Quarta-feira e já sinto o peso na cabeça e costa. As preocupações com a vida, monstros me caçando, o mascarado de ontem, Tanuki que apareceu só depois com o argumento que estava procurando por outro nome japonês e eu tentando estar de bom humor. Foi uma péssima noite para dormir; só sei que respiro e estou na universidade à força. Tudo que queria era que esses pesadelos desaparecerem e querer uma vida normal como todos.
Ao menos, Tanuki está comigo dessa vez, encolhido no meu bolso vigiando sempre que pode e torcer para ninguém notar a cabecinha dele.
Subindo as escadas eu pareço um zumbi de passos lentos e olhando reto de cabeça baixa. Tudo ficando sonolento e cansado, pensando como vou sobreviver na aula. Entrando na sala, sento logo no meu lugar de antes sem querer olhar para a turma. Coloco as mãos na carteira e apoio a cabeça para descansar, os olhos quase fechando; realmente queria ficar em outro lugar onde eu possa colocar minha alma em paz com a natureza. Natureza sempre é a resposta.
– É aqui que você estuda, Mestre? – Tanuki coloca a cabeça fora do bolso um tanto surpreso. – Tudo parece seco e com muita luz.
– E é – bocejo. – Sei que é diferente do seu tempo de madeira e vela.
– E está cheio de aldeões.
Ele escala minha blusa até pisar na carteira e ficar debaixo da minha cabeça. Ele está no lado direito onde a sala não o pode ver e terei pavor se souberem da existência dele ou que eu falo com um amigo imaginário.
Está aí um bom ponto: só eu vejo ele? Se sim, estou pronto para receber o carinhoso apelido de conversador com espíritos.
O mais divertido e ridículo é tolerar o fato dele chamar todos de aldeões. Devo concordar que no seu tempo tinha um ambiente magnífico, a pura horta, a saúde melhor, a noite sendo o tempo de descanso em suas tendas sem uma preocupação no que fazer. Ou eles amavam serem samurais e andarilhos. Agora chamar todos de aldeões é exagero.
– Meu Deus, Vanz! – alguém disse ao meu lado surpreso com meu sono alto e esse alguém era Amorim. Quando levantei a cabeça para o ver, senti que até meus músculos e sentidos não funcionaram. – Parece exausto. Aconteceu algo?
– Quase. Outro pesadelo.
Muitos pesadelos que se tornam realidade, mas nem posso contar os fatos. Quem acreditaria que demônios viriam de outro mundo me caçando por causa do meu sangue de bruxo e que dá poderes de super-heróis de filmes? Mais louco que isso queria saber.
– Meus dias têm sido cansativos – bocejo novamente.
– Mas o que foi esse pesadelo agora? Um seguido do outro é estranho.
Para meu bom humor, ele sentou ao meu lado colocando a mochila no chão, tirando o capuz e olhando para mim preocupado. Eu expliquei a ele o estranho sonho: um onde dois Onis me caçaram com correntes e garras e o outro onde conheci um canino usando máscara e falava comigo como se eu o conhecesse. Amorim ouviu atento e olhou ao redor para checar se alguém nos espionava. Os estudantes estão entre eles.
– Esses sonhos estão estranhos envolvendo Yokais – ele comentou.
– O cão é outro Yokai?
– Possível. Você disse que usava uma máscara; deve ser aquelas máscaras Kabuki, populares nos teatros japoneses. Ele deve ser uma Kitsune.
Meus ouvidos e olhos levantaram imediatamente ao ouvir a palavra mágica. Até Tanuki que estava atrás de meu braço se dispôs a ouvir. Preciso é cobrir esse gordo para Amorim não descobrir.
– O que sabe sobre eles? São poderosos e mágicos? – lá vou enchendo de perguntas.
– Kitsunes são fortes Yokais em forma de raposas e têm diferenças em cada país.
– Bom que você sabe, Amorim – comento me aproximando mais para ouvir. – Eu queria saber por que estou tendo esses pesadelos. São todos demônios?
– Não exatamente. Bom, podem ser, mas nem todos são maus.
– Como assim?
– Você precisa saber é que eles têm origens e razões diferentes para se tornarem o que são – ele se endireitava e gesticulava com o dedo. – Não dá para dizer de cara o que eles querem e são numerosos. Tem Yokais que ajudam, outros que atrapalham.
Não sei por que senti o pelo arrepiar. Se são numerosos então é possível que numerosos irão me caçar para apreciar meu sangue como um vampiro faria com a doce vítima adormecida. Isso significa que corro o risco pela eternidade?
Tanuki permanece atrás do meu braço e tentava sussurrar algo, mas não consigo entender. Amorim pegava da mochila os livros enquanto eu aproveitava e pegava o Tanuki, enfiando no bolso e fingindo que nada aconteceu. Tanuki parecia mais interessado que eu no assunto.
– Mas nada faz sentido – Amorim puxa os dois livros e me oferece. – Você tem alguém na família que acredita nisso?
Além de mim? É o que penso. Eu conheço a família muito bem.
– Não. Meus tios, primos e avós não acreditam nisso. Somos de crenças diferentes.
– Pois é, ainda mais essas criaturas que não existem.
Concordo mesmo sendo mentira. Queria puxar ele para viver comigo e mostrar as provas que não estou louco por acaso quando tenho pesadelos em tempo real. Ninguém deve saber dessa parte da minha vida e nem posso forçar Amorim a responder tudo só porque entende do assunto. E o Tanuki tenta me cutucar no bolso enquanto agradeço ao Amorim pela ajuda e os livros que são pesados por sinal.
Ele estava feliz com isso e preferiu sentar ao meu lado para ter uma boa conversa e companhia durante a aula. Nisso estou feliz; sei que não estou sozinho na aula e sei que posso ter um colega para trabalhos. A única coisa que não posso apresentar é o Tanuki que cutuca meu bolso onde acabei dando um soco na coxa, chamando a atenção do lobo que ficou assustado.
– Foi um soluço – disse corado.
– Ele talvez saiba o que queremos.
Tanuki agora estava no meu peito enquanto eu caminho pelo corredor e cruzo inúmeros estudantes. É intervalo e queria um lugar solitário para conversar com Tanuki e ensinar como as coisas funcionam no meu mundo. Presumo que Amorim foi à sua sagrada árvore. Hoje eu quero deixá-lo em paz enquanto eu procuro paz.
– Não posso enchê-lo de perguntas. Isso seria chato da minha parte.
– Claro que não – Tanuki concorda. – Só precisamos de informações.
– Algumas pessoas se sentem incomodadas com certos assuntos – fora que conheci ele antes de ontem. Virando a esquerda... – Não posso perguntas coisas mais profundas se podemos resolver juntos.
– Esses aldeões da sua vila são estranhos – ele suspira cruzando os braços.
– Não moramos em vila, Tanuki e ninguém é estranho.
Exceções.
Só queria saber quando ele vai entender que não moramos no tempo feudal. Nem sei se sinto estresse ou cansaço. Tudo parece um aperto com um protetor desconfortável no meu peito.
Chegando em um corredor que levava ao jardim até bonito com um acabamento de bom gosto, me sinto mais aliviado que tem ninguém aqui e poder sentar no assento. Sentando com o Sol na minha cabeça, queimando o cérebro e esperar o alarme tocar enquanto continuo a ansiedade com Tanuki podendo falar comigo enquanto a privacidade está garantida.
Eu não tenho ideia do que fazer, na verdade. Tanuki poderia me falar um pouco de Yokais, mas estou tão desapontado que queria descarregar esse peso com outro assunto. Esconder as emoções na universidade está sendo uma obrigação até na frente do Amorim. As orelhas estavam baixas com os olhos tentando se distrair quando olho para a esquerda e vejo uma raposa branca que também virou a cabeça para minha direção. Para minha surpresa, era a Mika saindo da universidade também. Ela vem em minha direção e não sei se fico tímido ou aliviado. Sei que este ponto meu dia pode clarear. Ela me cumprimenta com um sinal na qual eu levanto.
– Como vai você, Vanz? – ela comenta me dando um abraço, o que foi um alívio em parte. – Não te vi ontem.
– Estou bem como posso. Os estudos estão sendo difíceis mesmo na primeira semana.
– Você parece cansado. Dá para ver pela sua cara.
Ela é especialista em descobrir expressões e sentimentos através dos olhos. Eu fico meio envergonhado de esconder.
– Algumas coisas aconteceram na minha vida que é difícil de explicar – eu suspiro.
– Sentindo falta do pai?
Isso também. Ela me puxou para sentar e ter uma conversa em particular como fazíamos no tempo de escola; apenas nós no jardim e eu falando com alguém que amo desde infância. Parte dos problemas posso desabafar, mas o medo dela pensar que sou louco é grande.
Melhor não dizer a parte dos “pesadelos”. Seria ruim se outros escutarem na base da fofoca. É para quebrar a minha cara.
Contando o que eu estava sentindo, sinto o peso diminuir um pouco enquanto as palavras dela eram uma força para continuar contando o que tenho. A ausência da família é um fato grande que me faz sentir triste, mas a parte proibida que tem um gordo morando comigo – que está dentro do meu peito escutando tudo – e que tem criaturas me caçando será assunto para quem sabe quando.
– Eu compreendo, Vanz e não sei como sua família reagiu quando você passou no vestibular e decidiu vir para cá – ela me olhava preocupada.
– Meu pai disse ter sentido um pedaço dele ser arrancado quando disse de fazer a universidade em outra cidade. Minha mãe talvez você lembre – dei um suspiro de pausa e prossegui. – Ela me deixou quando eu era criança. Mesmo meu pai presente sempre, cheguei no momento que eu tinha que decidir meu caminho, mesmo sendo difícil aceitar.
– Toda escolha é difícil, Vanz. Você não tem que se culpar pelo que você fez ou aconteceu. Você sempre disse para seguir seus sonhos e é o que você está fazendo. Você sempre foi dedicado e inteligente. Das vezes que te conheci eu sei o que você era capaz – depois dela dizer isso, ficamos segundos em silêncio pensando nas suas palavras. O vento batia fraco, mas o Sol não perdoava.
– Você está sendo tão aberta comigo – olhei para frente.
– Você é meu amigo, Vanz. Você sempre foi minha mão amiga e sempre será.
Para isso nem sei como reagir se sorrio ou choro. Ser uma mão amiga é muito; quem dera se nós namorássemos! Eu literalmente corava muito com um sorriso bobo e me sentia encolher com seu comentário. Tudo ficou em choque maior quando ela posou sua mão na minha, o que senti os pelos se arrepiarem. Eu admiro que ela não teme em fazer esse gesto e ela sabe que somos amigos.
Ela sabe, não sabe?
– Você não deve pôr medos em seus objetivos. Você sempre me disse isso, Vanz.
Se ela soubesse o que exatamente estou passando, mas isso vir dela foi um salmo. Eu segurei forte as nossas mãos com um sorriso tímido e olhando para ela. O que posso responder com essa bondade que ela mostra com pureza e afeição?
Na verdade, nunca pensei que teria um tempo a sós novamente com ela. Me sinto confortável estando ao seu lado. É como se voltássemos no tempo e relembrando meus conhecimentos sobre plantas.
– Obrigado, Mika. Isso significa muito.
Essas foram minhas palavras. A resposta foi o lindo sorriso, um abraço e a confiança. Se ela soubesse tudo que sinto por ela poderia me chamar de doce, não sei. Fico ansioso com muitas coisas quando estou com ela e segurando minha mão não me ajuda a ficar calmo de sentimento. Ao menos, ela trouxe-me a paz que precisava.
Nós nos olhávamos por um bom tempo e olhamos para nossas mãos, desfazendo o aperto mais tímido ainda como se não soubéssemos o que estávamos fazendo. Admito que sua mão era calorosa.
O silêncio foi o único ambiente a permear. Talvez a intimidade está boa entre nós. Ambos olhamos para frente como se estivéssemos procurando razão para os olhos distraírem.
– Ah! Lembrei de te contar – Mika quebrou o silêncio. – Talvez você saiba que tem uma academia de artes marciais em frente ao mar.
Meus olhos abriram um tiquinho surpresos. Nem sei aonde ela iria com esse assunto de mar e academia, mas é pura cultura brasileira ter alguma paisagem com mar ou lagoas. Até rios.
– Não sabia. Onde fica?
– Uma pista longa que tem o parque em frente ao mar no setor leste da cidade. Meus colegas me disseram que tem um festival que acontece em agosto e dizem que a vista do mar à noite é maravilhosa.
– Não sabia mesmo. Estamos em fevereiro e até chegar o mês, posso visitar o lugar antes.
– A academia parece estar aberta todos os dias – ela dá de ombros. – Talvez você ama o lugar.
– Estou curioso. Você vai para lá quando?
– Não sei. Só tenho desejo de conhecer o mar. A vista deve valer a pena.
Sei bem o porquê. Uma vista do mar sempre é linda, principalmente acompanhado. Eu poderia me convidar para ir com ela, mas a sós.
Um grupo de mulheres chamam pela Mika de longe. Ela responde com um sinal.
– Meus colegas chegaram – ela virou para mim. – Vamos falar de trabalhos em grupo e ter um lanche. Espero que você fique bem, Vanz.
– Estarei. Obrigado por conversar comigo – sorrio tímido.
– Espero te ver mais cedo.
Terminamos com um caloroso abraço e ela se levantou, me deixando com um sorriso e carinho que dificilmente irei esquecer. Sua frase deixou-me emotivo e desejando ver ela o mais cedo possível. Ela retorna para suas amigas e entra na universidade. Elas parecem muito amigas rindo já nessa primeira semana. Eu volto a olhar para frente e a luz solar me beneficiando. Mika é uma excelente pessoa, maravilhosa, dedicada...
– Ela sabe onde fica o torii?
Magicamente Tanuki aparece nas minhas costas com entusiasmo arrancado dos infernos que me assustou, fazendo eu cair de costas. A sorte dele é que caí na grama. O gordo mágico olhava para mim com um sorriso de esperança que nem se importou com minha queda.
Eu me levanto já murmurando. A paz que recebi foi despedaçada pelo meu servo.
– Droga, Tanuki! Não aparece assim na próxima vez.
– Vou tentar, mas não é o caso – ele puxou meus braços para levantar. Rezo que ninguém está nos vendo. – Sua amiga deve saber onde eu quero ir.
Eu perguntei com duas opções em mente: ou ele quer se livrar de mim – o que seria perfeito – ou há um lugar que ele deve ir por alguma razão. Eu e ele conversaremos mais tarde sobre esse lugar que quer tanto saber com outro nome japonês. Por agora, só quero descansar um pouco e recapitular o conforto que eu estava tendo com a Mika. Mau recebo o carinho e já jogando fora?
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