Hadria quase se divertia com a visão de Diana se debatendo. Sabia da fama que a antiga amiga havia construído nas Terras Mágicas, como uma das mais poderosas bruxas fora da alta hierarquia, e conseguir dobrá-la tão facilmente lhe trazia certa satisfação, principalmente por ter se acostumado ao ambiente do Conselho, onde todos menosprezavam suas capacidades.
Ainda assim, uma parte em seu interior, muito bem escondida e que ainda guardava com afeto as lembranças que compartilhavam, a fazia sentir culpa.
Mas não externaria essa parte. Tinha uma missão a cumprir.
Além disso, Diana havia aparecido em sua visão. Isso queria dizer que ela estava ao menos relacionada com o fim da magia, certo? Ela, que era uma adversária autodeclarada do Conselho.
Não que fizesse muito sentido. A pequena bruxa de olhos azul-esmeralda que Hadria tinha na memória era apaixonada por magia e por tudo que a compunha. Não imaginava que seria justo ela a destruir algo que amava por uma mera frustração pessoal.
Entretanto, antes que pudesse concluir seu raciocínio, sentiu uma pressão nas correntes que controlava, e percebeu que algo estava diferente.
Algo estava errado.
O corpo ainda era de Diana.
Mas não era mais ela quem estava ali.
Deixar o conglomerado assumir o controle dessa vez foi bem diferente. Antes, havia sido como uma projeção astral, como se seu espírito tivesse saído do lugar.
Agora, no entanto, se assemelhava a uma paralisia do sono. Ela ainda estava ali, e seu corpo ainda podia se mover.
Só não por vontade dela.
“Muito estranho”, constatou, depois de alguns instantes.
“Você se acostuma” escutou ecoando em sua mente. Conseguia ouvir os pensamentos da outra, exatamente como antes. Só que não era mais ela quem estava no controle.
Sentiu seu corpo se livrar das correntes, e, em seguida, viu novas correntes se formarem, mas a partir da própria magia.
Ou melhor, da magia do conglomerado.
Ainda era um pouco confuso.
Porém, se deliciou brevemente com a visão do rosto de Hadria incrédulo, enquanto duas correntes se agarravam em seu braço direito e tornozelo esquerdo. Não sabia a última vez que tinha visto tamanha surpresa expressa no rosto da antiga amiga. Ela gostou.
Mas a pergunta que veio não era a que esperava.
— O que aconteceu com a Diana? — indagou a conselheira, com ódio no olhar.
Assim como qualquer feiticeiro de alta classe na hierarquia, Hadria sabia como ler a magia de outras pessoas. Não era como Edna, que conseguia dizer os atributos a partir de uma rápida análise, mas conseguia reconhecer a energia mágica de quem ela conhecia bem. Seus irmãos, os membros do conselho...
Diana.
Não que fosse algo especial, ela apenas havia visto Diana muitas vezes em sua vida e tinha aprendido a reconhecê-la dessa forma.
E por isso, naquele momento, estava em choque.
Ela ainda via o corpo de Diana. Os olhos agora de cores diferentes, o cabelo dividido, o manto e as roupas escuras. Mas não era ela quem reconhecia ali. A magia havia mudado. Outra pessoa estava em seu corpo.
E Hadria nunca sequer tinha testemunhado algo assim.
— Ah, então você percebeu — declarou a mulher, com a voz que a feiticeira conhecia tão bem, mas em um tom muito atípico para sua dona original. — Sim, não sou a Diana. Ou melhor, não a que você conhece — concluiu, dando um sorriso travesso para Hadria. No entanto, antes que ela pudesse retrucar, foi pega com a guarda baixa, e a outra puxou as correntes que prendiam seu braço e perna, fazendo-a perder o equilíbrio e cair.
Praguejou, amaldiçoando a dor e a desatenção causadas pelo choque, e tentou se reerguer rapidamente, mas Diana (ou quem quer que fosse) correu em direção à janela e puxou as correntes junto, arrastando-a pelo chão.
Quando a bruxa alcançou a janela, soltou as correntes mágicas, desfazendo-as e pulando para fora dali. Hadria, que agora estava levemente dolorida e com alguns arranhões, se levantou com algum esforço e cambaleou em direção à janela, para ver onde o corpo de Diana havia pulado.
Contudo, quando olhou, não viu nada além de uma árvore a vários metros de distância, a vista da cidade ao longe e o céu estrelado irradiando luz junto de uma enorme lua cheia, sem pessoas à vista.
O jovem observou enquanto o sol nascia por entre os morros, admirando a paisagem que se construía acima das árvores da floresta com os primeiros raios de luz do dia. De onde estava, não podia sequer distinguir onde a vegetação terminava, mas a imensidão verde que ia aparecendo prendia-lhe o interesse como poucas coisas nesse mundo.
— Com a cabeça nas nuvens de novo? — indagou Amir, surgindo alguns metros atrás, com o tom inexpressivo de sempre. Ele era um pouco mais velho do que o resto do grupo, e era frequente que tentasse agir como o mais responsável, mesmo que ninguém forçasse essa expectativa sobre ele.
— Apenas admirando. O dia vai ser bonito hoje — respondeu o bruxo, sem desviar o olhar da vista que presenciava. Tinha medo de que, se virasse por um instante que fosse, perdesse algum detalhe valioso daquele nascer do sol.
— Bom, acho que os outros já estão quase prontos. Come alguma coisa e, assim que se sentir pronto, partimos.
— Sabe, Amir — começou Abaddon, que mesmo sem olhar para trás, sabia que o homem interromperia sua saída para escutar suas palavras. — Durante grande parte da minha vida, não consegui me sentir em paz. Era pressionado de muitas formas, cobrado de muitas formas, e pouco tempo restava pra que eu pudesse realmente admirar alguma coisa.
O jovem deu uma pequena pausa e, depois de dar uma última olhada no céu, respirou fundo e se virou para o companheiro, que o encarava.
— Mas nem tudo eram espinhos. Minha mãe sempre fazia questão de me mostrar beleza. No céu, nos gestos, nas histórias... Era uma mulher realmente incrível, e se tenho alguma humanidade hoje, é graças a ela. — Apesar do bruxo se considerar bom em ler pessoas, a expressão do homem mais velho permanecia impassível. Então, ele apenas continuou. — Tenho consciência da importância da nossa missão, afinal, eu quem decidi reunir o grupo. Mas é importante também, assim como minha mãe fazia, parar e contemplar o que é belo aos nossos corações, ou eles ficarão ariscos demais.
Uma leve brisa surgiu, bagunçando os longos cabelos de Abaddon e as roupagens de Amir. Este agora contorcia os lábios, como se estivesse pensativo. Após o que pareceu uma reunião de coragem, decidiu finalmente se manifestar.
— É um discurso bonito, Abaddon, mas pessoalmente não acredito que tenha alguma beleza ou ternura na nossa missão. Muito pelo contrário, na verdade.
O jovem abriu um sorriso, finalmente entendendo a questão. Colocou as mãos sobre os ombros do outro homem, fortes e expostos, e os apertou com força. Olhou no fundo dos olhos dele, que apesar da frieza, possuíam um quase imperceptível ar de preocupação.
— Ah, meu caro amigo — começou, e fez questão de abrir ainda mais seu sorriso. — Só queria falar um pouco de minha mãe. Mas se tem uma coisa que eu aprendi bem, é que as pessoas daquele país não mereciam a bondade dela. E continuam não merecendo. Por isso, nossa missão não é mostrar a beleza que ela me ensinou a ver, mas sim um pouco do que aprendi com meu pai.
— Seu pai?
— Sim. Ele era os espinhos — concluiu Abaddon, dando um último aperto no ombro do companheiro e enfim o soltando, começando a andar em direção ao acampamento.
Atrás dele, pôde ouvir um último suspiro de Amir, esse muito mais expressivo.
Autoria: Pedro Peixoto
Revisão e preparação: Luisa Peixoto
Título tipografado: Pedro Peixoto
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