Voltemos um pouco no tempo, para antes de Arcano invadir o escritório de Mônica, até mesmo antes dela ter assinado a ordem que despachou o Tómur para gerenciar a alma em processo de encarnação. Vamos voltar para o momento exato em que Eldur jogou um pêssego ignorante de si para um mundo que não era dos mais acolhedores. Ao ser engolido por Sirius, soube que não era querido naquele universo. Nem bem-vindo, nem bem-visto, era desprezado e tratado como um pária. Era um sentimento bem tangível e fácil de distinguir até para uma pessoa sem nenhuma noção de mundo ou lembrança de convívio humano, sabe? Era bem fácil sentir o desamor nas bicadas dos corvos que o cercaram assim que ele irrompeu em Sirius, as garras afiadas demonstravam claramente o quão indesejado ele era. Para além da carne, para além dos ossos, as aves despedaçavam sua alma, literalmente. Entre os gritos e grasnados, ouvia-se a voz feminina carregada de poder:
— Cessa agora tua ímpia campanha, cessa! Tu, alma obtusa, ignora a ofensa, abandona a desforra. Vida e Morte não lhe foram afáveis, então entrega-te ao Vazio. Deixe que tua existência funesta chegue a um fim. Por que não acolhe o alento que sempre desejou?
Incapaz de falar, o pêssego negou em seu coração. O silêncio foi repentino e brutal. Em segundos, todos os corvos desapareceram e o rosto distorcido pelo ultraje surgiu à sua frente.
— Então encara a contenda que criaste para ti.
Os corvos o rodearam novamente, turvando sua visão, embaralhando seus sentidos e arremetendo-o contra o chão. O alvoroço foi gradativamente se dissipando e, com a mente clara, sentiu o cheiro e o toque da grama, ouviu as árvores e o vento. Diante da floresta, não conseguiu pensar em mais a não ser nos dedos gelados e viscosos que rastejavam por sua pele, explorando o peito e se agarrando ao seu pescoço, o hálito quente em seu ouvido, conseguia sentir que aquilo estava sorrindo. Então, a voz sussurrada disse:
— Corra.
Seu corpo se moveu sozinho. O vento gélido açoitava seu corpo na fuga desenfreada, as árvores secas e retorcidas cortavam a carne, as raízes se enrolavam aos seus pés. Parecia voar por entre os carvalhos. Correu por sua vida, correu como a caça corre do caçador. Correu dos risos, correu do escárnio, correu do medo, com medo. Por entre os troncos viu a figura de uma mulher grávida, vestido manchado de sangue na altura do ventre, seu rosto coberto pelos cachos castanhos e suas mãos voltadas para o céu. Seu peito doeu, quase parou, quase caiu, mas continuou a correr.
Começou a correr dela também.
A vegetação ficou mais densa e as árvores se misturavam às rochas. Não pensou duas vezes quando disparou para dentro de uma caverna próxima. Foi o mais fundo que pôde, era quase um labirinto, que descia nas profundezas da terra e se espalhava como uma teia. Achando um lugar mais amplo, parou para ouvir.
Fogo acendeu ao seu lado.
Devagar, virou-se. A mulher que segurava a tocha, ruiva, de olhos verdes e injetados. Ela gritou. Sua boca escancarada jorrava sangue, seu olho esquerdo explodiu, seu braço direito caiu, a tocha rolou e o sangue foi incendiado. As labaredas esticaram seus braços para pegá-lo, mas empurrou-se com as pernas para longe delas. Ao mesmo tempo, escorregou no sangue e caiu por cima de algo macio. Era uma criança sem rosto, se contorcendo como se estivesse sufocando. Olhou ao redor, era um celeiro em chamas, o corpo franzino amoleceu em seus braços. Saiu correndo, arrebentou a janela, ainda carregando a criança, mas ela se desfez de cinzas.
Ainda estava de noite, a brisa fria lhe renovou o fôlego, mas ainda sentia o cheiro da fumaça, dessa vez misturado com carne queimada. Aos seus pés havia pedra lisa, estava nas ameias de um castelo. Estava agachado, de arco na mão e aljava nas costas, via a multidão enfurecida abaixo. Tinha alguém queimando na estaca, no centro da multidão, um homem com uma lua no rosto. A flecha sibilou e atingiu seu peito, o sorriso que desabrochou em seus lábios foi lindo. A alma sentiu a mão pesada arrastando-a de repente escadaria abaixo até a multidão. Não viu o que aconteceu, foi muito rápido e brutal. No fim, a praça estava vazia, ele de pé, a estaca reduzida a cinzas e, na frente da estaca, havia um cadáver. Aquilo estava mais para alguma massa de carne deformada do que para um corpo. O rastro de sangue que o levava até ali, pedras, facas, marcas de sapato e de açoite na carne. As flechas tinham sido arrancadas dele e cravadas nas pernas, o arco havia sido quebrado em sua cabeça. Essa era a punição para quem acaba com o espetáculo.
O sol se levantava, a névoa se afastava, o sangue coagulou, a mulher grávida abaixava suas mãos lentamente. Voltou a correr, cada vez mais rápido. O cheiro metálico seguia-o por toda parte. Ouviu novamente os passos lentos, a risada cínica. Assustado, se jogou contra uma porta, mas caiu rolando escada abaixo, sem tempo de poder se proteger. Não conseguiu se levantar, não completamente.
Tinha a sensação de que aquilo só estava começando.
Ouviu uma tosse fraca, parecendo o último suspiro. Vinha de uma cama apodrecida e pequena demais para o homem mal nutrido. Suas roupas pútridas estavam rasgadas e grudadas em seu corpo com sangue e suor, acentuando o ângulo de seus ossos visivelmente quebrados sob a pele. Em seu peito, apoiado nas patas traseiras, movendo rapidamente os bigodes enquanto olhava para o rosto moribundo, um rato igualmente esquálido, que gentilmente esperava o amigo morrer para começar o banquete. Não conseguiu tirar os olhos do rato roendo a pele fina e enferma, o sangue escuro manchando os bigodes acinzentados, as mordidas rápidas do rato faminto.
Foi incapaz de desviar os olhos.
Ao lado da cama, a mulher de branco passava os dedos pelo cabelo do cadáver.
Imediatamente, ele se virou. Agora, era um salão de banquete. Viu seu reflexo no espelho lateral: outro jovem mal nutrido, espancado, sem rosto e de roupas esfarrapadas. A mesa estava farta, cheia de convivas mascarados. Era dia. O homem à sua frente, sentado na ponta de prestígio, com as roupas mais luxuosas, era o único sem máscara. Alto, forte, sobrancelhas retas, nariz reto, cabelo preto escovado para trás, olhos pretos, bigode e cavanhaque, o homem tinha uma aparência comum e marcante ao mesmo tempo. Ele estendia uma taça pequena, de madeira, bastante velha, com um líquido que cheirava a amêndoas. Viu sua mão pegar a taça e levá-la à boca, forçando o líquido espesso por sua garganta. A flor de pêssego viu o corpo cair no chão se contorcendo de dor, mas sem gritar, o que não agradou aos comensais. Portanto, eles se levantaram para chutar o objeto de entretenimento.
A mão grande a calejada em seu ombro o impediu de pensar, quando virou, era o mesmo rosto comum e marcante, enfiando uma espada em sua barriga, o corpo caiu, ele permaneceu de pé.
Pela lateral, um brilho, um grito, a espada vinha como uma guilhotina. Desviou rapidamente, por puro instinto. O rosto do soldado atormentado era vívido aos seus olhos, os ataques dele eram desordenados, sem método, grosseiros... fácil de matar. Empurrou toda sua dúvida e confusão para longe de sua mente, parecia um movimento natural a se fazer. Limpou seu pensamento e focou na luta que se desenrolava. Aparou o ataque lateral, conduziu o golpe para fora de si e forçou uma abertura na defesa do soldado, cravando a espada do ombro até o peito. Enquanto pisava no cadáver para retirar a lâmina, teve um montante atravessando seu corpo. O soldado que o matou vestia a mesma armadura que ele, mas sem elmo, o mesmo bigode e cavanhaque.
O cenário mudou, era uma floresta de pedra, estava nublado. Um menino loiro se escondia nas poucas árvores que tinham ali, perto de pedras e caixotes. Seus olhos como o sol e a lua, ele não era humano. Alguém forçava a pequena flor a se ajoelhar imobilizando seu braço. Com sobrancelhas retas e desprezo no olhar, o nobre usou o montante como um machado.
Sua cabeça girou, sombras passavam rapidamente, gritos no fundo de sua mente ecoavam com o som de metal, ordens sendo dadas. Outro soldado inimigo tentou matá-lo, mas foi ineficaz. A Flor de Pêssego lutava com uma espada enorme, sem rosto e sem armadura. A espada veio rente ao seu corpo, não se preocupou, apenas arrancou a cabeça de seu oponente. Abriu a barriga do seguinte e arrancou o braço de um terceiro. Virou ao ouvir o grito de alguém e teve suas entranhas expostas ao sol, vivendo o suficiente para encarar os olhos negros desdenhosos, o mesmo rosto nobre de nariz reto, mas sem barba.
Abriu os olhos em uma tenda escura, suas mãos calejadas pareciam bem mais velhas do que todas as anteriores, seus olhos ardiam de tal forma que não sabia se era por causa da memória ou por realmente ter vontade de chorar. Contraiu o maxilar e deixou a memória fluir. Linhas quentes riscaram seu rosto iluminado pela vela escassa, a respiração profunda fez nuvens de vapor. Tirou o anel e carimbou uma pilha de papéis que separou meticulosamente ao lado da mesinha de madeira, pequena demais para ele. A pena com a qual escreveu a carta foi gentilmente passada para o lado antes que a lâmina tocasse seu pescoço, com dor e crueldade. Os olhos violetas do executor o encaravam com desprezo, mas a Flor de Pêssego sabia. Sabia que considerava seu executor como um amigo. Que a pena havia sido um presente do homem de olhos violetas para ele. Já sobre a carta, tão delicadamente escrita e tão meticulosamente protegida, o conteúdo dela foi gravado em sua mente:
"Para minha pessoa amada,
Você nunca receberá essa carta, e, mesmo que você a leia, não saberá que é destinada a você. Por favor, me perdoe se tudo parecer meio estranho, mas essa é a primeira e última carta que escrevo nessa vida. Queria te dizer tanta coisa, mas as palavras faltam, então serei breve.
Eu te amo.
Queria expressar isso de qualquer maneira, pois hoje ou amanhã, serei um cadáver frio. Embora eu tenha medo de morrer, eu sei que meu amor por você vai além da morte. Então, sei que: enquanto houver amor, serei eterno. Eu sorrio só de pensar nisso, me sinto extremamente bobo. Que horror, isso foi muito meloso, mas é verdade, então eu vou deixar como está.
Sabia que é difícil se fingir de forte na sua frente? Seus olhos são puros em meio a corrupção da guerra. Tão quentes e brilhantes quanto o céu de verão. Deu vergonha de te olhar, me sentia sujo e vulgar. Só sei conviver com demônios, então acabei sentindo que estava te maculando apenas de estar perto de você. Eu fiquei apavorado, mesmo eu tendo ficado tranquilo quando estava sozinho contra vinte soldados inimigos. O caminho que eu sempre segui é sangrento e sem volta. Eu sou um homem quebrado, sou uma existência defeituosa, sei disso e admito sem nenhum problema, (cheguei no fundo do poço e descobri um alçapão), mas, quando me dei conta, você estava lá. Você sempre esteve lá, matando ao meu lado, com seu corpo machucado, quebrando sua alma, perdendo seu amor, sufocando sua luz, lutando para que seu coração não ficasse amargo... Deus, o que eu fiz? O que eu me tornei? No que eu te transformei? Arrastei a pessoa que eu amava para esse mundo de merda. Foi minha culpa, eu sei, mas eu te amei mais ainda por causa disso. Não se preocupe, não é um sentimento tão profundo quanto aqueles bardos cantam, parece mais uma amizade profunda. Me desculpa por isso. Talvez eu só esteja querendo te proteger uma última vez. Espero que minhas ações falem mais que minhas palavras, já que, com essas malditas palavras, não pude nem provar que sou um soldado leal.
Você sabe como isso termina, não é verdade?"
Tudo se apagou. A flor via suas mãos vermelhas, o cabelo pendia emplastrado de sangue e a poça escarlate se formando ao seu redor. À sua frente estava o Tómur, fitando-o enojado.
— Eu não sei se isso é hilário ou lamentável, mas eu sei que estou diante de um hipócrita.
O pequeno vazio de olhos e sorriso medonhos se aproximou. Agachado, com os cotovelos apoiados nos joelhos, a cabeça levemente inclinada, fazendo o cabelo longo pender sobre o ombro se tornava particularmente desagradável aos olhos. O sangue acumulado começava a subir, já estando a alguns centímetros do chão.
— Aquele mundo só te fez sofrer, você quer mesmo voltar? Isso não é contraditório?
Seus joelhos foram cobertos.
— Por outro lado, você não acha um insulto? Quer voltar para o mundo no qual você matou mil duzentas e noventa e três pessoas? O mesmo em que outras quarenta e quatro mil novecentas e oitenta e nove pessoas morreram por sua causa...
Logo seu corpo inteiro seria envolvido pelo líquido quente e vermelho.
— Você não tem vergonha? Ah… você não se lembra… — disse erguendo a Flor de Pêssego pelo pescoço.
O mar de sangue se revoltava aos seus pés num clamor furioso por seu criador.
— Eu… matei… você…
— Não, criatura estúpida, você matou meu irmão… e eu vou te mostrar como.
Então, simplesmente, soltou.
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