Na Floresta de Narcell, a concentração de Vance estava focada na caçada.
Galopava sobre sua montaria entre as árvores. O barulho dos cascos ecoava abafado em contato com as folhas secas na terra. A tarde ensolarada infiltrava-se pelas copas das árvores clareando a área verde com raios mornos.
O vulto diferente, se movendo rapidamente na mata, fez Vance puxar o arreio. Os demais nobres não perceberam sua parada brusca, inspirados pelo instinto de competição que os guiava. Com o cenho franzido, Vance guinou seu cavalo e cavalgou atrás daquele vislumbre, chegando quase ao perímetro da borda dos penhascos, onde as árvores eram escassas e a vegetação mais rasteira.
À distância, viu homens em cerco a uma pessoa. Ainda que ferozmente, entre golpes e chutes, a vítima manejava um punhal longo, impondo resistência.
Vance açoitou a montaria e disparou. Ergueu a lança de caça, atirando-a. A arma fincou na terra junto à quadrilha como um alerta.
— Quem são vocês e o que fazem nas minhas terras? — Bem perto dos agressores, Vance desmontou em um pulo.
Os homens se separaram como em um acordo mudo. Dois se deslocaram para atacá-lo e o restante permaneceu investindo contra seu alvo inicial. A autoridade de Vance como soberano de Cérix, reconhecida pela insígnia real no peito e no braço de sua vestimenta, foi ignorada pelos bandidos assim com seus questionamentos.
Um machado passou rente a cabeça de Vance, o último aviso para que recuasse. Vance desembainhou a espada, se defendendo do golpe de outra lâmina afiada.
Apesar de nunca ter efetivamente precisado, recordava-se de cada movimento de defesa, detalhes que lhe foram ensinados durante os anos em que treinara para ser apto a carregar a coroa. Sua mãe fora tão mortal nos Anos da Fúria quanto qualquer soldado de seu exército, ou quem sabe mais.
As habilidades de Vance nunca haviam experimentado a guerra, como Verena. Esperava que jamais houvesse batalhas para ter de manchar suas mãos de sangue ou fazer seu povo sofrer. Mas cada poro de seu corpo vibrava quando estava em meio à luta.
Revirou o ataque da espada do inimigo e chutou o corpo parrudo para longe.
As espadas se chocaram mais uma vez.
Medindo forças com a lâmina do inimigo, Vance girou o corpo. A arma rival deslizou sobre a sua, direcionando o golpe para o segundo oponente que erguia a espada para atacá-lo por trás. Entranhas foram perfuradas, o bandido soluçou e esbugalhou os olhos para o companheiro como se o acusasse de algo.
As espadas se reencontraram. Vance foi atingido por dois chutes seguidos em seu abdômen que o jogaram de costas em uma poça enlameada.
Girou para o lado para evitar a espada que desceu furiosamente na direção de sua cabeça. A lâmina prateada enterrou-se no solo, e Vance mirou seu ataque seguinte nas pernas de seu oponente, manejando a espada para que as atingisse, mas foi surpreendido com um forte chute nas costelas.
Sem tempo para recuperar a respiração, Vance rolou para o lado. Apoiando a palma da mão no chão, impulsionou-se a ficar de pé.
Ofegante e com uma fina transpiração começando a escorrer por seu rosto, Vance assustou-se com o novo ataque direto de espada. Bloqueou-o e, em um golpe mais bruto, o rei derrubou o adversário para trás. Vance sabia que se tratava do momento perfeito para render ou eliminar o outro homem.
— Acabou por aqui! — um dos bandidos gritou.
Vance embainhou a espada e se virou, enquanto os criminosos fugiam. Seu olhar recaiu sobre a pessoa que acabara de ajudar, tão sem ar e suado pela luta quanto ele.
Suas sobrancelhas escuras franziram.
Conhecia aquele rapaz.
Jorern tinha o rosto sujo de terra, ao lado das faces pendiam algumas das mechas castanhas que se desprenderam da trança durante a luta. O punhal permanecia firme na mão do mais novo que, com a outra, amparava o braço.
O enrugar na testa rei aumentou ao notar o vermelho que manchava os dedos do rapaz.
— Você se machucou. — Apressou-se até ele.
— Estou bem. — Jorern guardou o punhal no coldre de seu cinto e curvou-se. — Obrigado por Vossa ajuda, Majestade.
Jorern tentou conter o silvo de dor que o movimento causou.
— Venha comigo — ordenou Vance. — No palácio mandarei que cuidem do…
Jorern endireitou-se e sorriu, mas a palidez em seu rosto denunciava sua condição.
— Eu não…
O sentido das palavras se perdeu e Jorern cambaleou.
— Jorern! — Vance o segurou para que não caísse.
O rapaz respirou fundo e engoliu um pouco da saliva como se estivesse com a boca seca.
— Eu vou ficar bem, Majestade. Acredite.
Vance olhou dentro dos olhos dilatados do rapaz e balançou a cabeça.
— Você não está bem, garoto. — Vance segurou a mão de Jorern para poder passar o braço por baixo de seu ombro e notou a quentura que emanava da palma. — Está doente?
Estava quente, muito quente.
— Não… que eu saiba.
Os olhos azuis perderam o foco e as pálpebras se fecharam, coincidindo com o colapso do corpo magro. Vance chamou repetidas vezes por seu nome, deu-lhe algumas leves sacudidas que de nada adiantaram. A palidez opressora somada ao suor frio dominava o semblante desacordado.
***
Sawlnier desaprovou sua aventura — fora como ele chamara seu resgate. Corrigira-o de imediato e apontara que protegera a vida de um inocente, sem sucesso em desmanchar a carranca de reprovação daquele homem.
— Vossa Majestade poderia ter se ferido — Sawlnier ainda o criticava, enquanto Vance terminava de se trocar. — E se fosse uma armadilha?
Sawlnier lidava com Vance desde a infância; fora seu tutor e atuava como seu homem de confiança exercendo grande influência sobre ele. Entretanto, nada do que ele dissesse mudaria o que fizera. Teria pulado do mesmo jeito de sua montaria e lutado para ajudar quem quer que estivesse em perigo, mesmo com sua vida em risco.
— Está exagerando, Sawl.
— Exagerando? Foi imprudente e-
A porta se abrindo cortou o julgamento de Sawlnier, o olhar de censura que o assessor lançou para a criada, a fez se encolher.
— Majestade, desculpe interrompê-los, mas um mensageiro acabou de chegar e entregar esta carta — ela apressou-se em justificar seu erro de entrar no quarto sem bater, mesmo que fosse óbvio para Sawlnier o tipo de intimidade que ela dividia com o rei. — Parecia aflito e pediu urgência para que Vossa Majestade a lesse.
— Servir o rei na cama não lhe dá o direito de entrar nos aposentos sem se anunciar e receber permissão — Sawlnier tomou a frente, tirando a carta da mão da serviçal. — Não repita o mesmo erro.
Vance não tirou a razão de Sawlnier. A garota estava se acostumando demais a sua cama e Sawlnier tomaria as medidas para afastá-la assim que terminasse de repreendê-lo.
— Tem o selo de Kiros. — Sawlnier entregou a correspondência ao dispensar a servente.
Vance quebrou o selo e leu a mensagem. Foi difícil de digerir o que estava escrito.
— O que houve, Majestade?
— Rammir foi encontrado em uma das florestas próximas a Kiros. Assassinado.
— Como? E guarda dele? Como deixaram isso acontecer?
— Magia — suspirou, reticente. — Estão procurando o culpado. O funeral foi abreviado e haverá uma celebração de coroação para Enek.
— Isso vai agravar o banimento da magia.
Queria poder contestar Sawlnier, mas, assim como o ex-tutor, Vance acreditava que a magia ganharia o continente por bem ou por mal.
Solicitou a Sawlnier que enviasse uma mensagem de condolências e um convite para que, após a coroação em Kiros, Cérix fosse casa para a apresentação do filho mais velho de Rammir como um dos Sete.
O gosto amargo do assassinato de outro rei trouxe de volta a lembrança da morte da própria mãe. Seria demais imaginar que a mesma pessoa estaria por trás dos assassinatos? A distância de anos de uma morte para outra tornava absurda a sua desconfiança, mesmo assim…
— É muita coincidência — sussurrou para o quarto vazio.
As batidas na porta o impediram de se afundar nas recordações obscuras do dia em que Cérix perdera sua rainha.
— Majestade, trago noticiais sobre o rapaz.
Autorizou a entrada e Balsart o reverenciou.
Esperava por aquele homem, por seu atestado. O médico levara mais tempo para cuidar do ferimento e diagnosticar a possível doença que debilitava Jorern do que Vance esperava.
— Como está o garoto?
— O rapaz teve muita sorte de Vossa Majestade prestar-lhe socorro.
— O ferimento não pode ter sido tão grave assim. — Ele próprio checara o machucado; um corte simples no braço que sangrara um pouco, mas nada mortal. — Ele está doente?
— O machucado é superficial. Foi veneno que fez com que eu demorasse a terminar de atendê-lo.
A expressão do rei passou de intrigada à chocada, e, embora diversas perguntas passassem por sua cabeça, Vance não interrompeu o médico.
— A lâmina que o feriu estava embebedada em veneno, Majestade. Identificar a procedência da toxina leva tempo, como o senhor bem sabe.
Gostaria de não saber. O passado, dessa vez, ressurgiu com toda a força.
— Ele vai se recuperar?
— Graças a Isn’ra, tínhamos o soro para tratá-lo. Ele precisará de repouso, mas se recuperará se o fizer e continuar sendo medicado.
— Cuide para que seja bem-tratado.
O médico curvou-se e se retirou.
Vance foi atormentado pela nova coincidência que surgia quase como uma afronta.
A rainha Verena morrera envenenada.
Em sua lembrança ficara marcado o momento em que a flecha súbita atravessara o peito de sua mãe, até vê-la morrer agonizando pelo veneno que corroera seu corpo. O sofrimento de Verena — e o seu por não ter o poder de salvá-la —, fazia parte de uma dor incurável.
Fora Balsart quem auxiliara sua mãe após o atentado e quem determinara que nem todo o conhecimento em medicina seria suficiente para reverter o efeito do veneno.
Uma toxina desconhecida — Balsart divulgara na época. Até os dias atuais, ainda que continuassem com os estudos sobre o veneno, nada fora descoberto sobre a origem ou um antídoto para ele.
O veneno que matara a rainha não era o mesmo que envenenara aquele rapaz. As circunstâncias eram dispares, mas odiaria ver outra pessoa morrer sofrendo como sua mãe.
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