele disse gostar de fantasias e folclores, então deve saber desses contos japoneses.
Eu havia levantado o dedo chamando a atenção dele e engulo a fatia para perguntar.
– Tenho uma pergunta. Você tem algum livro sobre criaturas japonesas?
– Fala de Yokais? – falou a palavra mágica. – Acho que dois.
– Dois? – é muito para explicar sobre eles? – Eu precisava estudar sobre eles.
– Mas você disse ser uma preguiça para ler. Acha que vai gostar de ler sobre eles? São livros grandes.
“Uma coisa conecta com a outra”, eu pensei. Realmente não tenho o hábito de ler, mas se tenho que saber sobre esses Yokais que Tanuki me disse, devo estudar sobre eles, seus comportamentos e onde vivem em nome da minha pele.
– Espero que sim. Sempre gostei das culturas que nossos países têm e... – procuro as palavras para usar – estive jogando um jogo que se passa no Japão Feudal e há muitas criaturas – isso não estou mentindo. – Tenho interesse por folclores.
– Sério? Isso é muito legal, mas os livros são grandes.
Grande, mas talvez não completo. Foi o que pensei quando ouvi sobre eles. Se Tanuki dissesse a quantidade de Yokais que conheceu na sua vida talvez seja menos de cinco por cento.
E Amorim? É inteligente? Eu poderia perguntar muita coisa para ele e novamente ofereci biscoito, mas recusou.
Uma coisa notei: ele é japonês lendo uma obra chinesa e eu, chinês, procurando por contos japoneses. Curioso que cada um aprende com o outro e compartilha o que sabemos. O meu caso, por obrigação.
– Posso perguntar uma coisa, Amorim?
– Pode – ele me olha.
– Espero que não seja difícil. O que você sabe sobre Onis?
Ele repetiu o nome parecendo familiar. Ele olhava para frente enquanto eu aproveitava para dar uma mordida no pão.
– Onis é bem conhecido. São demônios grandes e fortes que fedem, parecendo um Orc dos RPGs – isso provei com meu nariz. – Eles moram no inferno para punir as almas condenadas, mas eles têm sorte de fugir e ir para a Terra levar o caos. São sedentos por carne.
Imagino que só os tais samurais ou os gênios da lâmpada podem parar uma criatura dessa. Tanuki enfrentou ele tão fácil, jogando-o para o céu que nem sei se um samurai teria essa facilidade. Tive um nó no estômago quando ouço que são sedentos por carne e quem sabe que eu sou a carne que ele me caçou não por ser saborosa – porque não sou – mas por ter uma linhagem sanguínea esquisita.
– Por que me perguntou sobre Onis? – ele me olhou estranho com minha cara feia na parte da carne.
– Tive um estranho pesadelo na noite passada – que se tornou real – onde eu fugia desse monstro. Ele cheirava horrível e manuseava uma clave.
– Sim! Claves são suas armas principais – lembrou com um sorriso que misturou com dúvida. – Estranho ter sonho com uma criatura que você não conhece.
Extremamente louco, comentei. Tenho nem ideia do que falo com ele. Me sinto idiota com esse assunto. Nós devíamos estar falando dos estudos, professor e até dos nossos gostos, sonhos, mas sobre Yokai? Quase o mesmo se fôssemos nerds que falam de super-heróis.
Ao que parece, Amorim não é de gostar de HQs; eu também não.
Fico em silêncio terminando de comer, restando biscoitos que Amorim evita. Não tenho ideia do que falar agora. Encolhido, o que fazer? Falar mais sobre Yokais? Eu incomodaria ele demais enchendo de perguntas. Melhor eu descobrir por mim mesmo; afinal, Tanuki também tem conhecimento nisso.
– Vanz. Eu posso emprestar meus livros, se quiser – ele me chamou na distração.
– Não teria problema?
– Não. Sei que você terá proveito estudando folclores.
Talvez vou tirar mais proveito que ele pensa. Só fiquei surpreso que ele é uma boa pessoa, atenta, mas carente ao mesmo tempo. Meu rosto esboça sorriso com a companhia que tenho nesse início de semestre. Estando longe do pai, avós, casa e tudo, estou indo bem conhecendo o primeiro colega e talvez futuro amigo estudando por quatro anos.
É claro, não posso esquecer dos encontros com Mika e do chato do Kona.
Ah! O Tanuki também.
Tento esquecer essa última pessoa vendo a capa do livro dele. Mais preocupado do que perturbar ele na leitura é saber se ele passará a próxima aula com fome.
– Não está com fome?
– Não tanto – ele responde. – Aguento até o final.
– Corajoso – comento em espanto.
– Às vezes acho que exagero.
Ou é o efeito da Arte da Guerra, mas talvez eu que não aguento ficar sem o que comer. O bom é que ele riu e tive que me juntar.
O alarme soou. O tempo pareceu que voou hoje. Quando você conversa e se enturma, perde noção do tempo. Nós trocamos os olhares por uma estranha razão e nos levantamos ao mesmo tempo.
– Ansioso para a próxima aula? – ele me pergunta para saber do meu humor.
– Na verdade, ansioso com algumas coisas – como ser capturado, comido, esmagado, o que quer que seja pelos Yokais. – Mas eu tento – eu forço um sorriso bobo. Parecia que era tudo que eu podia dizer.
– Parece que estamos no mesmo barco.
Ele riu com o comentário que não entendi de início, mas participei do riso. Seu sorriso dava para me confortar, ao menos. Pelo menos, sua pele não está em recompensa.
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