– Desculpa senhor, mas não entendi. – Disse timidamente Miguel. – Você falou estranho, não fez sentido.
– Eu não vou te contar o sentido, garoto. – Respondeu o velho rispidamente, levantando-se com a vasilha na mão. – Cada um tem que interpretar as histórias do seu jeito, absorver o que é importante para cada um. Se eu te contar o sentido da história, você não vai entender o que ela significa para você.
– Então posso ao menos ouvir de novo? – Insistiu o rapaz, cada vez mais confuso com as palavras do sujeito.
No entanto, o velho não disse mais nada, apenas virou-se e saiu da cabana. Miguel passou o resto do dia lá dentro, descansando. Nesse tempo conseguiu dar uma boa olhada naquele lugar e todas suas particularidades. Além do já mencionado antes, ele também notou uma cesta de palha que continha alguns ovos, mas não de galinha, pois esses eram maiores e mais longos. Atrás dele, na parede oposta à entrada, havia um grande escudo redondo, pintado com várias cores vibrantes que formavam imagens de várias cenas diferentes, uma em cada setor circular do objeto. Parecia ser algo cerimonial, ou até mesmo uma forma de gravar histórias. À esquerda do garoto jazia uma ânfora de cerâmica bastante simples, com alguns poucos detalhes entalhados na sua estrutura. Aquilo era tão diferente de sua casa ou mesmo de Falst. Cada objeto carregava uma história, uma sensação de mistério que Miguel nunca sentira antes. Isso atenuou um pouco sua preocupação, seu medo e seu rancor.
Por uma semana o velho tratou as feridas do rapaz, lhe deu comida e conforto. Na maior parte do dia ele ficava fora da cabana, fazendo sabe-se lá o quê, e voltava já na tardinha, para preparar o jantar e trocar os curativos de Miguel. Nesse tempo de comunhão o jovem fazendeiro descobriu que o sujeito se chamava Evaristo. Isso, porém, foi o máximo que conseguiu fisgar daquela estranha pessoa, pois ele não revelava nada de sua vida, seu passado ou sobre o que fazia, mas mesmo assim conseguiam manter conversas boas e agradáveis. Miguel aprendeu diversas técnicas de medicina observando o velho aplicá-las nele e também começou a tentar dar os primeiros passos na leitura, aprendendo o alfabeto com um livro que encontrou na cabana em meio às bugigangas lá jogadas. No exato dia em que a semana acabou, o velho acordou o rapaz no nascer do sol e falou de forma bastante séria.
– Você já está bem o suficiente pra sair daqui. Hoje será seu último dia nessa cabana.
Miguel, ainda sonolento e meio adormecido, não entendeu muito bem o que o velho disse, franzindo as sobrancelhas e fazendo uma careta, esboçando uma expressão confusa.
– Vamos! Acorde! Quero você fora daqui antes do meio dia. – Insistiu Evaristo, balançando os ombros do garoto.
– Como assim…? Mas por que tão repentinamente?
– Você é um peso morto, gasta meus recursos inutilmente. Até agora eu te ajudei e te abriguei porque você não tinha condições de sobreviver fora, mas agora tem, por isso não preciso mais te manter aqui.
– O que? Mas… se me mandar embora, pra onde eu vou?
– Eu lá sei? Volte pra casa, procure seu irmão, faça o que quiser, eu não me importo.
– Evaristo, eu não sei nem em qual direção é Falst. Como vou me orientar?
– Isso não é problema meu, ponto. – Disse ao virar-se e sair da cabana com uma cesta na mão.
Por longos instantes, que podem muito bem ter sido horas, Miguel permaneceu sentado no leito de palha, meio assustado e meio pensativo. Não sabia o que fazer. Por um lado, queria sair dali para procurar por Bernardo, mas não fazia ideia de onde ir e como fazer. Provavelmente iria acabar se perdendo e morrendo no meio do caminho. Mas… se o jeito era ficar na cabana, como poderia convencer o velho? Para Evaristo, o rapaz era apenas um peso, que consumia sem render nada. Talvez se ele mostrasse alguma forma de retribuição, como um pagamento pela estadia e comida, Miguel poderia conquistar mais algum precioso tempo ali, e dessa forma conseguiria aprender mais e partir mais confiante e seguro.
Tendo isso em mente, o rapaz levantou-se e arrumou-se para sair. Encontrou suas velhas roupas e as vestiu com cuidado para não reabrir as feridas. Uma vez pronto, ele afastou a cortina que servia como porta e saiu daquela cabana, a luz intensa do dia ofuscou um pouco seus olhos, e quando enfim conseguiu vislumbrar o lado de fora, deparou-se com uma terra bastante peculiar. Era um ambiente pantanoso, encontrava-se no centro de uma lagoa parada e de águas esverdeadas. Ao redor havia um bosque denso que avançava um pouco na área alagada. De alguma forma aquela paisagem causava um conforto mágico em Miguel, como se o fizesse sentir seguro e acolhido. Olhando para a lagoa, podia ver peixes nadando lentamente nas águas calmas e rãs sobre troncos e pedras tomando banhos de sol. Da água erguiam-se belas flores aquáticas, que eram visitadas por insetos de vários tipos, cujo som agregava àquela agradável sinfonia de prazer.
Logo abaixo da palafita havia uma canoa amarrada num dos pilares, dentro da qual jazia um remo de madeira. Quanto a Evaristo, não havia sinal algum dele por perto. Determinado a negociar com o velho, Miguel desceu até a canoa e desamarrou-a da cabana. Segurou o remo e tentou conduzi-la até uma das margens para procurar o senhor. Por mais que já tivesse visto barcos do tipo no rio que passa por Falst, nunca chegou a embarcar neles e muito menos navegar, e por isso seus movimentos eram desengonçados e amadores. Ao chegar numa das margens da lagoa, amarrou a embarcação num ramo de uma árvore próxima e pisou em terra firme. Diante dele jazia um bosque denso, mas que não era nem um pouco assustador, e muito menos privo de luz. O que o tornava diferente eram as pequenas luzes brilhantes que pareciam surgir aqui e ali, a estranha e sinuosa trilha que parecia existir e não existir e que levava sabe-se lá para onde. Era o sussurro de uma brisa morna que chamava Miguel, e assim ele foi, adentrando no misterioso e curioso ambiente. Nunca viu um lugar assim antes, parecia não pertencer a este mundo. Comparado aos bosques de Falst, esse parecia estar mais vivo e vibrante, mais completo e incógnito. Sendo um bosque pantanoso, durante o percurso o jovem fazendeiro deparou-se com poças e pequenas lagoinhas entre as árvores, nas quais sapos e rãs de vários tipos nadavam, comiam e descansavam. Sob as grandes copas, o sol ficava obstruído, mas as folhas deixavam espaços o suficiente para iluminar o chão quase que de forma etérea. Os raios finos e puros de luz que desciam até a água parada ou a terra coberta de folhas tranquilizava ainda mais o ânimo de Miguel, que em seu vislumbre estupefato revelava sua inocente ignorância do mundo, como quando uma criança vê algo pela primeira vez. O rapaz podia ouvir suaves cantos de passarinhos escondidos no labirinto esverdeado, ou também os sons de coelhos e cervos. Em suma, parecia que a natureza reuniu-se em todos os seus aspectos para formar um lugar paradisíaco.
Tão encantado estava Miguel com aquela pintura apaziguadora que nem mesmo percebeu que caminhava ao longo da trilha desconexo com a realidade, sem saber onde estava indo. Quando finalmente recobrou a consciência de si e escapou da magia hipnotizante do bosque, viu-se totalmente perdido entre as árvores. Não fazia ideia de quanto caminhara nem por onde caminhara. Subitamente, um temor começou a tomar o espaço da tranquilidade que havia em si e o rapaz apressou o passo, à procura da saída ou do velho. Felizmente, não tardou muito para ouvir a voz rouca de Evaristo cantarolando um tom alegre. Lá estava ele, em comunhão com a natureza, colhendo cogumelos e colocando-os dentro da cesta de palha.
– Evaristo! Finalmente te encontrei! – Gritou aliviado o jovem, correndo de encontro com o senhor, que ergueu o tronco e fitou-o com um olhar surpreso.
– O que faz aqui? – Perguntou calmamente.
– Eu estava te procurando, senhor, mas acabei me perdendo nessa floresta estranha.
O velho deu uma breve risada baixa, mas gentil, sem intenção de caçoar.
– Não é difícil se perder nas maravilhas do Bosque dos Sapos, é preciso muito cuidado e atenção afiada para não ser devorado pelas belas árvores e nunca mais voltar.
Miguel ficou um tanto confuso com aquela explicação, como era de costume ao ouvir as estranhas e misteriosas palavras de Evaristo. Por isso tentou ignorar e foi logo dizer o que queria dizer.
– Evaristo, eu quero ficar aqui por mais tempo e…
– Nem pensar! – O velho interrompeu abruptamente, mas Miguel não parou de falar.
– E para isso vou ajudar você com seus trabalhos, para não comer e dormir de graça!
Evaristo não respondeu imediatamente. Ficou alguns segundos fitando o rapaz, com uma sobrancelha erguida.
– O que você sabe fazer?
– Eu sou um fazendeiro, sei fazer trabalho manual, posso plantar, coletar, posso até tentar caçar se o senhor quiser.
– Hmm… sabe cozinhar?
– Um pouco…
– Venha comigo. – Disse então o velho, virando-se e seguindo por uma trilha entre as árvores.
Miguel seguiu o velho, tentando manter-se próximo a ele para não se perder. Chegaram numa clareira bem iluminada. A terra era meio barrenta e fazia os pés afundarem um pouco, e era coberta de grama. No centro havia uma grande pedra retangular, cortada e polida para ter faces retas, ou originalmente retas, pois partes já haviam desabado e desgastado. Na rocha estavam entalhados muitos símbolos que Miguel pôde reconhecer como os mesmos que encontrou no livro que usou para tentar aprender a ler. Essas gravuras cobriam a face inteira da pedra. Evaristo aproximou-se dela e apoiou a mão delicadamente sobre sua superfície fria e lisa.
– Está vendo essa rocha? É um pedaço de história que eu protejo há muitos anos da malícia do tempo. Vou te abrigar com uma condição: você vai deixar de ser um fazendeiro ignorante, vai largar a enxada que te prende à terra e vai aprender a língua aqui inscrita. Vou te fazer alguém capaz de pensar por si próprio e tomar as próprias decisões, e assim, quando ir embora, você saberá o que deve fazer e para onde ir.
Miguel apenas afirmou com a cabeça lentamente, erguendo as sobrancelhas e esboçando uma expressão confusa. Não havia entendido metade do que o velho dissera, mas concordou mesmo assim.
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