Depois da aula, era hora de retornar para meu apartamento e ter o almoço de ontem. Espero que Tanuki tenha cuidado do meu lar. Amorim e eu estávamos andando pela entrada da universidade e dizia de me emprestar os livros amanhã. Sorri sentindo grato que ele está sendo uma grande ajuda enquanto Tanuki abre minha mente para compreender o universo que ele viveu anos atrás. Talvez os nomes que eu falar ele entenderá e explicará cada lenda, mito, criaturas e cenários japoneses que parecem mais loucos que os chineses.
Hoje não tive sorte de achar Mika ou Kona. Estive tão preocupado em ter paz e esquecer o caso de ontem que foquei outra coisa. Chegando ao nosso ponto de divisão, Amorim e eu nos despedimos e esperávamos nos encontrar amanhã na sala de aula novamente.
Andando pela rua, há eu, alguns estudantes e pedestres tomando rumo ao contrário. Geralmente escolas e universidades recebem pessoas de todos os lugares que imaginar; claro que há ruas mais cheias, outras vazias. As casas também são variadas com todo tipo de portão, pinturas nas paredes quando não é cerâmica, poucos com jardins e boa parte com árvores para criarem uma boa sombra; carros de modelos básicos e arquiteturas nas casas que vai do gosto de quem mandou construir. Geralmente eles têm bom gosto para reforma, mas ouço dizer que se gasta muito com reforma, o que está longe da minha possibilidade. A única coisa que tenho condição é comida e a padaria eu vou mais tarde.
Quase perto do lar, eu ouço um barulho que me chamou atenção, me fazendo olhar para trás e ver nada. Pelo menos, não só eu; três ou quatro pessoas fizeram o mesmo que eu. Barulhos que vêm do nada sempre chamam atenção, é fato. Estava com medo de ter alguém me seguindo.
A doce praça que adorna a vista do apartamento está perto para pôr minhas patas na zona segura. A aula foi mesmo dura. Pondo a chave da entrada e abrindo, fechava como norma de segurança que é em todos os apartamentos. Eles precisam proteger os moradores contra muitas coisas; por isso que pagamos um aluguel salgado. Os casos de roubo e assalto na cidade são baixíssimos até mesmo em períodos de festivais. Meu avô dizia que nos tempos dele tudo era bom.
Deve ser porque no tempo dele não conheceu o Tanuki.
Subindo as escadas, no primeiro andar tive a impressão de escutar aquele barulho de novo. Não consigo identificar, mas parecia correntes se arrastando. Voltei para trás só para certificar se havia outra pessoa na entrada. Ninguém. Zero. Estou maluco? Ao menos, estou seguro dentro do lugar.
Mas e se for outro Yokai? Pensei exatamente nisso quando pisei um degrau abaixo. O barulho apareceu novamente para perturbar minha curiosidade. Realmente parecem correntes se arrastando e ficava mais baixa com o tempo, tremendo as pernas. Entre medo e desespero, abraço os dois. Melhor apressar meus passos e chamar Tanuki. O medo de ontem literalmente me dominou para presente e futuro. Já tenho dúvidas demais da vida até o som das correntes pararem, dando lugar ao silêncio, o que não é um bom sinal. Ansioso mais do que acostumado, melhor subir para o meu apartamento e não me deparar com mais nenhum som. Cada passo no degrau tentava aliviar a alma com um mau pressentimento sem explicação.
O som da corrente reaparece. Olhei para trás no susto e não consegui ver o que avançava em minha direção. Levantei os braços de medo para me proteger o que senti algo me amarrar do estômago até a perna, me puxando para baixo batendo a cabeça na escada. A dor foi aguda que só.
Tentando recuperar a consciência e os olhos na estranha pessoa que me segurava com correntes nos braços. Ela é marrom com longo cabelo preto cruzando a cintura e vestindo um casaco de urso; tem presas enormes, narigudo com um piercing, pequenos chifres e mais um cheiro insuportável.
Outro Oni? Era ele que me seguia?
Preciso gritar por Tanuki, no exato momento que abri a boca e senti outra corrente amarrar, jogando para trás e me mantendo imóvel. Mais um deles apareceu, esse com pelo verde, longos chifres, presas menores e cabelo branco – e rindo.
Mais desesperado que agora impossível. Agora sei de onde veio o som das correntes.
– Parece que capturamos a Kitsune.
O verde comentou com tanta excitação que me surpreendeu ao saber que são mais animais confundindo eu com esse tal bicho. Como queria gritar e explicar que não sou...
Para que? Não vão me ouvir.
– Foi mais fácil que eu pensei para alguém tão forte.
O marrom disse puxando minhas pernas, deslizando degrau por degrau até eles. Tento erguer a cabeça para não bater na quina, mas está difícil. Entre seus olhares eu não tenho outra reação senão querer me soltar e fugir daquele sequestro.
– Esse serviço foi mais fácil que eu pensei – o marrom prosseguiu olhando para o parceiro dele que só sorria. – Não sei por que alguém andaria sozinho sem se preocupar.
– Um desavisado da vida – o verde ria botando seu pé no meu estômago e pressionando. Por sorte, não pisou como imaginei. Eu conseguia retirar a maldita corrente da boca e tentar esclarecer, como se fosse útil.
– Parem! Não sou essa tal espécie que vocês...
Fui cortado pelo verde que, agora sim, pisou no estômago, me deixando sem ar. Já estava difícil com correntes me apertando como uma anaconda, agora ter dois Onis me capturando só rezo para não pisar na cabeça.
– Calado, Kitsune! – o verde gritou se jogando para trás na gargalhada. – Não cairemos em suas fábulas.
– Sua carne é sagrada para saciar nosso desejo – o marrom agachou ao meu lado e encarava com um mau hálito no meu rosto que queria tampar o nariz. – Você é um abençoado.
– Vamos conhecer o seu destino, raposa.
O verde me puxou ainda com riso no rosto para me levar para longe da zona segura quando a corrente que ele segurava foi cortada por um objeto que transpassou, me libertando ao menos na parte de cima. O silêncio predominou caoticamente ao vermos que foi uma mísera folha que partiu a corrente em dois. Olhei para a escada acima e via com dificuldade a imagem de alguém com as mãos na cintura e encarando sem camisa.
– Mais Onis atrás do meu Mestre? – Tanuki era o herói que estava a me salvar atrasado. – Vocês vão leva-lo a lugar nenhum.
– Quem é você? – rosnou o marrom segurando firme a corrente nas minhas pernas. Estou com medo que uma fuga aconteça.
– Não faz importância! – intrometeu o verde girando a sua corrente na vertical – Você irá com nós!
O verde esboçou um breve sorriso de tamanha confiança que lançou a sua corrente na direção do Tanuki. Eu esperava que ele desviaria, mas não reagiu; se deixou ser amarrado incluindo os braços.
Como ainda tenho esperanças nele?
– Agora você vem com a gente.
O verde riu da sua fácil vitória sobre o gordo que nada reagiu. O que ele não esperava – e nem eu – foi que, num piscar de olhos, Tanuki avançou contra o Oni dando uma barrigada nele, jogando na parede e nos libertando mais fácil ainda das correntes. O parceiro rosnou com blasfêmia e tentou dar um murro no Tanuki, o que foi um fracasso. O gordo desviou do golpe e deu um gancho bem dado, jogando ele no chão atordoado. Imediatamente, Tanuki veio me libertar das correntes moles e me pegar no colo, subindo direto para o meu apartamento. Dessa vez, ele foi ligeiro e protetor ao extremo porque meu corpo e pés estão moles com a queda que tive.
Entramos rápidos no apartamento e ele fechou a porta, me colocando em pé e me analisando para certificar se eu estava machucado, ferido ou só esmagado mais uma vez. Eu ainda estava bambo com tudo o que ocorreu, mas consegui recuperar rápido.
– Você está bem, Mestre? Está machucado? – ele pergunta demonstrando preocupação.
– Só com dor na barriga, mas nada grave – me apoiava no ombro dele. – Obrigado por me salvar.
– Eles não vão embora fácil – Tanuki me levava para o meio da sala onde tinha a janela. Ele abria. – Eles ainda irão atrás de você até eu expulsar.
– Mas você trancou a porta?
– Tranquei o que?
Esperanças afogadas novamente. Só escutei o barulho da porta ser arrombada e com o coração na minha garganta. Os dois Onis entram com suas correntes fervendo nos braços. Tanuki logo se posicionou na minha frente pegando a vassoura que estava ao seu lado.
A distância não importa; o medo é o mesmo.
– Devolva nossa caça, idiota! – o marrom rosnou girando a corrente. Agora que notei que há uma ponta para pôr peso.
– Vocês devem tira-lo de mim – Tanuki já se posicionava para outro combate com a vassoura em guarda.
– Se você quiser morrer então irá!
O verde quem comentou lançando sua corrente na nossa direção. Tanuki segura minha cabeça e empurra para baixo fazendo desviar daquela corrente em fúria. Como ele age rápido! Foi nesse momento que ele girou a vassoura e começou a atacar os dois, que conseguiram desviar por um triz. Os adversários não parecem tão lentos como o de ontem, mas como que Tanuki manuseava a vassoura como um bastão de combate eu não faço ideia. A forma que ele gira e ataca de lado é surpreendente, até fazendo com que alguns golpes acertem os dois, mas não efetivamente. Suas correntes também são ligeiras, me impressionando.
Eu parecia uma criança olhando para a situação em pânico na dependência do protetor. Eu estava na janela e dava uma olhada para fora e ver se havia alguém para pedir socorro, mas a chance de isso acontecer é baixa. Como num momento de impacto, os dois Onis dão um soco contra o Tanuki que conseguiu paralisar com a vassoura na horizontal, mantendo os três firmados na encarada enquanto eu assistia.
– O que querem tanto com meu Mestre? – Tanuki argumenta botando força para empurrar os dois que mantinham segurando.
– Seu sangue. Ele tem o poder que queremos – eu ainda questiono que poder é esse que tenho e ninguém mostra. Só gelei ao ouvir.
– Impossível para dois Onis dividirem uma raposa. Ou vocês foram contratados? – é um bom argumento do Tanuki.
– Que te interessa? Queremos o sangue dele e teremos!
Foi o marrom que rosnou e empurrou aquele impacto, logo girando a sua corrente e acertando o rosto do Tanuki que cambaleou para trás, mas não caiu. Ele permanece erguido com a vassoura apoiada na frente e encurvado com a mão no rosto.
– Você está bem? – corro até ele e tento certificar que ele estava bem. Afinal, levar uma “correntada” na cara deve ser doloroso, mas ele arfou sorrindo da forma que não gosto.
– Faz séculos que não levo um golpe, mas estou bem. Fique atrás de mim.
Eu queria ajudar ele. Não estava nada bem a situação, mas o marrom avançou contra nós com a corrente para nos amarrar, momento certo que Tanuki se ergueu e deu um bruto toque do cabo na corrente, desviando e segurando o golpe do Oni em seguida. Os dois estavam pressionados como lutadores de jiu-jítsu. Ainda me impressiono como Tanuki consegue ser rápido; mais ainda é como essa corrente ainda arrebentou nada de casa.
Os dois permanecem segurando na luta de peso, só que esquecendo que aquilo é uma brecha para o verde correr até mim sedento. Meus olhos esbugalham e até chamo o Tanuki, mas ele estava pressionado pelo outro que não o soltava. Eu encostei na janela vendo o sorriso malicioso do Oni querendo me agarrar, perto e fedorento. Parte do meu instinto reagiu dando um chute no saco quando ele abriu os braços, ouvindo um gemido de dor nas partes e me dando chance de desviar rapidamente.
Se eles têm aquilo nem quero saber.
Mesmo ele com dor e com as mãos no saco, ele reagiu furioso com um bruto golpe para me acertar que, por sorte, desviei a cabeça para baixo, só sentindo o tremor do soco na parede imaginando como meu rosto ficaria com aquilo. Pior que nisso eu escorreguei, ficando sentado e encostado na parede vendo ele enfurecido em cima de mim. Olhei para o Tanuki e ele viu a situação. Ele pegou no braço do outro Oni e puxou, balançando numa força tirada do nada e o lançando contra o seu parceiro, derrubando os dois e me libertando do mau odor. Me levanto e corro para ficar atrás do Tanuki.
– Faça isso parar! – gritei.
– Como desejar.
A resposta dele foi firme. Só espero ser verdade.
Os dois Onis se levantam e agora estavam posicionados para a janela enquanto eu e Tanuki ficamos no lado da sala. Eles estavam sem paciência, mas não demonstram cansaço e nem desistência. Eram insuportáveis.
– Mais uma vez: devolva a raposa! – o verde rosnou girando sua corrente.
– O que você é, Tanuki? – o marrom pergunta usando o nome dele, o que é uma surpresa. Tanuki apenas deu um sorriso e encarou:
– O Guardião do Vento.
Dito, os dois Onis lançam suas correntes contra nós, outra tentativa. Eu já dava meus passos para trás, mas Tanuki permaneceu. Bateu palmas e estendeu os braços para frente, soltando um forte vento de tempestade na direção deles, fazendo suas correntes pararem no ar e voltar a eles como flechas. Eu não senti o vento me incomodar dessa vez, mas meu pelo era puxado para a direção da janela na qual os dois Onis tentavam se segurar no chão e nas bordas, mas a força era tanta que acabaram sendo arrastados pelo vendaval e lançados para fora da janela, especificamente para cima igualmente com o de ontem.
Após eles voarem, todo o vendaval parou e voltou o silêncio. Há apenas eu e Tanuki no apartamento. Eu estava gelado, mal sentindo as pernas. Ao menos, não fui esmagado. Tanuki se aliviou que a luta terminou e se virou para ver se eu estava bem com um corte no rosto esquerdo.
– Você está bem, Mestre?
– Estou, mas seu rosto... está ferido.
Respiro ofegante. Ele pousou a mão no rosto e viu seus dedos sujos de sangue que não era pouco. O golpe ou corte foi mesmo forte. Eu permaneço apavorado tentando respirar e relaxar, mas era uma tarefa difícil. Agora era cuidar de mim e do cara que me salvou de novo.
Comments (0)
See all