O lar do fundador de Má era situado nas profundezas da caverna onde ficava o pequeno país. Lar, naquele momento, era uma palavra forte. Nerlim já havia tido ânimo para tornar aquele lugar frio e escuro parecido com um lar, foi quando seus dois filhos foram entregues a ele. Naquela época, tentou preencher os corredores com luzes artificiais, só que luz e corredores de pedras antigas só deixavam o ambiente mais assustador. Tentou plantar algumas flores nos canteiros ao redor do pequeno castelo subterrâneo, mas a luz natural não chegava até ali, no outro dia elas estavam mortas.
Atualmente, seus filhos estavam seguindo seus caminhos. Se fosse só por si mesmo, não precisava dispor de tanto esforço. No entanto, havia um lugar que estava sempre reluzindo naquela residência, que era um cômodo formado por dois.
Ao lado de uma grande janela, um salão estava arrumado com tapetes exuberantes, sofás e poltronas elegantes. Candelabros de formas curvas iluminavam o ambiente. Atrás dessa sala, uma grande cortina de cor vermelho vinho ocultava o outro lado do cômodo. No segundo ambiente, uma cama larga estava no centro, lençóis de cetim em tons coral estavam bagunçados. Um dossel acima da cama fazia cortinas deslizarem como se fossem um rio de sangue. No pé da cama havia uma espécie de sofá embutido, costurado com tecido vermelho. Um apoio para os pés no mesmo estilo estava do lado. Do lado direito havia portas duplas adornadas, era um enorme guarda roupa embutido, quase mais um cômodo inteiro. E para completar toda a extravagância, havia um banheiro luxuoso próximo ao guarda roupa.
Esse segundo ambiente era um lugar que poucos tinham acesso, deitado em sua cama, Nerlim pensou que seus filhos foram os únicos que já entraram ali.
A imagem de seus filhos ainda pequenos passou em sua mente. Pensou que Yuri agora tinha entre doze a treze anos, nessa idade seus filhos ainda eram amáveis. O que será que tinha dado errado no meio do caminho? Um parecia não querer vê-lo nem pintado de ouro, tanto que trocou de nome e foi para o outro lado do mundo. Pensar nisso fez um riso descrente surgir em seu rosto. “Que garoto exagerado” pensou.
Nerlim ouviu passos lá fora, se sentou, arrumando suas roupas e alinhando seu cabelo.
— Pai?
Era Rid, o filho perdido que vez ou outra aparecia ali. Pelo menos ele se preocupava em querer agradar Nerlim.
— Estou aqui. — Caminhou, levantando a cortina que separava o quarto do salão.
— O senhor não vai acreditar onde Ridem está — Rid falou com zombaria.
Claro que Nerlim sabia, nunca deixou de ter notícias do outro filho.
— Ele tá fingindo ser um LAP da água, usando o sobrenome Tomoro. — Ele continuou, rindo como se contasse uma piada.
Nerlim concordava que esse nome era no mínimo feio, no entanto, não comentou nada.
— Só não o disse antes com medo que o senhor morresse de desgosto.
— Deixe seu irmão fazer o que quiser. — Pediu, Nerlim não acreditava que tivesse como esses dois o matarem dessa forma, por mais que parecesse que se esforçavam muito para isso.
— Ele está enfrentando você, desafiando como faz as coisas em Má.
— Talvez as coisas em Má estejam de fato erradas. Estive parado todo esse tempo, deixando tudo nas mãos dos outros. Desta vez será diferente, espero que eu possa contar com sua ajuda.
— Não tem como ser diferente. — Rid disse com confiança, mas ainda achava essa mudança estranha, seu pai sempre viveu tão isolado, quase como se estivesse enraizado nesse lugar. — Aconteceu algo para essa mudança? Ouvi que esteve na casa dos mercenários, infelizmente estive ocupado, aquele cara tem conseguido segurar as coisas.
Nerlim não queria deixar o filho constrangido, mas odiava o ver mentir.
— Não se preocupe com isso. Leve o tempo que precisar para cuidar de suas coisas, enquanto isso, ajudarei no que for necessário.
°°°°
Mesmo tentando dar algumas dicas que não queria que aquele filho o acompanhasse até a casa dos mercenários, ele acompanhou mesmo assim. Talvez quisesse mostrar que ainda era ele quem dava as ordens ali, e não o administrador. Nerlim ficou curioso em ver como era a relação desses dois, de gênios tão fortes. No entanto, isso foi completamente diferente do que esperava.
— Quando eu cheguei lá o Moanj de Aquapla ficou realmente assustado — contava Rid, sentado de lado e de braços cruzados, na cadeira à frente da mesa do administrador. Não reivindicou um lugar, nem chegou dando ordens. Apenas informou Niu. — Eu poderia elogiá-lo pela coragem de tentar nos enganar.
Nerlim estava chocado demais para prestar atenção no que eles falavam. O que entendeu superficialmente era que algumas pessoas encarregadas dos pontos de receber e distribuir missões pelo mundo, estavam achando que poderiam viver nas asas da casa dos mercenários, mas sem lhes dar satisfação.
Esse tempo todo Nerlim pensou que seu filho estivesse, como sempre, vagabundando e batendo perna por aí. Era uma surpresa, quase um milagre, descobrir que ele de fato estava cuidando dos negócios, fazendo o que fazia de melhor: marcando presença e sendo presunçoso, lembrando a todos que trabalhavam para Má, que não importa o quão longe estavam da sede, havia um chefe de olho em tudo.
O fundador ficou impressionado, Niu realmente conseguiu fazer Rid trabalhar.
Rid estava ocupado demais se gabando, e ficou alheio à expressão de seu pai. Niu, por outro lado, notou de soslaio.
Depois de algum tempo, Rid finalmente lembrou que precisava se mostrar. Então começou a fingir dar ordens, depois, não tendo muito o que fazer, deu a desculpa que tinha que cuidar de algumas coisas e saiu do escritório. Lá fora ainda era possível escutar ele conversando com alguns mercenários, dando algumas voltas pela casa dos mercenários. Um chefe vendo se estava tudo bem.
— O que foi? — Niu perguntou, ainda vendo Nerlim surpreso olhando para a porta.
— Estou um pouco chocado.
— Isso eu já notei.
— Não pensei que aquele garoto ainda tivesse alguma salvação — confessou. — Eu o amaria de qualquer forma, mas é bom ver essa evolução.
— É por isso que o estragou. Agora só o mundo para o ensinar algumas boas maneiras.
Nerlim franziu as sobrancelhas, magoado. Queria dizer algumas coisas, mas não queria causar comoção. Ele sabia que não tinha feito um bom trabalho na educação dos filhos, mas não queria que ninguém os culpassem. Se tivessem que tirar alguma satisfação, ou reclamar e culpar alguém por qualquer coisa que os dois filhos tivessem feito, que apontassem para ele.
Nerlim tentava se convencer que estava tudo bem assim, mesmo a verdade sendo que ele também não queria ser culpado por isso. Ele havia dado seu melhor sozinho, não foi fácil, ele não sabia cuidar nem dele mesmo, quem dirá de duas crianças. Nerlim não sabia o que era ser querido, apreciado e ter o amor dos pais, ele havia dado seu melhor, mesmo não sabendo nada sobre amor, de qualquer tipo que fosse.
Vendo que a atmosfera ficou estranha, Niu ficou incomodado. Pensou que era melhor assim, agora pelo menos Nerlim ficaria calado e poderia fazer seu trabalho em paz.
O dia passou tortuosamente devagar. Ainda que estivesse silencioso, quando a fome bateu, os dois saíram juntos para comer alguma coisa. Niu não sabia como isso começou, mas agora eles almoçavam juntos.
Nerlim comentou coisas superficiais, Niu pensava que se ele estava tentando disfarçar que não estava bem, era péssimo nisso. Se Nerlim estivesse fingindo e fazendo drama, ele também era péssimo nisso. Niu ainda não tinha baixado a guarda, o mundo estava cheio de pessoas manipuladoras, usando a capa de uma pessoa recatada, distante e pura.
No entanto, uma coisa fez Niu se convencer que a pessoa ao seu lado não estava jogando, ela estava realmente magoada e tentando esconder isso.
Quando se passa muito tempo com alguém, é difícil não aprender seus trejeitos e manias, seja consciente ou inconscientemente. E tinha uma coisa que Nerlim sempre fazia em público, ele andava escondendo as mãos cruzadas atrás do corpo.
Niu olhou para as costas dessa pessoa, depois para seu rosto. Surpreendentemente, suas mãos não estavam em suas costas. O pequeno laço formado pela faixa envolta em sua cintura estava visível para todos.
Não foram comer muito longe, e rapidamente voltaram para o escritório. Quando entraram, havia mais duas pessoas na sala. Niu nem chegou a olhar direito para as duas figuras estranhas, quando foi atraído pelo movimento de braços de Nerlim, que finalmente voltou ao seu habitual com as mãos atrás das costas, escondendo esse laço em suas costas.
Niu decidiu pensar nisso mais tarde, voltando a atenção para as duas pessoas ali, um homem magro de cabelos negros e olhos vermelhos e outro de capa preta. Sua atenção foi facilmente puxada para uma delas, aquele de capa. Ele tinha cabelos ruivos cujas pontas eram de um azul desbotado. A tonalidade de sua pele não parecia a de uma pessoa viva, seu sorriso mostrava dentes afiados, uma grande cicatriz marcava um dos lados de seu rosto, e seus olhos eram de um azul escuro, com um circulo negro marcando as bordas de sua iris. Yuri também tinha olhos assim.
— Meu caro Nerlim — se pronunciou o homem de cabelo estranho. — Vejo que está mantendo sua palavra em ser mais ativo como governante de Má, um verdadeiro seguidor. — Suas palavras pareciam doces, mas algo em seu rosto não acompanhava essas palavras. Ele olhou para o homem de olhos vermelhos ao seu lado, agarrou sua nuca e o puxou para trás, para que seus olhos se encontrassem. — Posso dizer o mesmo de você, Malri?
— Cairo, isso não é necessário — Nerlim interviu.
Cairo sorriu, curvando as sobrancelhas. Em um primeiro momento, parecia que ele iria largar Malri, mas no momento seguinte ele o puxou de novo e acertou a cabeça de Malri na mesa, fazendo um barulho alto ecoar. O homem caiu no chão com o rosto sangrando entre as mãos.
— Lord Cairo, eu não entendo — ele tentou erguer o torso, colocando uma mão entre ele e Cairo. O homem não o deixou falar, chutando o braço de Malri e em seguida o acertando com o pé várias vezes, até seu rosto ficar em um estado lamentável de sangue e hematomas.
Niu não sabia o que estava acontecendo, nem mesmo buscaria se envolver. Apenas observou toda essa cena ao lado de Nerlim, que tentava esconder que estava desesperado para que isso terminasse. Niu só não sabia se esse incômodo era por não gostar de cenas assim, ou se Nerlim apenas não queria que ele visse essa cena, e o associasse a alguém violento. Ele estava sempre parecendo tão alto e bom, isso talvez estivesse manchando a imagem que estava construindo.
Cairo puxou Malri até que ele ficasse jogado aos pés de Nerlim.
— Olhe bem, Malri — Cairo levantou o rosto do outro — que monstro terrível teria coragem de colocar uma expressão tão triste no nosso adorável Nerlim? Nós o aceitamos, te entregamos muito poder, seu sobrenome agora é forte e conhecido. Você até mesmo é governador de Gofo agora. E o que você devolveu a Nerlim, além de uma Má deplorável e essa expressão de culpa?
Nerlim encarava aquele homem assustado, era estranho ver Malri em um estado tão deplorável. Não queria continuar olhando para esse rosto, não que estivesse com pena, apenas não tinha certeza do quanto Malri sabia. Se esse homem fechou os olhos para as coisas inaceitáveis que estavam acontecendo em Má, ou se apenas foi negligente.
Malri ficou apavorado quando percebeu que Nerlim não falava nada, nem tentou intervir mais. Ele viu de soslaio o olhar sombrio no rosto de Cairo, no mesmo instante se jogou contra as pernas de Nerlim.
— Me desculpe, Nerlim! — Pediu, sem ter uma resposta, olhou para trás. Cairo parecia estar se aproximando. — Nerlim, por favor, me desculpe! — Implorou. — Nerlim!
— Já é o bastante, Cairo — Nerlim declarou, parando a mão de Cairo que estava pronta para agarrar Malri mais uma vez. — Malri entendeu seus erros.
Assim que terminou, Nerlim largou a mão de Cairo, que continuou seu movimento na direção de Malri e o fez largar Nerlim.
— Você tem muita sorte, Malri, pois nosso Nerlim é gentil. Mas fique atento, mesmo que ele esteja disposto a perdoar uma segunda vez, eu não estarei.
Malri ainda não tinha entendido direito o que estava acontecendo, mas sabia que não era inteligente tentar argumentar ou contrariar Cairo, então apenas concordou.
— Que bom que conseguimos resolver tudo, — Cairo suspirou feliz — como Omagaros, quero que todos sejamos unidos e leais. Isso me lembra que chamei todos no mosteiro e ninguém veio.
— Você não chamou — disse Nerlim.
Cairo franziu as sobrancelhas e olhou para Malri.
— Também não fui avisado.
— Sério? — Perguntou confuso, depois de alguns segundos pareceu lembrar. — Serpente… — O nome escorregou de sua boca com irritação. Ele caminhou até a saída, e desapareceu sem dizer mais uma palavra.
Vendo que essa figura realmente tinha ido embora, Niu moveu suas pernas do lugar e foi para sua mesa. Malri se levantou e tentou limpar o que conseguia do sangue em seu rosto, deixando escapar várias reclamações no processo.
— O que foi isso, Cairo enlouqueceu de vez? — Perguntou Malri com raiva.
Niu não conseguia esconder seu desgosto, quando há dois segundos atrás essa pessoa estava implorando por misericórdia e agora estava levantando a voz. Mas logo esse homem viu que a expressão de Nerlim não estava suave como sempre, então voltou a baixar a cabeça.
— Eu nunca disse que deixaria de cuidar de Má, só estive muito ocupado. — Tentou se explicar.
— Esse não foi o problema, e não precisa mais se preocupar com isso.
— Ah, eu tinha escutado algumas coisas, mas não acreditei que estaria cuidando de tudo. Ainda assim, estou à disposição para o que precisar.
— Conto com isso.
Malri olhou um pouco ao redor, seus olhos pousando sobre a pessoa atrás da mesa principal. Era notável uma leve repulsa em seu rosto ao ver Niu.
— Também escutei sobre o incrível novo administrador da casa dos mercenários.
Niu ergueu os olhos, não havia um traço amigável em seu rosto.
— Para alguém ocupado, você escutou bastante.
— Que insolência… — Repreendeu, mas não teve mais tempo para declarar nada.
— Cuide primeiro de seus ferimentos. Conversamos em outro momento. — Nerlim o expulsou gentilmente da sala. Depois que Malri saiu, Nerlim se voltou para Niu. — Eu sinto muito, irei pedir que alguém limpe tudo e cuide das marcas na mesa.
Nerlim levantou o rosto depois de algum tempo, seu rosto não revelava o que se passava em sua mente. Era a mesma expressão não amigável. Nerlim ficou um pouco apreensivo.
— Se você quer usar isso, não faz sentido ficar escondendo. Só use se for mostrar.
— O quê? — Nerlim ficou perdido.
— Suas costas.
Niu tentou olhar por trás do ombro, até finalmente entender do que Niu estava falando. Ele ficou embaraçado enquanto tateava o laço em suas costas.
— Ah, isso… isso não é nada — não conseguiu parecer tão tranquilo quanto queria. Apenas desfez o laço e se sentou atrás de sua mesa. Ainda conseguiu ver um sorriso fraco de Niu, só conseguia pensar que ele estava zombando dele agora, mas estava enganado sobre isso.
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