Façamos, agora, um pequeno desvio. Como prometido, falaremos sobre a Primeira Ceifeira ― ou Deusa da Morte, caso prefira ― e como ela fundou a primeira empresa de Sirius.
Imediatamente, uma mensagem foi enviada para a Deusa da Morte mais próxima de Vinur. Essa Deusa da Morte em específico foi a única deusa abençoada pela criança de Eldur. Além de ser uma mortal que havia ascendido como uma Norn. Ela, como a primeira de sua função, era a existência mais próxima de um Pilar e uma ótima substituta para Vinur, que havia desaparecido sem deixar rastros. Ao receber a notificação via matriz de comunicação, a deusa de cabelo preto, pele bronzeada e olhos vermelhos, engasgou com seu katsudon. Depois da benção, ela não tinha recebido uma mensagem sequer de Vinur, aquela divindade sempre viria pessoalmente vê-la. Estava perplexa, até por que, a mensagem não era do Pilar da Morte, mas de Eldur, a mãe de todos os pilares, da qual ela nunca havia ouvido falar. Seu estado de espanto durou alguns segundos, o katsudon durou menos ainda. Enfiou o resto da comida na boca, bateu as mãos uma na outra um pouco acima da cabeça e saiu correndo catando um casaco pelo caminho:
― Shin! Shin, vem aqui! Ah! Você tá aí, ótimo. Aqui, pega essa pedrinha e repassa a ordem de triagem dessa alma pra Moni. Eu vou sair, não me espera!
― Espera, Aerys-Sama! Onde você vai dessa vez?
Aerys gritou a resposta de longe, com metade do corpo já dentro do portal de teleporte:
― Visitar a mãe de alguém. Eu preciso levar presentes!
Abandonada com a “pedrinha”, Shin estava tentando descobrir quem era “Moni”. Olhando atentamente, tratava-se de uma peça de jade que permitia o livre acesso de uma alma ao mundo mortal, aquela, definitivamente, não era uma pedrinha qualquer! De qualquer forma, a única “Moni” que ela conhecia era a Supervisora Mônica, que era responsável pelo setor de triagem das almas.
― Se eu estiver errada, a culpa é da Aerys-Sama.
Shin foi para o seu escritório e depositou a jade em uma placa de madeira escura com uma matriz de teleporte entalhada meticulosamente. Puxou o celular e digitou uma sequência de três números, a voz monótona e anasalada veio logo em seguida:
― Central de Atendimento aos Ceifadores, Supervisora Mônica falando, bom dia. Em que posso ajudar?
― Solicitação de triagem de alma.
― Número do Registro de Ceifador e número do pedido.
― Ceifadora Shin, RC: quatro, oito, quatro, cinco. Pedido especial, número: zero, zero, treze. Teleporte número: ... sete, um, cinco, dois, meia. Mundo: dois, cinco, três.
Ela aguentou os longos momentos de silêncio intercalados com o som dos dedos correndo pelo teclado. Shin estava jogada na cadeira reclinável, quase deitada com os pés apoiados na mesa e a cabeça jogada para trás.
― Synthia, eu preciso que você pare de se apresentar como “Shin” quando estiver trabalhando, isso sempre me atrapalha.
― Qual foi, Mônica? Você já devia ter decorado meu RC, fala sério! Há quanto tempo a gente já se conhece? Ah, é! O suficiente pra você me chamar de “Shin”!
― Isso é ridículo, eu não vou fazer isso. Seu problema com seu nome não tem nada a ver com o trabalho, evite coisas desnecessárias. Nome do remetente do pedido.
― Você é a única que me chama assim! É... nome... Quem? Eldur? Quem é Eldur? Identificação... Oh, merda....
― Evite palavreado vulgar no trabalho, Synthia.... Synthia?... A identificação?...
― Terminei! Finalmente! São cem zeros, ponto um.
Shin ouviu Mônica engasgar, a caneca rolando e um grito abafado de dor. Ela, que não bebia café há seis horas, riu de Mônica porque ela, provavelmente, havia derrubado sua caneca com o susto.
― Confirmando: Cem vezes o número zero, ponto e o número um, certo?
― Certo.
Esperou um bom tempo por Mônica com o celular no viva-voz, ouvindo o bater frenético na única tecla. Synthia queria muito rir.
― Efetue o transporte, por favor.
Shin quase caiu da cadeira de susto, mas conseguiu se segurar a tempo. Depositou energia espiritual na placa de madeira e a ficha de jade foi transportada para a Central. A última coisa que ouviu da chamada foi uma mensagem eletrônica: “Você utilizou o Serviço de Atendimento ao Ceifador. Por favor, deixe sua avaliação para melhorar nossos serviços após o beep. ♡”
― Mas que merda... A desgraçada desligou na minha cara... Filha da...
***
Vinur criou um sistema para gerar novos ceifadores, que era através de favores e dívidas, quem tivesse uma dívida com um ceifador, se tornaria um após a morte. Quando Aerys foi encarregada de gerenciar um grupo de ceifadores que trabalhavam com uma determinada quantidade de mundos, ela aplicou o sistema de pirâmide: o funcionário que recrutasse mais almas teria um maior ranking. A razão pela qual ela fez isso foi muito simples: diminuir o trabalho dela.
O método acabou sendo adotado por outros deuses da morte, devido a sua eficiência.
Outro meio de subir de ranking era mais fácil: ser o favorito de um superior. Entretanto, Mônica se destacou apenas por sua eficiência. Ela havia se tornado ceifadora para ter mais duas horas de vida, tempo o suficiente para concluir seu relatório e entregá-lo sem erros, dentro do prazo. Ao assumir o cargo de ceifadora na Central de Ceifadores (CC), ela foi colocada no escritório, ninguém queria trabalhar na papelada, mas Mônica sempre levou seu trabalho a sério. Executou com perfeição suas tarefas e melhorou o ambiente de trabalho, tornando o escritório da CC o mais eficiente e organizado o possível. Por causa dela, a maioria dos ceifadores almejava um cargo no escritório. Passou anos, séculos, executando sua função com perfeição, ela, sua echarpe, seus óculos gatinho e seu laptop preto. Sempre com os lábios ligeiramente crispados e um coque banana impecável.
Todo o seu esforço estava prestes a ruir por causa de um pedaço de jade. Aquela não era apenas uma ficha criada pela Divindade Suprema de Todo o Universo, Governante da Vida e da Morte, Mãe dos Pilares Originais, não, não era só isso. A alma a qual a ficha se referia tinha um único registro de nascimento há mais de dois mil anos, mas, segundo o relatório enviado pela própria Eldur junto a jade, aquela alma havia vivido por, pelo menos, seis vidas. Entrando em contato com o almoxarifado da Biblioteca de Falinn, a alma também não possuía um livro, ao menos, não um que se pudesse acessar livremente. Não havia como devolver as memórias de alguém que não possuía um livro, e isso não tinha precedentes. Tentou até recorrer ao skuggi da alma, mas ela não tinha um, o que, também, não tinha precedentes. Mônica estava desesperada. Seus dedos rápidos voavam pelo teclado tentando buscar uma solução que não existia, sua resistência mental tão arduamente construída estava colapsando na velocidade da luz.
― Ei... psiu... Mônica!
Ela quase pulou da cadeira com o susto. O homem que estava a sua frente era como uma sombra, uma sombra com olhos e sorriso medonhos.
― Eu posso cuidar disso por você. Tenho todas as memórias dele, não tem problema.
Ela concordou de imediato, sem nem pensar em como aquilo havia entrado em seu escritório. Só queria se livrar desse trabalho. Anotou o registro de seu benfeitor, deu o aval para o processo e definiu que o ceifador que lidaria com o resultado da triagem seria escolhido por Aerys. Depois que a tempestade se acalmou e seu escritório estava vazio novamente, Mônica percebeu o número de registro da sombra: zero, ponto, um, ponto, três, traço, zero. Esse era o registro de um tómur.
― Puta merda, o que eu fiz?
É uma pena que, quando se trabalha diretamente com deuses, rezar se torna fútil. Nesse momento, ela só podia fazer uma coisa: se enterrar em trabalho até esquecer. Sem férias, sem pausa, ela apagou toda sua individualidade e se entregou ao trabalho como quem pula de um precipício. Perdeu a noção do tempo, fazia seus relatórios, recrutava pessoal, processava as almas; tudo como um robô. Não pensava, só trabalhava. Era perfeito, a paz reinava em seu coração, inclusive começou a fazer pausas nos últimos anos e aceitava trabalhos externos. Até que uma montanha de músculos vestindo um terno e gola alta arrombou a porta de seu escritório com o pé, calçado em sapatos sociais.
Ela quicou de raiva na cadeira e engoliu um bocado de xingamentos tentando se acalmar, mas seus nervos já estavam em frangalhos. O invasor, usando óculos de sol redondos, se aproximou de sua mesa devagar e ameaçadoramente. Pareceu demorar uma eternidade. Mônica estava paralisada de medo, só queria que aquilo acabasse logo. Sem conseguir se controlar, ela suava frio, seus dedos se mexendo rápido como se estivessem digitando. Abria e fechava as mãos para disfarçar, também tamborilava as pontas dos dedos na testa e desviava o olhar. Quando o titã de dois e cinco de altura finalmente chegou na bancada, ele apoiou o cotovelo esquerdo e jogou uma prancheta com um pá incrivelmente alto. Um olhava por cima dos óculos, a outra tentava se recompor. Ela sabia exatamente que ele era, o ceifeiro novato tinha uma fama considerável. Mônica era obrigada a lidar com ele regularmente, nunca se acostumou àquela aura assassina que sempre o cercava quando estava trabalhando como ceifeiro.
― Há quanto tempo, Mônica.
A voz grave fez arrepios percorreram seu corpo, ela sabia que o ceifeiro de cabelos cinzentos fazia isso de propósito. Mônica assentiu com a cabeça, para sua grata surpresa, ela não tinha forças nem para segurar uma caneta, muito menos um copo de água. Com toda sua coragem reunida, conseguiu se forçar a falar a única palavra:
― Assunto?
― Conclusão de triagem. Vim retirar uma alma. É melhor isso ser rápido, hoje é aniversário do Shizuicchan e eu ainda tenho um bolo pra assar.
O fio de razão que ela tão desesperadamente havia mantido se partiu, largou a compostura de mão e se jogou na cadeira. Já estava morta, o que mais ela podia perder a essa altura? Desaparecer completamente, ter sua alma destruída? Por quem? Por aquele fedelho de menos de um século de vida? Ela é Mônica Galanis, Supervisora Chefe da maldita Central dos Ceifeiros há 2 mil anos, do que ela deveria ter medo?
― Olha, Shiki, pelo bem da criança, eu espero que você demore muito aqui e não consiga fazer seu famoso bolo de sálvia, sabugueiro e laranja. Mas, infelizmente, você pode demorar o tempo que for, porque, no mundo mortal, só vão ter se passado alguns segundos.
Ele levantou as duas sobrancelhas e endireitou a postura, a encarando por alguns segundos. Mônica não aguentou e perguntou:
― Que foi?!
― ... “Mô”. Você agora é “Mô”.
― “Mô”?
― “Mô”.
― Prefiro “Moni”.
― Vai ser “Moni” quando fizer o seu trabalho direito. Punição por falar mal do meu bolo e me chamar pelo nome. É “Arcano”, coisinha irritante.
Ela perdeu totalmente a paciência, precisava de um café. Levantou calmamente, andando em seus saltos de sola vermelha, serviu duas canecas de café e voltou sem pressa, sentando na cadeira. Passou uma caneca para Arcano, dizendo.
― Eu te chamo de “Arcano” quando eu reencarnar.
― Nossa, você demorou todo esse tempo pra pensar nisso?
― Vai a merda.
― Eu tô aqui, não tô?
Os dois riram e tomaram o café.
Por motivos de esclarecimento, devo interromper brevemente a narrativa até agora, este humilde narrador seguirá se dirigindo a pequena montanha de músculos como “Arcano”, pois o mero narrador que vos fala tem medo da discrepância absurda de massa muscular e habilidade de combate entre este pobre indivíduo e aquele grande lince. Eu não tenho a coragem da Senhorita Mônica. Agradecendo a compreensão, seguimos com o Senhor Arcano ligeiramente emburrado, pois:
― O bolo é de chocolate, não de laranja.
― Então ele não vai ter gosto de remédio, mas vai ser pimenta pura e amargo. Treze anos, né? Diz pro Shizui que a tia Mônica vai mandar, em três dias, um livro de magia arcaica sobre a teoria avançada da materialização física da energia espiritual.
― Por que você gosta de estragar a surpresa?!
― Não é melhor que ele já saiba o que vai ganhar e não crie expectativas inúteis? Eu prefiro.
― Você é estranha.
― Shiki, eu não quero ouvir isso logo de você.
― Vai a merda.
― Bom, eu trabalho aqui, não trabalho? Falando nisso, eu preciso do seu RC, identificação da alma que vai ser retirada, número do pedido e número do mundo.
― Pra que você precisa do meu RC? Você acabou de me chamar pelo nome.
― Não enche o saco, garoto, é o protocolo. E vê se me respeita, eu já estava morta e seu mundo nem pensava em nascer.
Ele se jogou na mesa soltando um ugh, seu brinco de esmeralda colombiana emaranhado no cabelo longo. Ele respirou fundo e começou:
― Ceifador Arcano, registro: quatro, nove, zero, meia, sete. Alma número: um, zero, zero, zero, zero, zero, zero, zero, zero, dois, zero, zero, zero, zero, zero, zero, zero, zero, zero, um, zero, um, três. Pedido especial, número: zero, zero, treze. Mundo: dois, cinco, três... ugh... Eu preciso de alguém que lide com números, eu não aguento mais isso.
― Você e a Synthia com esses apelidinhos... Já pensou em pôr o ruivinho nisso? Na administração, eu digo.
― Kahir? Já, mas... sei lá, ele é meio... não sei. Acho que vou fazer isso mesmo... Eu tenho que decorar a casa antes que o Shizuicchan acorde...
O som das teclas preencheu a sala. Arcano havia se tornado líquido na bancada de Mônica, de tão entediado que ele estava. Não é como se ele pudesse flertar com a supervisora, afinal, ela o via como um bebê e riu de todas as tentativas anteriores. Não tinha graça. A graça era entrar no escritório de forma ameaçadora e vê-la nervosa, até o ponto de ela lembrar que já estava morta e eles começarem a discutir, depois disso não era mais divertido. Ele já havia lido todos os livros da estante do escritório nas outras visitas, a paisagem da janela era chata, não tinha uma poltrona para esperar, nem um enfeite de mesa que ele pudesse cutucar. Bebeu seu café, mas ele não era tão impressionante assim. Arcano não teve escolha, começou a rolar a caneca de um lado para o outro, ainda em seu estado líquido, com a bochecha imprensada contra a madeira e os óculos tortos em seu rosto. Revisou mentalmente tudo que tinha que cozinhar e decorar, que horas tinha que derrubar a cama de seu irmão para acordá-lo e quando ele deveria dar seu presente. Não tinha mais nada para fazer, então bateu a testa na bancada em aflição:
― Mô, vai demorar muito?
― Por tudo que é mais sagrado, Shiki, toda vez que você vem aqui o tempo para pro seu corpo, não é como se você estivesse realmente perdendo tempo aqui... Ah, puta merda, é ele.
Arcano deu um sorriso malicioso, olhando por cima dos óculos, enquanto se apoiava sobre os cotovelos:
― Ele quem?
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