Depois de garantir ao Conselho Mágico que buscaria Diana e provaria o envolvimento dela com o que sua visão tinha mostrado, se Hadria voltasse e dissesse que não havia conseguido capturá-la, ou pior, que havia sido derrotada por uma mera bruxa que nem na hierarquia estava... não que fosse exatamente o que tinha acontecido. Mas nunca mais teria qualquer credibilidade. Não, ela não deveria voltar. Ficaria fora até que cumprisse seu objetivo.
Então, depois do sumiço da bruxa, ela se pôs a pensar. O que tinha acontecido com Diana e sua magia? O quão poderosa era essa outra coisa que estava em seu corpo? Isso estava relacionado à mudança da aparência?
No final, Diana ainda estava sequer viva?
A conselheira havia preferido supor que sim. Tinha conversado com a velha conhecida momentos antes do corpo pular pela janela. Se fosse para a bruxa morrer, já teria acontecido. Era mais provável que aquela feiticeira, seja lá quem fosse, estivesse dividindo a hospedagem de seu corpo.
Além disso, não valia tanto a pena perder tempo com perguntas que não seriam respondidas, então se pôs a pensar nas que poderiam ser.
Por que havia guardas do Conselho desmaiados no chão?
Apesar das acusações de antes, não imaginaria por que Diana ou qualquer pessoa teria derrubado e carregado os magos até ali. Três deles, ainda por cima. Alguém os havia enviado para ajudar Hadria? Não, isso não parecia provável.
Talvez alguém não confiasse que ela fosse conseguir? Mas então por que enviar meros guardas de baixa classe? Será que a subestimavam tanto assim?
Durante seus pensamentos, um dos homens acabou acordando, atordoado.
— Você aí, fale comigo — ela exigiu, levantando e impondo um tom de autoridade.
— Conselheira?! — O guarda parecia surpreso, como se não esperasse vê-la ali. De fato, não parecia que tinha sido enviado para ajudá-la.
— Sim, homem, sou eu. O que faz aqui? Quais são suas ordens? Quem as deu? — indagou, começando a andar pelo quarto sem olhá-lo diretamente.
— E-eu... não posso responder isso, jovem Hadria.
— É senhorita Merlin, seu futre. Como assim não pode me responder? Sabe a posição em que está?
— M-mas senhorita, eu...
— Não quero ouvir suas desculpas — declarou a feiticeira, finalmente se virando e andando em direção ao homem, que ainda estava no chão. — Eu quero respostas. Não quer saber o que acontece quando não tenho o que eu quero — disse em seu tom mais ameaçador, enquanto abaixava para puxar o homem pelo colarinho com uma mão, manifestando uma chama com a outra.
O mago, parecendo ainda atordoado e, naquele momento, com medo, tomou a sábia decisão de começar a falar.
Estava sentindo a cabeça pesada e a visão levemente turva. Uma xícara vazia estava diante dela, em cima da mesa, e ainda continha um resto do líquido que afetava seus sentidos. Mas ela não estava preocupada. Já esperava por isso.
Observou enquanto um leve calor começava a tomar o ambiente. Viu uma fumaça se formando, mas se sentia cansada demais para fazer algo a respeito. Desgastada demais. Todos aqueles anos lutando em prol de pessoas que nunca ligaram para ela. Não que as pudesse culpar, afinal, elas não sabiam disso.
Não, não era isso. Elas não queriam saber. Não faziam questão alguma. Apenas escolheram se apegar a um ódio irracional, pois ter alguém para culpar e incriminar sempre tornava tudo mais fácil. A vida era mais fácil. Ter um inimigo, um alvo, era o que movia essas pessoas.
Fechou os olhos, dando um longo suspiro que, sabia, seria um de seus últimos. Não queria lutar, e então não o fez. Tudo que vinha à sua mente era um pesado e longo questionamento do que fariam depois de sua morte.
E claro, rostos. Imagens das pessoas que mais amou e quis proteger em toda sua vida, infelizmente nem sempre obtendo sucesso.
Era bom pensar naquilo em seus momentos finais. Já sentia sua consciência indo embora enquanto o calor aumentava e a força em seus membros se esvaía. Tentava se concentrar naquelas memórias, para que morresse com bons pensamentos.
Porém, os rostos que apareciam estavam nublados. Irreconhecíveis.
Era como se essas lembranças não pertencessem realmente a ela.
E, bom, não pertenciam.
Diana demorou um pouco a abrir os olhos, mesmo depois de acordar. Apesar do sonho estranho, havia adormecido e descansado bem, de um jeito que não fazia havia semanas por conta dos pesadelos. Estava difícil mesmo antes da presença do conglomerado em seu corpo.
Então se levantou de abrupto, alarmada. Onde estava? Quando havia adormecido? Como?
Olhou ao redor e logo reconheceu as poltronas de veludo vermelho, o carpete envelhecido e a coleção de objetos exóticos na parede, bem como a estreita, mas bastante alta, estante de livros. Percebeu que estava deitada no sofá, do mesmo veludo das poltronas e, à sua frente, a pequena e redonda mesa de madeira, com uma xícara de chá recém servido em cima dela.
Estava na casa de Mórtem, o homem que havia lhe dado o livro com a informação dos conglomerados.
— Parece que alguém acordou — disse uma voz feminina, vinda de um outro cômodo. Então, de um corredor que havia perto da estante, apareceu uma mulher de cabelos verdes e pele cor de castanha, segurando uma xícara idêntica à que estava na mesa. Vestia calças largas escuras e um curto manto preto, que deixava sua barriga à mostra. Se aproximando, sentou-se em uma poltrona de frente para Diana, e agora a bruxa conseguia ver que seus olhos tinham a cor do mel.
— Você é minha sequestradora? — questionou, e se esforçou para não transparecer uma voz de sono. Ainda assim, a primeira reação da jovem diante dela foi uma risada honesta.
— Primeiro, você quem veio até aqui — declarou, fazendo uma pequena pausa para bebericar seu chá. Depois, colocou a xícara também em cima da mesa, sem tirar os olhos da bruxa. — Segundo, eu nunca ousaria sequestrar Diana Evanora. Você tem fama de perigosa, sabia?
— Dá pra ver no seu tom que não liga de verdade pra minha “fama” — respondeu, sinalizando a ironia com os dedos de uma mão. Começou a assimilar o que ouvia e flashes de memórias da noite anterior começaram a vir.
Havia escapado da hospedaria e de Hadria, de alguma forma, e andado pela cidade até ali. Não lembrava se com sua própria consciência ou a do conglomerado, na verdade nem sabia se seria possível recordar. O fato de estar extremamente cansada, imaginava que por ter usado uma energia mágica que seu corpo não estava acostumado, também não ajudou.
Mas ir àquele lugar provavelmente tinha sido ideia sua. Depois de toda a confusão com os pergaminhos, queria mesmo conversar com seu informante inicial. O que levantava outra dúvida.
— Provavelmente você tá se perguntando quem sou eu — disse a mulher, como se lendo seus pensamentos. Apesar do tom provocativo, algo em seu olhar passava uma sensação estranha para Diana. Um certo sentimento de aconchego um tanto familiar. Não que isso lhe desse mais confiança. — Também quer saber minha ligação com seu informante. Mas primeiro, por favor, tome um pouco do chá, senão vai ficar frio.
Enquanto interrogava o soldado, os outros dois magos haviam despertado e, ao final das perguntas, Hadria os dispensou. Tentou descansar ali mesmo, ainda que fosse irônico usar um quarto pago por sua fugitiva, mas ainda assimilava as informações que haviam sido reveladas, e como as peças se encaixavam no quebra-cabeça. Uma coisa era certa: deveria encontrar Diana, agora com mais urgência ainda.
Com esse pensamento em mente, somado ao desconforto da cama de hospedaria, a conselheira não conseguiu dormir muito, e acordou poucas horas depois do sol raiar.
Depois de levantar e se alongar um pouco, sua mente começou a trabalhar. Como acharia Diana?
Da primeira vez, Hadria precisou recorrer aos magos rastreadores do Conselho. Mas não poderia usá-los novamente, ou ficaria exposta. Também não tinha nenhuma aptidão particular por rastreio mágico. Não tinha ideia do que fazer.
Quando havia arrumado tudo e estava saindo do quarto, porém, sentiu o peso de algo entre a porta e a parede. Deu uma leve espiada, e não encontrou nada à vista, mas forçou a porta novamente e o peso ainda estava lá. Com uma das mãos estendidas, Hadria fez um leve movimento, e um feitiço de desocultação se projetou. Ali, atrás da porta, um livro grande e escuro surgiu. A conselheira fechou o quarto novamente e o tomou em mãos.
Era fácil dizer que não era um livro qualquer. Além do fato de ter sido ocultado por magia, provavelmente realizada por Diana, era grande, de capa dura e possuía adornos de cobre nas bordas e na lombada. No centro, o desenho de um crânio humano entalhado.
Hadria abriu um sorriso de alívio.
Talvez não precisasse rastrear Diana, afinal.
— Então você é neta de Mórtem — começou Diana, revisando o que tinha ouvido, enquanto segurava a xícara de chá já pela metade. Havia presumido que, se a mulher quisesse matá-la, o teria feito quando estava dormindo, então provavelmente não estava envenenado. Ainda assim, bebericava aos poucos, e testava seus sentidos a cada gole. — Ele te contou sobre mim, disse que sabia que eu vinha e saiu pra comprar comida?
— Em resumo, sim — respondeu a mulher, com um sorriso gentil e confiante. Ela já havia terminado sua xícara, que repousava sobre a mesa, provavelmente deixando mais uma das várias marcas na madeira envelhecida. — Disse pra eu cuidar de você até que ele chegasse. E falou que vai te explicar tudo, seja lá o que isso signifique.
— Nem você sabe?
— Nem eu sei.
— Seu avô é esquisito.
— Concordo. — A mulher abriu mais o sorriso, começando a mostrar os dentes. Os olhos, a expressão, até a coisa do chá, tudo transmitia um ar meio místico. Diana não estava acostumada a ficar tão no escuro das coisas, e se sentia perdida como nunca desde a noite anterior. Ainda assim, sentia que podia confiar naquela moça. Pelo menos até que Mórtem chegasse.
Ficaram alguns segundos em silêncio, os olhos da bruxa navegando pelo cômodo enquanto terminava aos poucos sua xícara. Sentiu que a jovem à sua frente não tirou os olhos dela um instante, mas não quis encarar de volta para conferir. Quando o estofado das poltronas parecia a coisa mais interessante do universo, a mulher de mechas verdes se levantou e estendeu a mão para ela, o que a pegou de surpresa.
Em dúvida, mas ainda anestesiada pela situação, estendeu uma das mãos de volta e apertou a da mulher, esperando ser puxada para se levantar, ou algo nesse sentido.
A neta de Mórtem a encarou, os olhos brilhando com um pouco de surpresa.
— Era pra me dar a xícara, na verdade. Não que eu esteja reclamando — disse, e, em resposta, Diana puxou o braço de súbito, arrancando uma risada da outra. Suas bochechas começaram a arder.
Timidamente entregou sua xícara e a assistiu enquanto ela se virava na direção da qual tinha vindo no início da manhã, ainda com alguns risos contidos.
— Você não me disse seu nome — declarou, fazendo com que a outra interrompesse seu andar e se virasse novamente para ela, ainda sorrindo.
— É Lilitu. Espero que a gente se dê bem, Diana — respondeu, se virando pela última vez e desaparecendo no corredor.
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