Rammir desprezava viagens longas. A energia de seus dias áureos se esvaíra. Fisicamente, distanciava-se de um soberano dotado de imponência como Helvek que, mesmo em seus avançados sessenta e dois anos, empunhava uma espada sem dificuldade.
Quando mais jovem, ensinaram-lhe a lutar e ser disciplinado. As atividades impostas para que honrasse o título de rei, mantiveram Rammir perfeito. Ao receber a coroa, abolira a parte inconveniente de sua vida, optando a desfrutar dos prazeres da vida como bem queria. O conhecimento necessário para defender sua própria existência jamais se apagaria, mas a frente de batalha nunca o veria impor uma espada. Não, aquele tipo de sacrifício não era para um nobre como ele. Nos Anos da Fúria, limitara-se a ser um estrategista ao lado dos demais líderes, enviando para guerrear os escudos de defesa de seu e dos outros reinos.
Fora uma época terrível, um tempo em que chegou a temer por Kiros e por sua vida, também. As intenções do responsável por trás dos Anos da Fúria, que visaram a dominação dos oito reinos, foram vis e fortes. Tão fortes que trouxeram muitas de suas resistências abaixo. Talon sofrera a destruição quase que total de suas fundações, ao passo que Arnsthern foi rendido em meio à ameaça de ser trazido à baixo.
A crise que vivenciaram, as mortes que Rammir seria incapaz de contabilizar, tudo contribuiu para o pânico. Se não fosse Nëeven, rei de Candara, apresentar o jovem Drahein como possível oposição ao terror ao qual eram submetidos, o Reinado como conheciam não mais existiria.
Drahein…
Ninguém daria um punhado de ouro pelas habilidades daquele elfo. Yensa fora taxativa ao desacreditar a possibilidade de um elfo como ele ser páreo para uma ameaça que nem seus exércitos conseguiam impedir o avanço. Mas Verena apoiou Drahein, e o elfo provou que valia bem mais do que sua aparência.
Drahein comandou táticas ofensivas que destruíram a intenção do inimigo, construindo a oportunidade de selar o destino das bestas do Sul.
Rammir admitia que a raça élfica o desagradava. Os prepotentes seres de orelhas deformadas e longevidade indefinida eram uma espécie que esbanjava uma altivez que subestimava todos os humanos.
Ironicamente, esses mesmos humanos se tornaram o motivo da queda de sua soberba. Os elfos foram massacrados, sem chances de grandes retaliações. Eles eram um povo astuto, mas não tão fortes depois de anos em guerra e, acima de tudo, sem os Dragões Negros do Norte.
Os anos de paz se seguiram um a um, alinhando décadas de uma calmaria que há muito tempo era esperada.
Até os casos de insatisfação surgirem.
Hoje corpulento e sem uma gota de heroísmo correndo em suas veias, Rammir queria que o mal fosse cortado pela raiz o quanto antes, mesmo que o obrigasse a sair de sua rotina na corte de Kiros e viajar quilômetros e mais quilômetros no intuito de forçar uma decisão favorável para que nada fosse alterado na serenidade que fora conquistada.
Ao constante sacolejar da carruagem, o rei de Kiros recordou-se da reunião e do herdeiro de Verena. Vance prometia problemas, sentira isso desde que colocara os olhos nele, na época de sua coroação.
Vance Holtzer remetia à imagem do pai — um homem improfícuo, inútil, cujo único propósito de ter se casado com Verena fora o de gerar um herdeiro com sangue real. Vance e Worgan eram extremamente parecidos fisicamente; e, no fundo daqueles olhos esmeralda, flamejava algo que incomodava Rammir.
Os idealismos de Worgan…
O homem era um fracassado, mas sempre almejou o poder. Ele deixou claro que desaprovava os extremismos dos líderes, principalmente no que dizia respeito ao extermínio de Candara, mas seus olhos cintilavam uma repulsa camuflada por sorrisos amarelos e indiretas, todas as vezes que sua esposa não estava por perto para censurá-lo.
Um homem traiçoeiro, assim fora Worgan.
Seu rebento tinha seu ímpeto e, para piorar, o poder.
As sobrancelhas grossas e falhas de Rammir se uniram em estranhamento ao escutar o relinchar repentino dos cavalos. A parada brusca da carruagem o projetou para frente. Sua raiva pelo tranco se dissipou ao ouvir as vozes dos soldados que o escoltavam pelo caminho de volta a Kiros.
Em uma mudança rápida demais, não eram mais vozes exaltadas e, sim, gritos que reverberavam pelo trecho da estrada de terra batida cercadas por duas grandes reservas florestais.
— Majestade! — um de seus assessores chamou temeroso.
Encarou o pânico incomum do outro homem. Suas mãos gorduchas se fecharam em punhos sobre o acento de um carmim aveludado, assim que o veículo começou a sacolejar.
Rammir trincou os dentes e recuou no acento. O piso da carruagem rasgou como papel, invadido por vinhas espinhosas que serpentearam ao redor de seu homem de confiança. Os gritos do assessor repercutiram sofridos enquanto a planta o esquartejava e o sangue esguichava, banhando o rei.
Com a respiração travada, Rammir abriu a porta e com o pé esbarrando no outro na descida afobada da carruagem, foi ao chão empapado pela água da chuva. A lama esparramou-se para os lados, o sangue que sujara o rei se misturou ao marrom do barro que agora maculava suas vestes pesadas, e todo seu rosto.
Aflito, ergueu-se espalmando as mãos na terra. Sua garganta ressecou e sua boca fina pendeu entreaberta, formando palavras de incredulidade as quais não encontraram voz.
A água da garoa alastrava o sangue dos corpos dos soldados esfacelados.
O cocheiro, seu assessor, seus soldados… todos mortos.
Agarrou-se ao instinto de sobrevivência e se colocou pronto para fugir. O grito de agonia veio em seguida, em meio a um enrosco cortante em seu tornozelo, que distribuiu a sensação de que múltiplas agulhas se enterravam e rasgavam sua pele.
Qualquer tentativa de se livrar foi impedida ao ser puxado. A dor do impacto sequer se comparou a de ser arrastado pela estrada, passando por debaixo da carruagem até o mato estar ralando sua pança enquanto suas roupas se esfarrapavam pelo caminho.
Um solavanco, em um movimento ascendente, rompeu a carne de seu tornozelo a ponto de Rammir berrar e ter a imagem nítida em sua mente do cipó o cortando até o osso.
Seu corpo gordo estava dependurado no ar, de ponta-cabeça, movendo-se como um pêndulo. A oscilação fez sua a cabeça se chocar com o tronco da árvore, causando uma dor que o cegou por um tempo.
Um ferimento ardia no alto de sua testa. O sangue pingava no solo, cada gota contando o tempo passado até que Rammir conseguisse abrir os olhos.
Mato, árvores, plantas, verde, verde, verde… e tudo invertido
Estava no meio de uma das florestas que margeavam a estrada principal. Quis se mover, mas seu tornozelo protestou e arrancou-lhe um gemido sofrido.
Tinha de pensar além do pânico, em sobreviver.
Girou a cabeça de um lado para o outro, procurando algo para ajudá-lo a se livrar da planta que o prendia de ponta-cabeça, e se assustou com um par de grandes olhos violetas que o observavam.
O rapaz estava a alguns passos, parado ali, bem ali, estoicamente como se esperando por algo.
Lutando contra a vertigem, Rammir reparou com mais atenção. Rosto fino, as orelhas pontudas, nariz afilado, longos cílios que adornavam aqueles olhos ametista…
O soberano de Kiros perdeu a respiração ao reconhecer a marca esbranquiçada na testa.
— Isso é impossível… — balbuciou Rammir.
Um sorriso enviesado fez o rei estremecer perante sua obscuridade.
— Isso parece impossível para você, escória? — o rapaz chegou mais perto.
O elfo puxou uma adaga do coldre preso à cintura e cortou o rosto do rei.
Rammir suportou a dor do rasgo. Nunca gritaria diante de um elfo de Candara. Desafiou o jovem com o olhar, louco para saber como ele escapara ao extermínio. Como, durante trinta anos, manteve-se incógnito? Todo e qualquer elfo de Candara havia perecido. Todos foram caçados e assassinados,
Diferente dos elfos estrangeiros, os de Candara nasciam com uma estranha marca esbranquiçada na testa, como uma cicatriz delicada que os distinguia dos outros de sua raça. Muitos diziam que aquela era a marca do toque abençoado de Phry’ra, e por isso eles eram reconhecidos como a raça élfica mais próxima da deusa. Não tão próxima a ponto de ela interceder por eles em meio a chacina — disso Rammir tinha certeza.
— Me pergunto como, depois de tudo, um de vocês conseguiu sobreviver — Rammir ponderou, a malícia sobrepujando agonia. — Existem outros dos quais devo tomar conhecimento para contabilizar suas futuras mortes?
— Estúpido humano — o elfo zombou. — Eu sou o único e, ainda assim, tenho poder para acabar com a sua vida miserável e as dos outros líderes.
— Centenas dos seus não foram suficientes para fazerem frente ao Reinado — rebateu em ironia. — Como julga ser capaz de nos derrubar?
O sorriso não desaparecia. O brilho naqueles olhos desprezíveis continha uma sede calculada; um desejo comum a ambas as espécies: tanto humanos quanto elfos partilhavam daquele sentimento vicioso chamado vingança.
— Duvida? — retorquiu o elfo, debochado. — Verena arquitetou a queda de meu reino e foi a primeira a prestar contas com Und’Fhye.
A insinuação não demorou a fazer sentido. Tudo se encaixava com perfeição: a flecha e o veneno embebedado na seta, o qual ninguém conhecia a procedência e nem conseguira achar um antídoto; o corpo da líder corroído pela toxina que se espalhou como ácido dentro de suas veias e a fizera agonizar por muito tempo até que o fim chegasse, lhe dando alívio.
— Você assassinou Verena!
O elfo confirmou dando uma risadinha.
— Lembra-se de meu irmão? Contaram-me que atravessaram o crânio dele com uma espada, pelas costas, por ter sido o primeiro a levantar a voz contra a destruição dos Dragões do Norte. Que bela maneira de agradecer ao elfo que salvou os seus traseiros parasitas. — Agachou-se encarando o rei. — Agora me diga: onde esconderam o semideus do Norte?
Um som abafado veio do fundo da garganta do rei, sendo seguido de outro, e mais outro, até que uma gargalhada explodiu ecoando pela floresta chuvosa, fazendo pela primeira vez o sorriso do elfo falsear. Rammir estava humilhado, pendurado de cabeça para baixo, seu corpo urrava de dor por todas as partes, mas não era o suficiente para impedi-lo de rir do inimigo.
Deveria ter desconfiado que o rapaz era irmão do herói elfo. Os petulantes olhos violetas eram iguais.
Engoliu as risadas no instante em que mais galhos da planta surgiram rastejando e enroscaram-se em um abraço sufocante em volta de seu corpo.
— Eu quero uma resposta, humano. Onde está o semideus do Norte?
— O semideus se foi, assim como Drahein e o seu povo detestável! — Puxou o muco do fundo da garganta e escarrou nas vestes do rapaz. — O seu rancor morrerá no dia em que todos os líderes de Renlohk estiverem enterrados. Só que… — riu debochado — você continuará a viver por anos e mais anos, sozinho, como prova da existência de uma raça que sucumbiu pelas mãos dos humanos que vocês sempre subestimaram.
Com uma rapidez voraz, os finos e espinhosos caules verdes da planta adentrarem por sua boca, ouvidos e narinas de Rammir. Engasgado, o rei teve a respiração bloqueada, enquanto seus olhos esbugalhados viam o elfo guardar a adaga no coldre e se afastar alguns passos.
Rammir não podia gritar, mas a dor era lacerante. Foi testemunha do desprezo no rosto singular do elfo quando ele parou junto ao tronco largo de uma árvore centenária e nela se encostou cruzando os braços. Sentiu seus órgãos serem destroçados pelos cipós que se expandiram furiosamente em seu interior, rompendo sua carne e explodindo para fora de seu corpo.
Seus olhos nunca se fecharam, e o que restou de sua carcaça ficou largada no chão úmido, em meio à floresta.
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