Tínhamos entrado no dojô e Kegawa nos ofereceu chá feito pela esposa, também idosa. Seus olhos tão fechados impossível de ver a íris, vestindo um belo quimono de vermelho leve e com estampas de pétalas rosas que lembra as belas senhoras que conheci com alguns de meus amigos, suas avós e até umas que encontro na rua.
O dojô? A entrada é adornada de longos tatames azuis, as paredes com símbolos, armas brancas e amuletos que não sei o que são. O cômodo nos fundos com quartos, conhecendo a sala de estar com uma mesinha de centro, paredes de tecidos com molduras em pequenos quadrados e o piso todo de madeira. Algo que quase recebi censura é que nós devemos tirar nossos sapatos para adentrar em seus lares. Sinto que estou viajando ao passado e conhecendo um tempo feudal onde os antigos costumes permanecem.
Está certo que a parte dos sapatos eles fazem até hoje.
Kegawa e Tanuki conversam tudo o que passei com os Onis, o bicho de lâminas e essa história de linhagem. A esposa de Kegawa traz na bandeja as xícaras de chá que estão cheirando bem, julgando ser chá verde. Ela nos serve com delicadeza e seu sorriso me deixa até tímido. Agradeci pelo chá e gosto de ver a xícara adornada de belos desenhos de pássaros e folhas, parecendo uma pintura à tinta.
– Você é um homem bonito – ela comentou.
– Obrigado novamente – encolho os ombros corado.
– Vem de tão longe?
– Não tanto – Tanuki intromete atrás de mim. – Desculpa interromper, mas nós viemos do outro lado.
– Ah sim! Entendi bem – ela levantou as sobrancelhas e tive a impressão de ver a cor de seus olhos. Fracassei.
– Estamos falando a respeito das Kitsunes – Kegawa puxou a observação. – Lembra a última vez que a vila viu essa criatura, Kaza-san?
– Kitsunes... – sua mão apoia-se debaixo do queixo. – Há anos... mais de duzentos anos. Nunca mais ouviu-se falar desses feiticeiros.
– Há anos, sabe-se.
Kaza se curva para cumprimentar e partir para a cozinha, talvez para seus afazeres diários. Eu olho entre ela e Kegawa, dois guaxinins e confuso com essa história, ainda mais que usou o termo “feiticeiro”. Me curvo para conversar com o senhor.
– Licença, Sr. Kegawa. Por que as Kitsunes são importantes?
Ele nada respondeu. Apenas deu um gole de chá e manteve os olhos fechados. Tanuki também disse nada, mas seu sorriso está lá se algo de ruim acontecer. Eu que tenho que ficar desconfortável com um assunto de singela importância. Conhecer um novo mundo que estava aqui o tempo inteiro ao cruzar um simples pergolado, vendo que Tanuki encolhe e voa; agora tenho uma estranha conversa sobre linhagem sanguínea como se eu fosse um abençoado e sortudo.
Sortudo impossível. Nem um coelho tem tanto azar assim.
Kegawa abaixa a xícara junto com a cabeça, os olhos fechados e refletindo consigo.
– Não é questão de importância, jovem – ele disse em tom baixo, mas rígido. – Kitsunes são criaturas audaciosas, definidas uma por uma tanto benção quanto maldição. São poderosos e ambiciosos, devastando regiões e inimigos facilmente, desafiando para provar a eles mesmos como mais fortes e umas delas em feitiçaria. Poucos são amigáveis.
– Então são perigosos? – pergunto.
– Maioria deles são. Entretanto, após a Era Kawasara, o número deles diminuiu drasticamente, fazendo muitos acreditarem que estão extintos.
– Desde a Era Kawasara? – Tanuki interveio interessado. Eu que estou fora do assunto histórico. – Apenas no Japão ou o mesmo na China e Coréia?
– Há Kitsunes lá também? – intrometo curioso. Achava que era curiosidade japonesa.
– Quero acreditar que eles se mudaram para novas terras e possível que seus reinos ergueram – ele tomou outro gole do chá. – Respondendo à sua dúvida, jovem, sim. Há Kitsunes na China e Coréia e ouvi dizer que são o oposto daqui. Os chineses são ambiciosos em conhecimento e sabedoria, sempre mantendo a espiritualidade e o balanço entre o bem e o mal. Nunca conheci uma, mas eles devem ser sábios Yokais que têm muito o que ensinar.
– Espera, Sr. Kegawa – novamente intrometo quando escutei a palavra mágica. – Você disse que Kitsunes são Yokais?
– Sim – ele respondeu severo e pesado, talvez incomodado com meus cortes. – Nos outros países, eles têm outros nomes. Yokais com grande capacidade de sabedoria e que podem se transformar e andar entre nós e você tem a similaridade de um que possa atrair os olhos da vila.
Confesso que suas palavras abriram minha mente para entender melhor sobre eles, mas arrepiando os pelos do que posso ser. Afinal, já que sou tão cobiçado pelos Yokais, imagina pela vila inteira se tiver um monte deles?
– Kegawa-sama – Tanuki tomou a palavra. – Você acredita que os Yokais estão o caçando por causa do sangue?
– Sim – eu completo –, eu fui caçado por três Onis e um de lâminas nos braços.
– Não sei – Kegawa ergue levemente a coluna e me olha. – Se você realmente tem esse sangue, melhor salvar sua própria pele. O poder de uma Kitsune é destruidor e muitos cobiçam por isso.
– Acredita que a Amaterasu-sama possa...
– Amaterasu?
Sua voz aumentou no grito sobre Tanuki que ficamos calados olhando espantados para ele onde testemunhamos seus olhos abertos de ira, vendo melhor seus olhos castanhos. Depois desse susto, ele relaxou os ombros e fechou os olhos num longo suspiro.
– Perdão. Há pouco tempo que não sinto sua presença na vila nem de seu irmão Susanoo-sama. Nossa vila tem sido uma amargura: aldeões assustados, poucas festividades, templos raramente cheios...
Tanuki e eu trocamos olhares sem dizer um “a”. Essa história está estranha. Tanuki me disse nada sobre a deusa e agora Kegawa diz sentir ausência dela. Nem sabia que ela passeava pela vila ou se fazia presente pela energia.
– O que está acontecendo, Kegawa-sama? – Tanuki perguntou. – Por que tanta amargura?
– Ninguém sabe, mas temo que um espírito forte esteja sobrepondo.
O clima ficou frio e sombrio com um assunto desse. Acho que nenhuma pergunta sobre a vila pode ser respondida de imediato, mas é curioso saber por que todos estão quietos ao relatar da ausência da sua deusa. Tudo está estranho não só para o meu lado, parece.
Depois da tarde conversa no dojô do Kegawa e do delicioso chá azedado pelo assunto dos Yokais e da ausência da Amaterasu, nome da deusa deles, eu preferi voltar ao apartamento e descansar. A vila melhor eu conhecer só no final de semana e com a mente em paz, o que é um teste.
São vinte e uma e doze e estou fazendo ioga para acalmar o espírito e esquecer um pouco dos problemas e do árduo dia. Tanuki está bebendo chá e me assistindo em silêncio com o vaso de porcelana ao lado. Ao menos, ele sabe que estou em exercício e ele respeita meu tempo, o que é belo de sua parte. O barulho só vem de fora, mas é mínimo. O parque está com algumas pessoas conversando.
Terminado. Deito no colchonete que trouxe de casa, inalando pelo nariz e exalando pela boca, descansando o corpo esticado no chão e alinhando a coluna. Tudo deveria ser esquecido em cinzas e concentrando na mente vazia...
Eu tento ter uma mente vazia, mas tudo hoje me deixou ansioso. Depois da longa respirada, levanto a coluna e sento cruzando as pernas com a cabeça erguida para frente.
– Parece perturbado, Mestre – Tanuki é um especialista de linguagem corporal ou apenas se importa comigo.
– Não compreendo. Toda essa conversa foi... estranha. Por que eu teria uma linhagem sanguínea de um poderoso Yokai e por que a vila está quieta?
Para essa pergunta, Tanuki não encontrou palavras. Olhei para ele neutralmente e ele reagiu da mesma forma. Olhei para frente e tentei esquecer dessa história respirando de olhos fechados. Minha cabeça está erguida como deve estar e meus olhos imaginam o escuro e a tranquilidade enquanto penso na deusa deles e na situação que a vila passa.
O silêncio é o nosso ambiente. Dois homens na sala sentados e a noite trazendo um bom vento no tempo quente, mas não trazem o alívio para a alma que quero.
Tanuki levantou-se do sofá colocando a xícara cuidadosamente no lugar – esperando que esteja vazia – e veio sentar ao meu lado, falando nada. Apenas sentou e evitou olhar para mim.
– Lhe entendo, Mestre – sua voz é baixa e carregava desânimo, mas nada que me fez olhar para ele. – Compreendo o que sente depois das vidas que conheci na minha era. Mas não pode deixar essas dúvidas afrontarem seu interior e fazer um inferno. Podemos resolver todos esses problemas e esclarecer todas as questões se quiser se arriscar comigo.
– Não tenho medo de arriscar. É de saber quem eu sou.
Fico quieto em espírito e boca. Ambos ficamos. Minha alma estava realmente abalada pensando demais. O silêncio retornou ao ambiente. Tanuki ficou quieto ao meu lado.
Apenas metade da semana aconteceu coisas demais que tento acreditar se estou vivendo mesmo ou em coma. Os Onis que tentaram me capturar, o cara das lâminas que causa tufões, o mascarado, o outro mundo, as conversas sobre Kitsunes e a possível linhagem sanguínea. Passei por tantos momentos runs que não sei se aguento quatro anos sofrendo por querer uma simples vida de conquistar o meu almejado sonho de zoologia.
Suspiro. Exilei frio como a morte. Abri os olhos devagar.
– Não quero uma vida onde fujo para sempre.
– Ninguém quer, Mestre – ele suspira também. – Também estou farto disso.
Ainda evito de olhar para ele, mas seu comentário chamou-me a atenção. Um imortal ficando cansado de ser perseguido por alguma razão? Ficamos no silêncio de novo. Seu braço cruzava meu ombro e puxou para um abraço, confortando e tirando parte do fardo. Ao seu lado nada trazia senão a companhia que parece precisar naquele momento difícil. Eu senti conforto que eu precisava e só agora olhei para ele. Ele sorria, obviamente. Típico, mas não sorria naquela forma psicodélica e contagiante. Seu sorriso estava sincero juntamente com o olhar.
– Estou aqui para isso.
– Eu sei – respondi. – Só estou...
– Cansado?
Tirou a palavra da minha boca. Apenas concordei; ele sabe muito bem.
Fico quieto ao seu lado, abraçado enquanto o silêncio seja a nossa companhia de verdades e desabafos numa vida louca enfrentando Yokais e tentando descobrir minha origem. Dizem que o silêncio é uma arma poderosa.
Alguns segundos passamos sentados e sinto um vento doce e pacífico aromatizar a sala com flores, me trazendo de volta à solidão que uma floresta traz. A paz, a solidão, a união...
Apenas depois que notei folhas voarem ao nosso redor em círculos e despertando minha atenção. Tanuki me puxou para mais perto do abraço como que quisesse mesmo estar perto de mim.
– Somos amigos nesse sonho. Não somos? – amigos e sonhos. É por isso que estou aqui em Sunomono. Para sua pergunta, não pude de evitar de estender o braço e o abraçar também, esboçando um sorriso.
– Sim, somos.
Minha sincera resposta para minha vida. Amanhã é desconhecido, o passado nós apagamos para viver o presente – se possível. Se tenho que viver assim então terei que lutar e descobrir quem eu sou e por que sou tão especial como dizer.
Talvez não só para os monstros. Para Tanuki, sou mais do que um Mestre; passo a ser seu único companheiro e amigo nessa jornada de conflitos e gratidão que ele sente. Para Mika, uma pessoa maravilhosa na qual sempre apreciei suas qualidades e ela me enxerga como um ombro amigo. Amorim o conheci há poucos dias e ele me considera um excelente amigo que tanto sonhara. O Kona... Esse está complicado de definir.
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