Decidiu mudar a estratégia. Ao acaso, escolheu uma alma para acompanhar. Era seu reality show particular. A primeira vez que encontrou a alma, ela estava encarnada no corpo de um jovem adolescente em treinamento para a guerra. Assim como Eldur, o adolescente odiava a guerra, mas seu pai o forçava a participar com magia de controle mental. Achou que os dois, ela e o adolescente, tinham muito em comum. Eldur, como Divindade Suprema, não poderia simplesmente destruir a ideia de guerra na mente de seus filhos e criações, ou ela estaria interferindo no livre-arbítrio do universo, o jovem, um soldado sujeito a magias escravagistas posta nele pelo seu próprio pai, não podia se recusar a participar da guerra, ou seria seriamente castigado pelo contrato imposto. Essa mesma configuração se repetiu por outras seis encarnações, menos na última, a sétima que Eldur acompanhou, na qual a alma nasceu como uma mulher. A Divindade não sabia julgar se aquela vida havia sido a normal ou a mais feliz, mas o final foi o mais trágico comparado a todas as anteriores. Eldur não aguentou ser apenas uma espectadora, quando percebeu, havia uma bola de luz na palma de sua mão, era a alma daquela pessoa. Empalideceu, o suor frio escorreu por sua testa, o desespero deixou sua mente em branco. Como ela pôde ter feito isso? Quem, em sã consciência retira um mini marinheiro de dentro de um mini barquinho engarrafado e o segura em sua mão como se não fosse nada? Inacreditável! Isso não era a mesma coisa que retirar o livre-arbítrio de alguém?
Antes que ela conseguisse pensar em qualquer coisa, a alminha começou a acordar... e a chorar. Eldur estava em choque, não sabia o que fazer. Como se cuida de uma alma humana? Como se faz para um humano parar de chorar? Ela pescou aquela pessoa contra a vontade dela, a obrigou a estar em um lugar que poderia matá-la só por estar lá, e agora, essa alminha estava chorando. Espera, ela não tinha desaparecido, nem sido destruída, nem virado uma coisa não identificada e sem consciência... Tratava-se de um espírito especial? Pensando bem, quem havia criado esse tipo de humano tão desafortunado? Aquela alma poderia ser considerada a de um humano? Eldur sorriu involuntariamente, mas seu sorriso só fez com que o pequeno ser em sua mão chorasse ainda mais.
— Eu sei que você só quer descansar, mas o que você acha de ter mais uma chance para fazer tudo o que você quiser? Vai poder modelar o seu próprio destino, sem depender, nem ser controlado por ninguém. Você só vai ter uma missão: tente de tudo para não se arrepender de estar vivo. O que você acha? Ou, você pode ficar e me fazer companhia. Aqui não tem nada que possa te machucar e a paisagem é linda.
A pequena bola de luz tomou a forma de uma flor de pêssego, a voz doce e delicada como o som de sinos de vento respondeu cautelosamente.
— Vou ser útil se eu voltar?
— Útil para quem, minha criança? Você não deve nada a ninguém, pelo contrário, seu mundo foi cruel com você, eles que te devem alguma coisa. Por que você precisa ser útil para alguém?
— Eu... não sei. Eu só... eu só quero me livrar dessa raiva. Q-queria...
— Vingança?
A flor caiu em silêncio, parecia constrangida.
— Não há vergonha em querer vingança. Aliás, vingue-se.
— É que... eu não me lembro... Eu não me lembro de nada. Eu só tenho essa raiva e essa frustração e, de repente, vem a angústia. Eu não sei o que fazer com isso... Não sei o que fazer... Eu só... não sei.
— Eu posso fazer com que você esqueça tudo, se você quiser.
— NÃO! Não, por favor, não.
— Mas essas memórias só te machucam.
— Se eu esquecer qualquer coisa, desde a mais boba até a mais dolorosa, eu vou deixar de ser quem eu sou. Por favor, não tira eles de mim...
Eldur não sabia muito bem quem eram “eles”, mas ela entendia o sentimento. Além disso, não pôde deixar de ficar curiosa. Qualquer espírito tem o registro de todas as vidas que já viveu, a memória sempre é devolvida para o espírito no pós-morte, não havia precedentes de uma alma sem suas memórias. Certo, ela havia sequestrado ele antes dele poder passar pela Triagem, mas... normalmente a memória fica intacta. Silenciosamente investigou a Flor de Pêssego. Viu fragmentos de memórias embasadas, silhuetas desfocadas e um enorme selo desgastado. O padrão era antigo até para os parâmetros de Eldur, mas era bagunçado, como se um bebê tivesse posto várias camadas de texto uma sobre a outra e derramado água enquanto rolava sobre os papéis. Ela tinha que decifrar aquilo com calma e muita paciência. Para não prender a pequena flor ali sem ter necessidade, ela fez uma cópia idêntica da alma, com as mesmas configurações e memórias, porém, era inanimado. Guardou-a longe da vista da Flor de Pêssego e perguntou:
— Qual a sua escolha?
— Eu... quero voltar. Quero me vingar... de algum jeito.
Eldur não conseguiu se conter, seu sorriso era de um predador fascinado pela nova conquista. Levou a Flor até uma mesa de trabalho onde havia papel, tinta, pena, livros e também uma caixa coberta por um tecido azul estrelado. Ela estendeu o tecido na mesa e, de dentro da caixa, retirou sete pedras de diferentes formatos.
— Se você voltar, vai ser no melhor dia, na melhor ocasião!
Jogou as pedras ao acaso e se virou para olhar pela janela, sete estrelas brilharam.
— Hmm... vamos ver. Você vai voltar... No mês em que o primeiro habitante de Orion nasceu, no ano em que Deneb foi destruída, na hora em que Altair estava mais brilhante, na latitude de Regulus, na longitude de Polaris... bem no dia da primeira morte em Sirius...
— Isso é ruim?
— ...Não, é só... o mesmo dia, mês e hora, exatamente nove mil anos depois. Bem quando Vinur... Estranho.
Ela olhou para as pedras novamente. Obviamente, não eram pedras normais, elas eram a onisciência que Eldur havia guardado na esperança de se livrar do tédio. Junto ao manto estrelado e sendo manuseados pela própria Divindade, eram o melhor oráculo já existente. A sétima pedra estava em Vega, era a pedra da bênção. Ela foi a única estrela que se apagou como Eldur havia determinado, sem nenhuma interferência, isso por si só era tanto uma benção como uma maldição. Altair e Vega aparecendo juntos significava que boa parte daquela história se tratava de destino, tanto o passado quanto o futuro, havia um encontro pré-determinado, mas era algo ruim. Eldur sabia que isso estava relacionado ao selo nas memórias da alma. Ela traduziu a bênção de forma literal, era o último desejo da estrela, seus olhos verdes ficando brancos por um momento:
—Vega te abençoa: “Veja através das brumas, tuas memórias, teus fantasmas, não podem te causar mais mal do que já fizeram. Na margem, ao pé da montanha, não olhe para trás. O destino é teu para tecer. Não importa quem seja, se qualquer coisa entrar em teu caminho, destrua de maneira apropriada, seja pela espada ou pela pena. Aceite teu medo e tua raiva, pois as coisas são como são. Se as flores desabrocham na primavera e a neve cai no inverno, o ódio também tem seu lugar de direito no mundo e a vingança certa trará a paz ao coração conturbado. Sem medo, sem alegria, sem amor, sem indiferença, sem verdade, sem ilusão, sem tristeza e sem raiva, esvazie a mente e veja o mundo como ele é. Naquilo que parece mais patético, está a ascensão”.
Levou a Flor de Pêssego até Sirius e sussurrou sua própria bênção:
— Lembre-se...
A alma escorregou de volta para Sirius e Eldur suspirou de alívio. Pegou as sete pedras em sua mão e as pressionou contra sua boca, ampliando seu entendimento sobre todos os acontecimentos, olhou para a cópia da Flor de Pêssego, para além do selo, para sua origem, para todas as suas memórias e, por fim, para o dia em que a alma deveria voltar para o mundo mortal. Nesse momento, a única coisa que conseguiu dizer foi:
— Puta merda, o que eu fiz?
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